A presunção de inocência
Dentre todas as falácias jurídicas, a de que existe uma presunção de inocência perante a lei, é a talvez a mais significativa, senão aquela que justifica todo o processo penal não a favor do réu e, sim, contra ele, pois é uma falácia, algo que é dito para lhe confortar enganando quanto a realidade na qual, de fato, se é culpado desde o princípio. Tendo em vista que a lei segue os moldes judaico-cristão, não é possível ser inocente perante deus depois do pecado original e, tão pouco, antes, já que ao pecar, se pressupunha que não era inocente, pois se estava predisposto a realizar o mal, já se pecava no pensamento mesmo do mal e ao pensar no que deus podia fazer caso se fizesse o mal, e se não se pensava no que deus podia fazer, a inocência era ainda mais um engano, o de que não havia nenhum problema perante deus fazer o que pretendia fazer, cometer um pecado, no caso, o pecado original que, pelo resto da vida aprisionaria a todos perante a lei como culpados até que provem o contrário, e nunca inocentes.
Conforto para aqueles que pensam que são inocentes perante a lei, a presunção de inocência nada mais é do que isto: uma presunção. Um pressuposto de que não se é culpado, quando, na verdade, se é, só não se conseguiu provas para que a culpa se manifeste em sentença. O crime pouco importa. Não é no crime que a lei adquire forma e muito menos é dele que ela depende. A lei independente do crime assim como a culpa independe de quem quer seja, pois todos são culpados perante a lei.
Não é preciso que a lei se inscreva na carne de para que ela se expresse e que nos expresse como culpado perante ela. Deste modo, não é preciso que estejamos perante a lei, num tribunal, para que sejamos culpados por ela. A lei nos culpa à distância, em qualquer lugar no qual se pense no mal, em fazer o mal, em fazer algo que seja um crime, mesmo que não saibamos se é ou não crime, pois se sabe que é ao estar na lei, mesmo que não a conheçamos.
A ignorância do que é crime o que se faz não invalida a lei, não deixa de ser contra a lei, não deixa de pôr aquele que o cometeu perante a lei como culpado. Neste sentido, antes mesmo dele cometer o crime, a lei já estava à sua espera numa teia exposta para que ele caísse nela, inocente, porém, culpado desde o princípio. No caso, culpado por sua inocência, por ignorar a lei quando a deveria ter em vista a qualquer momento e em qualquer lugar, antevista por si em cada ação sua como culpado perante ela para que não fosse inocente ao pensar que o que fazia não era crime, contra a lei, como fizeram Adão e Eva, ou o primeiro homem e mulher segundo uma determinação de gênero em qualquer perspectiva histórica perante a lei divina em seu costume mítico-religioso.
Anterior à presunção de inocência, há a presunção da culpa que não apenas precede quem se põe perante a lei como precede quem pensa não estar perante a lei em cada passo que dá considerando-se livre. Não há liberdade no paraíso divino, no qual o homem e a mulher não podem comer nem mesmo um fruto sem que deus autorize. Não há liberdade nos costumes mítico-religiosos definidos por diversas culturas a partir de uma relação determinada e determinista com seus deuses.
A presunção de inocência pressupõe que o homem é livre e deve permanecer livre até que provem o contrário, contudo, é o oposto o que acontece. Na medida em que há lei, não é possível haver liberdade. A liberdade somente é possível, consequentemente, a inocência, quando não há mais lei que determine que o que se faz é culpável e que, portanto, não se pode ser preso ou permanecer ser preso, tendo em vista que a prisão é anterior a liberdade.
Não se pode pensar a inocência antes da culpa, tão pouco a liberdade antes da prisão. Este é o pressuposto da lei. A inocência e a liberdade são linhas de fuga da lei, formas de expressão de um conteúdo sobre o qual a lei não se põe e a partir do qual não se impõe. Um corpo sobre o qual a lei não se inscreve e nem a partir do qual ela escreve capturando-o em seu processo legislativo transformando em culpável de antemão e, preso, por conta disso.
