Palavras não ditas


Em geral, não expressamos em palavras faladas o que sentimos: nossos sentimentos, paixões, o que nos afeta mais profundamente. Guardamos as palavras não ditas em nossa mente sufocando tudo que sentimos em algum momento até que o que sentimos nos sufoca e as palavras não ditas anseiam por serem expressas porque nós ansiamos por nos expressar por elas. São vários os motivos pelos quais deixamos de expressar o que sentimos em palavras e cada pessoa tem o seu em particular, mas quando não conseguem expressar o que sentem dizendo as palavras e quando já não suportam mais ficar com elas em sua mente, resta então a escrita das palavras não ditas.

Escrever é a arte das palavras não ditas. É quando as palavras que guardamos somente pra nós fundo de nossa alma se expressam em toda sua extensão num espaço vazio sem que ninguém as possa ouvir. É quando aquilo que mais queremos dizer, que entala na garganta, é dito silenciosamente e no silêncio das palavras não ditas, isto é, escritas, nos confortamos por dizer o que sentimos, o que pensamos, o que queremos, o que ansiávamos por dizer há tanto tempo. Sem ninguém a nos censurar, sem ninguém a nos impedir as palavras de serem escritas, sem nenhuma razão a nos impedir de expressar o que sentimos, nossas paixões e afectos por elas.

Não por acaso os poetas românticos desaguam nas folhas em branco suas lágrimas, suas dores, mas também suas alegrias. É apenas a folha em branco que dá ouvidos ao seu silencioso lamento, pois à pessoa a quem ele diria suas palavras românticas, extremamente racional, talvez nunca o ouvisse sua paixão, e ele não tivesse coragem também de dizer. Os aedos, antigos poetas gregos, como cantavam os deuses e as ações humanas de bravura e inteligência não tinham o que temer expressar. Não eram seus sentimentos que estavam em questão, não era a si mesmo que expressavam, nem tão pouco as palavras eram também suas, mas inspiradas pelas Musas. Diferentes deles, os poetas modernos, preocupados consigo mesmos, com o seu eu, como todos na modernidade, já não conseguiam cantar aos quatro cantos seus poemas sem sentir a tragédia das palavras ditas a quem não as quer ouvir, nem saber do sentimento que carregam. Indiferentes aos sentimentos dos poetas, mais preocupados com a beleza das palavras e o orgulho de as recebê-las do que com o que expressavam, os poetas continuaram vivendo à margem na República moderna com suas palavras mal-ditas, escritas com bílis.

Ninguém melhor do que os poetas românticos conhecem a arte de escrever palavras não ditas. Ninguém melhor do que eles expressam os sentimentos tão silenciosamente numa folha vazia enchendo-a de paixões e as fazem reluzir aos olhos de quem os lê. Sentimentos doloridos porque saem do fundo da alma onde estavam há tempos escondidos e os queria esconder e já não consegue mais, cuja dor é a dor do tempo no qual as palavras não foram ditas, foram sufocadas por si até lhe sufocar. Dor que se confunde com a dor de vê-las partir e poderem ser lidas por alguém que veja o que sente, o que pensa, o mais profundo de sua alma.

As palavras que o poeta rabisca e reescreve constantemente aos olhos são expressões de seu mais íntimo ser ao vivenciar a dor das palavras não ditas. O que o poeta não diz, escreve. E com ele aprendemos algo que por vezes esquecemos, que as palavras não dizem apenas o que são as coisas, que elas não simplesmente signos de coisas exteriores a si e às quais os signos são indiferentes em sua arbitrariedade. As palavras são extensões de nossas paixões e sentimentos por tudo que existe e não existem sem paixões e sentimentos nelas. Se elas têm alguma vida não é porque as podemos falar e ouvir, mas porque podemos nos ver nelas quando não são ditas, e sim, escritas, e no seu silêncio das palavras não ditas escritas adormecemos nossos olhos, nossa alma e nosso corpo no repouso do ser que produzem.

Quando lemos um poeta, ou um escritor cuja escrita é para nós poética, não lemos palavras, lemos paixões e sentimentos, os dele e os nossos nas suas palavras não ditas nas quais vemos a nós mesmos naquele que escreve e nos apaixonamos por ele, pois nos afecta profundamente. Neste sentido, nada desperta mais paixão no outro do que a escrita, pois nela o ser é todo ele expresso em razão e paixão. É um ser uno nas palavras não ditas, mas escritas, uno em ausência e presença ao mesmo tempo. Se escrever é a arte das palavras não ditas e, sim, escritas, é porque aquele que escreve tem o poder de se fazer presente na sua ausência, de estar tão perto do que sente aquele que o lê ao mesmo tempo tão distante dele

A paixão que as pessoas têm por aqueles que escrevem é senão a paixão pelas palavras não ditas, escritas, palavras que quem lê também não diz, mas se escrevessem diriam como aquele que escreve. Escrever não é difícil, neste caso, a dificuldade é dizer o que sente e o que pensa, algo que assusta a maioria das pessoas pois não é fácil fazer isto. Ninguém é obrigado a demonstrar suas paixões e sentimentos, e mesmo se obriga o contrário disto, a se sufocar as palavras que, não ditas, sufocam aquele que não as diz. Não por acaso toda ciência psicanalítica faz com que as palavras não ditas sejam ditas, não porque as palavras em si sejam importantes ou os sonhos que elas expressam, mas porque ao dizê-las expressa-se a si mesmo em sua alma sem censuras como se faz senão na escrita. Os poetas e escritores são os predecessores, neste sentido, da ciência psicanalista e sem se preocupar com transferências de paixões e sentimentos, pelo contrário, fazendo da transferência de sentimentos uma "cura" para seus traumas ainda que momentaneamente, e não apenas de si, mas de todos que sofrem como e tanto como ele com o sofrimento das palavras não ditas.

A literatura é uma clínica na qual todos se veem como loucos e são curados de sua loucura momentaneamente enquanto leem as palavras não ditas, mas escritas que expressam as palavras não ditas daqueles que, em geral, não escrevem, mas que podem, todavia, sempre escrever as suas próprias palavras não ditas. E todo poeta e escritor, por fim, comunga as palavras não ditas de outro poeta e escritor profundamente como se fossem suas as palavras não ditas.

* Este texto foi inspirado no blog e página do Facebook Palavras não ditas, da poeta e escritora Larissa Almeida.

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