A solidão filosófica


Assistindo a uma palestra sobre Spinoza, um amigo falou baixo ao meu lado que queria entender o que é este imediato do qual falam os filósofos. Parei um pouco para pensar no que ele disse e lhe disse ironicamente: o imediato é aquilo do qual os filósofos se distanciam tentando chegar nele. Ele sorriu e ficou em silêncio pensando talvez no que eu disse ou continuando sem entender o que eu, também um filósofo, disse sobre o imediato. Eu poderia lhe explicar melhor o que quis dizer, mas obviamente isto nos distanciaria do imediato naquele momento, a palestra de Spinoza.

Em nossa vida cotidiana, não nos distanciamos do que é imediato senão algumas vezes quando somos forçados a pensar nela devido a algum problema, como diz Deleuze. Esta atitude de distanciamento é a primeira das atitudes filosóficas das quais Marilena Chauí fala em seu livro Convite à filosofia e que são o tema de minha primeira aula para os estudantes do 1º ano do ensino médio nas escolas onde ensino. Uma atitude de distanciamento que é, segundo minha interpretação, o momento em que paramos para pensar, quando resolvemos ficar só por algum momento para pensarmos em nossa vida, o que fazemos mesmo estando ao lado e muito próximo de alguém e ficamos só pensando. E que, em geral, é assim que respondemos no cotidiano àqueles que perguntam o que é que estamos fazendo quando estamos sós dizendo a eles: - Estou só pensando...

Obviamente isto não quer dizer que todos que param pra pensar em algum momento de suas vidas sejam filósofos, pois de um modo geral isto não é algo que eles fazem necessariamente, mas são obrigados a fazer, como no caso dos estudantes quando estão na aula de filosofia comigo e os forço a pensar em algo, principalmente em suas vidas. Algo que muitas vezes eles não querem fazer como muitos no cotidiano, e os filósofos também em certa medida, preferindo viver o carpe diem da vida em sua imediaticidade sem se preocupar muito com ela, muitas vezes, porém, também não se importando com a vida com um todo, no caso, com a vida dos outros que estão ao seu lado ou distantes, outros de raças, etnias, gêneros e diversidade sexual diferentes das suas e querem eliminar do cotidiano de modo imediato todas estas diferenças para viverem tranquilamente sua vida na santa paz de Deus. Algo que muitos filósofos não querem e não fazem com certeza, pois o carpe diem para muitos deles não é uma negação absoluta da vida, mas um pensar constante nela e sobre ela em sua imediaticidade, ou seja, fazer aquilo que muitos não querem fazer, no caso, ter a atitude de pensar que é a primeira resposta à pergunta O que é a filosofia? como tento demonstrar para os estudantes na primeira aula deles de filosofia no ensino médio, uma atitude por si só já crítica, pois requer que tenham coragem pra fazer isto, que obviamente eles não têm neste primeiro momento, afinal, é o primeiro contato deles com a filosofia.

Mas se os filósofos se preocupam tanto com o imediato em sua atitude de pensar, não por menos eles são reconhecidos pela característica de se distanciarem deste imediato, ou ainda, se distanciarem da realidade imediata, por ficarem absortos em seus pensamentos e por serem muitos deles sozinhos, solitários mesmo nesta realidade imediata, por quererem viver assim ou mesmo por serem obrigados a isto por alguma circunstância como no caso de Spinoza. Tal distanciamento da realidade imediata é de fato algo que acontece como eu disse ironicamente a meu amigo, mas longe de ser uma atitude do filósofo esporádica a um problema cotidiano, ou o resultado de uma circunstância, é praticamente uma necessidade da filosofia que obriga o filósofo a ser só, solitário, obriga-o a uma solidão filosófica, mesmo que ele não seja e esteja de fato só no mundo das Ideias como muitos pensam. Porém, uma solidão necessária para que pense neste mundo das ideias aquilo que é imediato e óbvio para muitos na imediaticidade do cotidiano, mas tão pouco sentem necessidade de filosofar sobre a imediaticidade de suas vidas.

Pensando neste distanciamento do filósofo da realidade imediata e ao mesmo tempo na sua necessidade de explicar esta realidade imediata, se aproximar dela mais íntima e profundamente do que todos, pressupostamente, de modo metafísico, num distanciamento total e absolutamente da realidade, criei então conceito de a-partamento da filosofia com a realidade imediata, escrito deste modo estranho com o propósito mesmo de uma estranheza conceitual, mas que pode ser percebido no cotidiano quando uma pessoa diz a outra: - Vixe, você filosofou agora! Um conceito a partir do qual minha arkhephylosophia em relação a diversos filósofos e temas filosóficos e que se refere em geral a esta característica de distanciamento do filósofo da realidade imediata cotidiana, algo que é desde Tales de Mileto, de quem Diógenes Laércio diz gracejando que uma vez ao andar olhando as estrelas caiu num buraco. Mas que não foi o único a ter sua vida exposta em anedota por Diógenes Laércio ao documentar A vida e doutrina dos filósofos ilustres em suas anedotas, pois de outro Diógenes, o de Sinope, o cínico, o cão, Diógenes Laércio disse que vivia num barril (o Chaves de sua época!) e perambulava pelas ruas como mendigo, certa vez saindo com uma lanterna em pleno dia procurando homens verdadeiros, isto é, de virtudes e autossuficientes.