Toda a condicionalidade de ser culpado e preso se fizer determinada ação não é apenas uma suposição, é o posicionar-se perante a lei antes mesmo de entrar num tribunal para ser julgado por ela. Trata-se apenas de confirmar o que já se sabia, que se era culpado, antes mesmo de cometer o crime, o que não quer dizer que fosse mal por natureza. A natureza humana pouco importa. Não se está em questão quem é, ainda que esta questão se coloque na medida em que a lei defina quem são os culpáveis desde o princípio, aqueles que devem assumir a culpa pelos outros, que devem ser sacrificados em nome da lei, ou ainda, em nome de deus na medida em que deus é a lei.
Ao sacrificar Adão e Eva, o deus judaico-cristão tornou culpáveis todos os homens e as mulheres mais do que estes, fazendo com que elas se sacrificassem mais do que eles para agradar a deus, não necessariamente morrendo, mas sofrendo mais do que eles. Para se livrarem da culpa e prisão, se atribuiu este sacrifício aos animais, imolados ou não, culpados desde o princípio pelo homem e mulher, condenados à tortura e morte não necessariamente para alimentação. Por conseguinte, pela atribuição de uma animalidade aos homens e mulheres, se tornou culpável e sacrificáveis etnias e raças para agradar a deus. Em cada um destes processos levando-se perante a deus aquele que se diz que é culpado sem que tenha cometido qualquer crime, sem qualquer presunção de inocência, pois, assim como Adão e Eva, ou qualquer homem e mulher originários, são culpados desde sua criação e deus estava em sua teia apenas esperando para os punir, inocentes perante sua lei, mas culpados perante ela desde o princípio por ignorá-la.
Toda a positividade da lei que muitos advogam em sua ação vista como necessária advém da negação da lei, da ignorância em relação à ela, da inocência de alguém pensar que não é culpado perante ela e, portanto, livre em relação à lei. Não se pode negar a lei, isto é a lei em toda a sua positividade, em toda a sua ação sobre cada indivíduo antes mesmo dele nascer, antes mesmo dele ser fecundado em alguns casos quando se determina que sua fecundação deve ser segundo a lei. Por exemplo, depois do casamento e não antes ou segundo padrões científicos e éticos de fertilização que devem ser adotados antes de haver a fertilização e, quiçá, num futuro próximo, padrões científicos e éticos de genetização a serem adotados antes mesmo da fertilização como se faz em plantas e animais segundo a transposição do sacrifício humano ao sacrifício deles em vez de homens e mulheres em nome da lei científica em substituição à lei divina.
Não importa o quanto o indivíduo se afirme como inocente pensando-se livre perante a lei. O conforto deste pensamento não desfaz a positividade da lei que o prende e o culpa sem que ele perceba que está preso e é culpável. A teia da lei se estende por todo o Estado e entre Estados sem qualquer possibilidade de liberdade em relação à ela, logo de inocência. Não adianta alegar inocência em relação a algo que é um crime, pois se é culpado perante a lei do mesmo modo, preso por ela e somente livre sob fiança que é a condição de toda a liberdade perante a lei e aquele que a representa, o Estado como força da lei, que impõe a culpa e a prisão a todos perante a lei, aquele que prende e mata em nome da lei, de deus, de si como representante da lei.
A liberdade não é uma condição da inocência e, sim, da culpa perante a lei. Somente se é livre sob fiança, por meio de uma dívida perante a lei que é desde o princípio da culpa, isto é, desde o pecado original ou do primeiro homem e mulher que foram inocentes pensando que não havia lei no paraíso em que viviam, ou ainda, na terra que estavam. Em outras palavras, primeiro homem e mulher que pensavam que estavam andando inocentemente numa terra sem lei na vã ilusão de quem ninguém os observava como culpados e já não estivessem presos desde o primeiro momento em que puseram os pés na terra, naquela que não era deles. Ao porem os pés na terra já eram culpados e já estavam presos nela apenas à espera do que fariam para terem a compreensão de que não eram livres e, tão pouco, inocentes desde o princípio.
Antes mesmo da culpa ser atribuída, ela já estava pressuposta pela lei àqueles que punham os pés na terra desde o princípio. Olhe onde pisa é a lei. A terra não é segura por mais que sinta segurança nela como sua casa, lar. Ela pode, de uma hora para outra, fazer com que seus pés vacilem e, portanto, se é culpado de antemão por cada passo que dá nela antes mesmo que dê qualquer passo nela. Ao pisar na terra é na lei que você pisa, ou ainda, é nela que você está preso, pois a lei da gravidade é senão a gravidade da lei sob seus pés.
