O comunismo natalino

Feliz Natal!

Então é Natal... É interessante como nesta época do ano as pessoas se tornam comunistas e não mais capitalistas como muitos costumam pensar. Mais ainda, criticam abertamente o capitalismo naquilo que é o seu princípio fundamental segundo Adam Smith, no caso, o egoísmo. E, sobretudo, não se perdoa aqueles que não pensam nos pobres e se valoriza abertamente que se divida com o próximo ou o distante, muito distante até, a propriedade privada, ainda que seja muito pouco o que cada um tem para dividir, um único pedaço de pão.

O comunismo é o princípio da sociedade e não a destruição dela como pensam muitos anticomunistas. É o princípio da vida em comunidade que o comunismo primitivo representa que rege a vida das pessoas e as une no Natal, mas que é mascarado por elas e a elas todos os dias do ano e há muito tempo na história. Nesta data, como demonstra o célebre Um conto de Natal (A Christmas Carol), do britânico Charles Dickens, até mesmo Ebenezer Scrooge, o mais avarento de todos os capitalistas, aquele pai e patrão egoísta que nega todos os princípios de comunidade representado pelo Natal, até ele se vê no fim de sua vida diante do dilema colocado a todo capitalista: uma vida de solidão sem ter amigos ou estabelecer com as pessoas o princípio de todo o comunismo, primitivo ou histórico, o da amizade.

Ninguém quer ficar só nesta época do ano. Ninguém gosta de se sentir só nesta época do ano. Ninguém, por mais que fique só nesta época do ano, pensa que ficar só é o melhor a se fazer, pois quer sempre estar-com alguém, nem que seja diante de uma tela brilhante de televisão, computador, tablet ou celular, comungando com as pessoas o calor desta lareira natalina pós-moderna a aquecer os corações de cada ser solitário no mundo.

O que define o ser humano é o fato do homem ser social, isto é, a sua incapacidade de viver só, como dizia Aristóteles, o que isto demonstra que o comunismo é o princípio da sociedade qualquer que seja ela e não o fim dela, oposto a ela como insistem em dizer os capitalistas. O fato do ser humano ser incapaz de viver só não é porque ele seja incapaz de criar, produzir e viver de sua produção sozinho, mas porque há uma necessidade inerente nele, imanente de estar-com alguém, comungar com os outros de um espírito de comunidade, antes de querer constituir o espírito de um povo como nação e querer destruir todos que se opõem a eles, próximos ou distantes. Não por acaso, Aristóteles preconiza que a família é o princípio da vida social em comunidade que se confunde com o princípio de propriedade e, mais particularmente, com o princípio de propriedade privada. Ou ainda, com o princípio de um poder religioso e político de que o pai é o senhor que manda na mulher, nos filhos e nos servos, escravos, empregados, como já demonstra também Aristóteles.

Aristóteles não é considerado um dos maiores filósofos do Ocidente à toa. Nele se expressa toda a tradição e contradição do Ocidente na relação que analisa do que é comum e do que é privado na política. Mas também, não por acaso, ele é o divisor de águas da modernidade com sua economia, alimentando tanto capitalistas como comunistas desde os primeiros momentos de suas vidas. Como bem observa Marx, tudo se passa naquele momento em que Aristóteles define o valor de uso e o valor de troca entre as pessoas, quanto o que é produzido como útil para todos passa a ser trocado e não mais dividido entre elas em comunidade, e, deste modo, o produto adquire um valor de troca superior ao seu valor de uso, isto é, uma mais-valia tornando-se uma mercadoria. No caso, quando o produto passa a ter um valor diametralmente oposto ao de sua utilidade, pois como definem muito bem séculos depois de Aristóteles os éticos utilitaristas ingleses, como Jeremy Bentham e Stuart Mill, o princípio da utilidade, ou valor de uso de um produto, se define na medida em que é um bem ou um benefício para o máximo de pessoas possíveis e o valor de troca ou o princípio da troca no capitalismo é senão o de que o produto a ser trocado beneficie o menos possível de pessoas, pois só assim ele adquire um maior valor ou mais-valia , tal como nos demonstra Marx e todos os capitalistas, e os éticos utilitaristas não discordam também disto, e sua ética se define senão por tentar evitar isto.