Diógenes de Sinope foi um dos precursores do estoicismo, mas antes disto, foi discípulo do cinismo de Antístenes que foi discípulo de Sócrates a quem se deve um distanciamento muito particular do filósofo da realidade imediata, pois geralmente Sócrates ficava absorto em seus pensamentos se distanciando da realidade momentaneamente, como quando estava indo para o Banquete de Agatão relatado por Platão. Platão que transformou o distanciamento do seu mestre em seus pensamentos no próprio ato de filosofar quando ao pressupor como virtude um apartar a alma de todos os vícios do corpo, ele diz que o filósofo em sua alma dialoga consigo mesmo e faz dos diálogos de Sócrates em diversos lugares a sua dialética a partir da qual ele chega às ideias verdadeiras sobre a realidade imediata. Uma virtude a partir do distanciamento da alma do corpo que vai ser o ponto de partida de toda uma ataraxia buscada pelos epicuristas a partir dos cínicos e, principalmente, pelos estoicos em sua apatheia, isto é, em sua busca por uma ausência de paixões ou de perturbações, no caso, as paixões e perturbações da realidade imediata, cujo principal representante é Sêneca que em uma de suas cartas a Lucílio fala Da solidão dos filósofos e demonstra no sentido estoico o que é esta necessidade da solidão filosófica quando diz logo no início dela:
'Tu me aconselhas a evitar a multidão', escreves, 'e que me afaste e me contente com a minha consciência? Onde estão aqueles teus preceitos que recomendam morrer em ação?' O quê? Pensas que estou te aconselhando à inércia? Eu me refugiei e fechei as portas para poder ser útil a mais gente. Nunca passo um só dia no ócio: dedico parte da noite aos estudos. Não me abandono ao sono, mas sucumbo, e continuo no trabalho com olhos caídos e cansados pela vigília.
Eu me afastei não apenas dos homens, mas também das coisas, e em primeiro lugar das minhas: ajo no interesse da posteridade. Escrevo pra transmitir advertências salutares, por exemplo, receitas de medicamentos úteis, que experimentei como eficazes em minhas próprias feridas, as quais, se não curaram completamente, ao menos não se alastraram mais.
Mostro aos demais o caminho certo, que conheci tarde e cansado de tanto vaguear. ...
(Sêneca, Aprendendo a viver, p. 19. Coleção L&PM Pocket)
Os padres da Igrejas em sua solidão monástica vão aprender muito cedo o que Sêneca aprendeu tarde, ou mesmo muito tarde como ele, como no caso de Agostinho. Descartes também vai aprender isto quando obrigado a permanecer sozinho num quarto em uma de suas viagens como militar devido ao mau tempo também começa a meditar seu cogito e muitos filósofos mesmo que não tenham nenhuma relação entre si vão sentir esta necessidade da solidão para filosofar, alguns num ascetismo atroz que beira a paranoia e a esquizofrenia recusando todo tipo de prazer cotidiano. Assim cada um a seu modo vai se distanciando da realidade imediata tentando se aproximar dela em seu a-partamento filosófico que é uma separação que é ao mesmo tempo uma ligação, neste caso, com a realidade imediata. Algo paradoxal, de certo, mas necessário na medida de que disto depende todo seu filosofar e, portanto, sem o qual não se filosofa necessariamente, o que isto não quer dizer que o filósofo viva ou deva viver fora da realidade imediata num mundo de sonhos em seu solipsimo como pensava Descartes em seu cogito, mas que a realidade imediata para ele nunca é tão imediata como muitos pensam, pois depende do que se pensa sobre ela e de como é sentida.

Para muitos em seu senso comum a solidão filosófica é uma tristeza infinita que causa mal-estar e angústia somente, contudo, para alguns filósofos ela é uma alegria infinita advinda de uma substância infinita única tal como para Spinoza, o mais solitário dos filósofos, mas não por menos o que mais ensina que o ser humano nunca está só na natureza, pois existem infinitas coisas nela advindas da desta substância infinita única que é a natureza e Deus e que, diferente do que diz Sêneca e o estoicismo, não nos convida a cedo na vida excluirmos todas as afecções do corpo, isto é, excluir todas as suas paixões para se poder viver uma vida melhor, mas nos convida a viver mesmo estas paixões do corpo pensando-as ao mesmo tempo com os outros, pois como diz o poeta, é impossível ser feliz sozinho, e como digo eu parodiando Sócrates: Só, sei que nada sei! 

O que isto quer dizer, por fim, ser Abaporu!!!

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