O que determina a lei é a própria lei e não aquele que a cria, julga ou é culpado perante ela e preso por ela e a ela, por mais que ela seja criada por alguém, que alguém julgue a partir dela e alguém seja culpado e preso por ela e a ela. Uma terra sem lei só é possível numa terra sem alguém que pense até mesmo uma lei natural a partir de uma ordem da natureza, esta entendida como um processo, divino ou não, no qual cada ser é condenado à morte desde o nascimento por nascer, preso à lei da natureza ou de deus. Neste caso, se deus é a lei que torna todo e qualquer homem e mulher culpado desde a criação antes e, principalmente depois do pecado original, e, por seguinte, preso, torturado e morto em nome de deus segundo a religião judaico-cristã, a natureza é a lei que torna todo ser vivo culpado desde a criação e condenado também à prisão, tortura e morte. E, em termos de expiação do pecado, a natureza é a lei de toda expiação na medida em que é destruída em nome de deus ao tornar o homem e a mulher senhores de todos os seres na natureza, deste modo, determinando a vida e morte dos seres vivos nela em nome de deus para além da própria sobrevivência.
O animal, por mais livre que possa parecer em relação à lei divina, do homem, do Estado, está submetido à ela, preso à ela e, portanto, é culpado perante ela. Também o animal deve olhar onde pisa, saber em que terra está andando, deve pensar no que está fazendo, pois a ignorância dele quanto a lei não evita que ele seja culpado perante ela, punível e condenado à morte. Não há omissão da lei quanto à morte animal e, menos ainda humana. Há legitimidade das mortes de animais e humana pela lei que não é aplicada àqueles que os mortificam.
A lei nunca é omissa, nem pode ser se for de fato lei. A lei compreende tudo a que se refere e, no que diz respeito ao Estado, se refere a tudo que o determina na terra, a começar por seu território. Tudo que acontece dentro dos limites de um Estado diz respeito à lei do Estado que não é omisso a isso. A omissão pressupõe que não se atende alguém em determinado momento, porém, isso não se aplica à lei que o Estado representa com sua força. Vida e morte já estão pressupostas na lei de cada Estado em relação à todos os seres e a lei não é omissa quanto a isto, ainda que o Estado seja, fazendo viver e deixando morrer quem ele quer que viva e morra.
A lei é positiva, não importa o quanto ela se ausente, seja vista como não existente ou negativa. O que define a positividade da lei é a sua ação e esta independe da ação de quem faz a lei, o legislador, o juiz ou o executor. A lei é a lei. Não se trata de uma simples identidade, mas de uma positividade pressuposta anterior à identidade da lei, isto é, ao que é lei, de modo subjetivo ou objetivo, para um sujeito ou em relação a um objeto. Não se pensa na lei sem pensar numa positividade dela que se confunde com a atribuição de um bem ou justiça a ela, à ação dela, a uma ação conforme a lei.
A lei é positiva independente de quem a pensa como negativa ou dela mesma ser negativa em determinado momento em relação a quem ou quê se relacione. A positividade da lei é anterior a qualquer pressuposição do bem e do mal, de justiça e injustiça, de uma identidade e de uma diferença dela ou pressuposta nela. Não há lei que não seja pensada de modo positivo e, por sua vez, operante antes mesmo de qualquer ação em relação a ela por quem quer que seja. Toda e qualquer negatividade da lei advém senão da culpa e prisão de quem se relaciona a ela, o que quer dizer, todos que são submetidos à lei e não simplesmente que estão submetidos à ela, ou ainda, tudo que é submetido a ela e não apenas está submetido por alguma circunstância específica.
A lei submete tudo e todos. Tudo e todos estão presos à ela, culpados, julgados e condenados desde o princípio a si. Sua vida pertence a lei desde antes do nascimento e também posterior à morte, pois a lei submete tanto os vivos como os mortos, age em relação à vida e à morte. A morte não é uma fuga da lei. Ela é condenável desde o princípio como crime. Ninguém pode morrer tanto quanto não pode matar. Morrer não é admitido. Quem morre é culpado, condenado e somente vive uma vida eterna numa terra paradisíaca ao lado dos deuses ou em ciclo ininterrupto, sob fiança ou sob tortura, com uma liberdade consentida, uma inocência presumida como tal, isto é, de que se é inocente, quando, pelo contrário, traz em si a culpa em si e está preso à vida como sua prisão, sua punição, pois não pode morrer. Deve viver segundo a lei.