Se há algo que os neófitos anticomunistas nunca conseguem entender e talvez durante toda sua vida não entendam é que Marx não é odiado pelos capitalistas por ser comunista, por defender o comunismo, mas por mostrar a todos o que é ser capitalista, o que é ser Ebenezer Scrooge na realidade. Nenhum economista capitalista discorda das análises econômicas de Marx, nem pode, pois seria discordar do que eles próprios defendem, a mais-valia obtida com a propriedade privada que, num primeiro momento, é a terra, num segundo, os meios de produção artesanais e maquinais, no terceiro momento em que vivemos, os meios de produção virtual, isto é, as tecnologias analógicas e digitais. O problema dos capitalistas com Marx não é a sua análise econômica, é o fato dos próprios capitalistas perceberem que o problema que ele demonstra na economia política capitalista é incontornável, qual seja, o de que a mais-valia de uns é necessariamente a menos valia de outros, e que isto nunca poderá ser solucionado com base no princípio do capitalismo desde Smith, que é o egoísmo, a propriedade privada derivada dele e a mercadoria como expressão desta propriedade privada que uns têm mais do que outros conforme o modo de produção capitalista.

Karl Marx é o Jacob Marley de Dickens, o fantasma do sócio morto que assombra Scrooge na véspera do Natal assim como o comunismo é o fantasma que assombra os capitalistas, que desperta em todas as pessoas em cada época natalina e que nenhum capitalista pode aplacar, nem Scrooge, o maior de todos os capitalistas. Que o capitalismo tenha tido seu maior impulso na Inglaterra e que o maior conto anticapitalista de todos os tempos tenha sido escrito por um inglês não é mero acaso. Assim como não é mero acaso que o Papai Noel seja vermelho e que a partir dele o comunismo esteja presente ainda hoje em todas as casas das pessoas nesta época do ano como mito no qual se converteu o comunismo para os capitalistas.

Papai Noel, este bom velhinho, que vive toda sua vida para dividir sua produção de brinquedos com todas as crianças, que vive eternamente para produzir brinquedos para as crianças e os distribui na época do Natal é o fantasma do comunismo presente na sociedade capitalista e em cada pessoa que defende o capitalismo. O Papai Noel é o comunismo transformado em mito pelos capitalistas estimulando o ideal de que devemos distribuir as mercadorias e não trocá-las por dinheiro, de que o egoísmo deve ser combatido a qualquer custo. A produção de brinquedos de Papai Noel é uma produção comunista e não capitalista na qual os meios produção são utilizados para a produção de um bem que é para todos e não simplesmente para aqueles que podem pagar. O que Papai Noel produz não é um produto que é valorizado por seu valor de troca, por quanto vale, mas por seu valor de uso. Não é uma mercadoria valorizada pela força de trabalho necessária para produzi-la, mas um produto simplesmente que é valorizado pela utilidade que ele tem, a de ser um brinquedo, que não estimula o trabalho e a mais-valia proveniente dele, mas a diversão e a menos-valia que ela expressa.

Há quem não acredite em Papai Noel e veja nele a expressão de todo o capitalismo com um estímulo ao consumismo, ou mesmo veja nele o princípio de todo o comunismo e prefira dizer a seus filhos que Papai Noel não existe e que, na realidade, quem compra os presentes são os pais com o suor do seu trabalho. Em ambos os casos, a realidade é sempre vista a partir de um valor de troca e não de um valor de uso, o que demonstra o quanto o capitalismo faz parte da nossa vida e não adianta mascará-lo. Todos hoje em dia são capitalistas desde o nascimento, até mesmo o maior dos comunistas, pois não é possível viver alheio à sociedade capitalista, a não ser tribalmente em algum comunismo primitivo, mas também, igualmente, ninguém consegue negar o comunismo que existe em si mesmo e que o capitalismo expressa sobretudo nesta época e prega mesmo como doutrina.

Ho! Ho! Ho! Não sejam capitalistas! Não sejam egoístas, capitalistas!, eis o que o Papai Noel diz a cada ano perturbando o sono de cada pessoa, martirizando-a por não dividir com o próximo sua propriedade privada, por não despender parte de seu lucro ou seu dinheiro, por fazer do egoísmo algo maior do que a amizade, do que a felicidade de ter amigos, de compartilhar com o próximo ou distante suas alegrias e suas tristezas. O bom velhinho, este símbolo da sabedoria em qualquer vestimenta que esteja, demonstra que no Natal o que importa não são os produtos que se compra pra si, pra ser sua propriedade privada, para ser um bem particular, mas produtos que se compra para outros, que são distribuídos aos outros. O presente, este símbolo natalino por excelência, não é um simples produto que as pessoas trocam com outras, é o símbolo máximo de todo o comunismo na vida de cada um. É o momento em que o produto é valorizado pela presença do outro e não de si mesmo, que se valoriza a quem é dado o presente e não o presente ou quem dá o presente.

