Merlí - a inoportuna filosofia
O ser se diz de diversos modos, disse Aristóteles, e o mesmo pode-se dizer da filosofia, por mais que um logocentrismo a domine com a fala (phoné) tendo um privilégio em relação ao logos (discurso) filosófico, como bem acentuou Jacques Derrida. Mas no início de sua Metafísica, Aristóteles, ao dizer que "Todos os homens, por natureza, tendem ao saber.", demonstrou que este saber começa pelo amor pelas sensações e que, dentre todas as sensações, a da visão é a sensação mais amada: "Com efeito, não só em vista da ação, mas mesmo sem ter nenhuma intenção de agir, nós preferimos o ver em certo sentido, a todas as outras sensações." (Grifo meu.)
Em tempos em que tudo gira em torno do ver, que as imagens das propagandas, como diz Deleuze, são as principais inimigas da filosofia atualmente como antes eram os simulacros dos sofistas, e que as telas de celulares, computadores, tablets e smartvs fazem ver muito mais a realidade do que os livros, estas coisas antiguadas e inóspitas do século XVI que para se abrir não precisa de controle remoto nem de energia, algo extraordinário nos dias de hoje, a série catalã Merlí (2015), de Héctor Lozano, disponibilizada em dezembro deste ano pela Netflix, demonstra que a filosofia, algo que desde Platão é invisível aos olhos em suas Ideias, pode, sim, ser vista. E muito bem vista numa atuação digna de aplausos estonteantes pela interpretação de Francesc Orella, Merlí Bergeron, um professor de filosofia temporário do ensino médio no Instituto Àngel Guimerà, e de seus peripatéticos, como ele chama seus estudantes de 1º ano.
Fenômeno da emissora catalã TV3, com meio milhão de espectadores na Catalunha e distribuída pela Astremedia para toda a Espanha, com média de 800 a 900 mil espectadores, a série Merlí demonstra que a filosofia não é algo tão invisível e inútil como se pensa. Ademais, Merlí começa sua primeira aula dizendo justamente isto a seus estudantes, que quer demonstrar que a filosofia serve para alguma coisa, inclusive, para se fazer uma série pode-se dizer. E que série! A qual não deve nada a nenhuma outra em seus dramas e comédias, com a diferença que é sobre filosofia, literalmente sobre filosofia, com a maioria dos seus 13 episódios da 1º temporada nomeados por filósofos (Platão, Machiavelli, Aristóteles, Sócrates, Schopenhauer, Foucaul, Guy Debord, Epicuro, Hume e Nietzsche) ou escolas filosóficas (Os céticos e Os sofistas), e cujo primeiro é sobre os peripatéticos, os estudantes de Merlí.
Quem pensa que a filosofia além de não poder ser vista, não servir para nada é também chata, ou deve ser chata, é obrigado a engolir mais este preconceito, e quem pensa que a televisão só serve para alienar os jovens também. Tão acadêmica quanto pode ser e juvenil sem ser uma Malhação televisiva, a série Merlí mostra que a filosofia é mais interessante do que pensam muitos estudantes e pode ser menos chata do que a tornam muitos acadêmicos. Ela dosa com a virtude aristotélica do justo meio o drama e o humor na medida certa, sem excesso ou falta, demonstrando que a filosofia, mesmo vista como útil ou agradável, é inoportuna como uma mutuca tal qual Sócrates disse que era para os cidadãos atenienses no dia de seu julgamento e que está ali, ao lado do nome de Merlí na abertura mostrando que nada está por acaso nela, a não ser o próprio Merlí. Isto porque tudo nele é por acaso, desde a própria interpretação do personagem por Francesc Orella substituindo o ator Lluís Homar pouco antes de começar as filmagens tal como acontecera com o próprio Merlí que substitui um professor que pedira licença. Se a ideia de série em si mesma é a de uma ordem previsível em seus episódios, ela é subvertida por Merlí cujas aulas não seguem o programa definido pelo Instituto Angel Guimera, tão pouco sua moral, e tão pouco podemos imaginar o que ele fará em seguida, e pode-se muito bem assisti-la sem seguir a ordem dos episódios, se deleitando com o modo como cada filósofo e filosofia se apresenta, apesar de sua cronologia inevitável de acontecimentos.
Dizer que Merlí, personagem título desta série, é um professor de filosofia do ensino médio é dizer, porém, muito pouco sobre ele, o qual vamos conhecendo em cada episódio sobretudo como um filósofo com muitas máscaras. Um filósofo que, neste caso, se metamorfoseia como personagem conceitual dentre os muitos que os filósofos criaram até hoje e que a televisão agora cria e que se muda de máscara a cada vez no filósofo ou filosofia que dá título a cada episódio. Assim, pode-se dizer que ele é aristotélico, o novo Aristóteles, mas sua ironia nos faz vê-lo também como Sócrates e suas ações éticas como um Nietzsche em seus melhores escritos, ou ainda como um Maquiavel, ou mesmo mostrando-se um Platão em agonia dialética. De todas as máscaras, porém, uma se destaca, a de pai, divorciado, que mora com a mãe, uma atriz de teatro, e com um filho homossexual em relação ao qual o exerce magistralmente o papel de anti-édipo e do qual busca se aproximar depois de anos de ausência e separação. Isto, por sinal, faz da série mais do que uma série sobre professores e estudantes numa educação escolar, e, sim, sobre educação de modo geral, incluindo a dos filhos em todos os dilemas de sua vida e, neste ponto, é uma crítica excelente a toda a educação punitiva exercida por pais, professores e diretores na sociedade atual.
As muitas máscaras dionisíacas de Merlí na série demonstram o poder que ela tem de fazer filosofar e não simplesmente de mostrar a filosofia de modo nostálgico como se se estivesse num Mundo de Sofia. Não é para aprender filosofia que ela serve simplesmente, mas para fazer se apaixonar por ela como todo filósofo se apaixona, platonicamente, sem nunca conseguir alcançar sua verdade de modo absoluto. Mais ainda é para ver a filosofia na prática, numa prática que se encastela muitas vezes nas universidades em tons sérios, sóbrios e mesquinhos sem qualquer amor reinante por ela naqueles que a cortejam, sem saberem tratá-la bem como disse Nietzsche de muitos filósofos em relação à verdade. Uma prática que Merlí subverte e inspira como inspiram muitos professores de filosofia do ensino médio em escolas públicas de todo o país e em muitos lugares do mundo e não são visto, mas que podem ser vistos encarnados em Merlí.
Num momento, enfim, que a filosofia é destituída mais uma vez do ensino médio público de todo o Brasil, a série Merlí mostra como é estúpida a sua exclusão e como um pouco mais de aulas de filosofia não faz mal, mas muito bem para todos os estudantes e até mesmo para televisão em sua audiência. Que esta série seja feita por uma televisão da Catalunha e seja um sucesso na Espanha que recentemente viveu sua maior crise econômico política desde a ditadura de Franco demonstra que a crise na educação que existe no Brasil não está no ensino, mas nos políticos e empresas televisivas que propagam os desmando daqueles para ganharem audiência em vez de propagarem filosofia para engrandecer seu povo e acabar de vez os desmandos de políticos que atrasam o país com sua ignorância sobre educação e mais ainda sobre ética.
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