A presunção de inocência é uma presunção daqueles que querem ser inocentes sem ser, não querem ser culpados pela lei. É uma tentativa de fugir à lei, de escapar dela, de não se pôr perante ela. Dizer que é inocente perante a lei é pressupor que a lei não está ali, já, à espera daquele que se põe diante dela, pressupor que ela não está presente em sua positividade ainda que esteja ausente diante daquele que a ignora ou finge ignorar para escapar dela, e que se pense que está ausente por não se estar diante dela ou não a ver, por não ter visto onde estava pisando, no caso, na lei.
A presunção não é de alguém específico, mas de tudo que se submete à lei, pois ninguém escapa à ela, desde o momento em que a lei se faz sobre a terra, isto é, desde que a lei é algo positivo em relação à terra, que há uma positividade dela como lei sobre a terra sobre a qual se impõe submetendo a terra à si e, por conseguinte, tudo que está nela, põe os pés nela, vive e morre nela. Não importa se a terra é submetida à lei dos deuses, homens e mulheres ou do Estado. A lei que se impõe sobre a terra é a lei em toda sua positividade, o que quer dizer, em toda sua gravidade e toda sua seriedade como ação natural e humana.
Não existe nenhuma diferença, sob este aspecto entre uma lei natural e uma humana a partir da qual esta última possa ser considerada positiva em relação àquela considerada negativa, quiçá, por uma natureza humana próxima a do animal ou a uma animalidade. A lei é positiva tanto em relação à natureza quanto ao ser humano quer este negue ou afirme uma animalidade ou ação considerada "animal", "irracional" para escapar à lei ou para executá-la com maior vigor. A lei independe da ação natural ou humana, de ser ela grave ou séria e, se não fosse assim, não poderia regular ou medir esta própria ação, não poderia ser a medida de toda e qualquer ação para torná-la positiva, legal, lei em vez de negativa, ilegal e contra a lei no sentido de destruir a lei em toda sua positividade e legalidade, no que é, lei, independente de que lei seja.
Se a culpa é anterior ao crime pelo qual se é culpado segundo a lei é porque a lei culpa todo aquele que se submete a ela por ser contra a lei. O ser é contra a lei na medida em que não é submetido à lei ou, pior ainda, não quer se submeter à lei, reafirmando deste modo sua culpa, aumentando quiçá, sua pena e condenando a si mesmo à morte perante a lei. Ser contra a lei ou ser fora da lei não quer dizer fazer algo contra e querer fugir da lei quanto ela se exerce por meio da força do Estado com seus braços armados e dos aparelhos de captura. Todo ser é contra a lei e fora da lei antes mesmo de nascer e depois do seu nascimento e, por isso mesmo, submetido à ela como culpado por isto, ainda que liberto para viver sua vida sob fiança, ameaça e morte caso não queira se submeter novamente.
Lei e ser são antagônicos. Este busca sempre escapar àquela que o submete a cada vez que busca isso com uma presunção de inocência desde antes de nascer. Dizer que não se tem culpa por ter nascido é a maior inocência a ser defendida diante da lei. A que produz mais risos, pois ignora que se é forçado por lei a nascer, assim como é forçado por lei a viver e forçado por lei a morrer, seja esta lei natural ou humana em um ou outro momento determinado.
Talvez se pergunte diante de tudo isso, por fim, quem consegue fugir à lei em toda sua positividade e ser livre de toda culpa, prisão e todo mal presumido perante a lei? Ninguém. O que se pode é escapar da força da lei, de toda sua gravidade e seriedade, isto é, de toda sua negatividade, do não no qual a lei se resume. Produzir uma força contrária a si, a toda a negatividade de sua força, de modo positivo, buscando escapar à violência de sua ação, é o que todos buscam, do marginal ao empresário, ao animal e planta daninha que vive e busca viver sem se submeter à força da lei, mesmo que saiba que está submetido à lei em toda sua vida, existência, ser.
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