Dar um presente a alguém é fazer da presença do outro algo mais importante do que a sua própria vida, é negar o egoísmo reforçado constantemente pela sociedade capitalista em cada um de nós. Presentear é um ato que rompe a solidão da existência em que vivemos comumente preocupados com tudo que nos acontece e principalmente em momentos de crise. O presente é o momento em que estamos diante do outro e ele deixa de ser algo oposto a nós em sua diferença, o momento em que o Scrooge que habita cada um de nós, volta à sua vida e a vê, depois de ir ao passado e o futuro, com um olhar diferente no seu presente.

O comunismo natalino pode ser apenas um momento do comunismo nos anos e séculos de egoísmo capitalista da existência humana, mas é algo latente que sempre retorna e não adianta recalcá-lo como um desejo que não se quer real. O comunismo enquanto desejo de estar com outros, por mais negado que seja por muitos, é algo real em sua utopia, e o Natal é sua representação máxima. Não é o capitalismo que une as pessoas na época do Natal, nem nunca vai unir, é o comunismo. É a vida em comunidade que faz as pessoas presentearem umas as outras, darem-se de presente umas às outras em afetos maiores do que desafetos.

Se a frase máxima do comunismo proferida por Marx e Engels em seu Manifesto Comunista, "Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!", manifesta a união de uma classe num determinado momento histórico do capitalismo, manifesta sobretudo a necessidade de união que o Natal representa para além de uma luta de classes. Se esta união de todos independente das classes sociais é uma utopia momentânea e hipócrita no Natal levando-se em conta todo o capitalismo e egoísmo vivido durante os anos, e séculos, ela não deixa de ser uma necessidade latente. Pois se o ser social é o que o ser humano é em sua essência, ou substância como dizia Aristóteles, ser social é ser comunista, é se unir a todas as pessoas numa comunidade, qualquer que seja a origem desta comunidade ou diferenças das pessoas que fazem parte dela, pois o que importa é que o bem comum seja sempre maior do que o bem individual.

É este bem comum superior ao bem individual que o comunismo representa e o comunismo natalino faz ressurgir a cada ano nas pessoas. Um bem comum que não é a negação das individualidades como muitos pensam e querem fazer crer, mas que afirma todas elas, que faz pensar em todas as diferenças individuais como algo que não é negativo. Um bem comum que se faz presente no Natal senão como época de nascimento que se para os cristãos é o nascimento de Cristo, podemos dizer como Platão que é o momento em que nossa alma esquece tudo que viveu anteriormente, todas as alegrias e tristezas, de uma vida e que é preciso aprender tudo novamente. Cada nascimento é assim um eterno retorno à vida que pode ser diferente a cada momento que se vive e o Natal nos lembra que é preciso sermos diferentes aprendendo tudo de um modo diferente.

Se para Platão, porém, a filosofia deve nos fazer escapar deste eterno retorno da vida à vida, a arkhephylosophia enquanto filosofia em tempo real busca fazer pensar diferente tudo que é presente, busca fazer pensar em si mesmo o eterno retorno da vida à vida, desde sua origem (arkhé), pois não há filosofia sem vida. O comunismo natalino é um destes momentos em que podemos perceber isto, que é a vida em si mesma que importa, e não o que a destrói, e que a felicidade está diretamente relacionada ao viver, pois também não há felicidade sem vida. Mas que o supremo bem que é ser feliz não é viver solitário egoistamente, mas viver com os outros, que não há vida sem ser-com-os-outros, que são os outros que nos fazem viver a vida, física e metafisicamente, e vivendo-a com os outros sermos felizes.

Dizer Feliz Natal!, por fim, é dizer estou feliz por estar com você, por você existir, por sua presença na minha vida e que, não importa o tempo ou o espaço, você está-aí assim como eu estou-aqui! E assim, somos felizes, separados e ligados ao mesmo tempo por uma separação que é ao mesmo tempo uma ligação, que é um a-partamento da vida que nos é comum na Terra na qual somos todos comunistas mesmo que queiram nos tornar capitalistas.


Feliz Natal!

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