Deus ex machina

De tudo que cabe na ponta dos meus dedos... é o que me faço. Esta frase no cartão postal da artista literária e visual Fernanda Meireles reflete bem o desenvolvimento da tecnologia atual que, para muitos chega ao nível dos vestíveis, a qual descreve produtos tecnológicos utilizados pelos seres humanos em seu corpo para medir diversas funções de interação dele, orgânicas e com o seu meio, cujo principal vestível é o relógio que, assim como o telefone, passou a ser smart (inteligente, esperto... moderno) e é agora um smartwacht.

A palavra vestível para descrever as futuras tecnologias deste nível tecnológico, apesar de bem aplicada na situação de algumas das tecnologias como no caso do relógio ou de roupas, porém, não demonstra o nível atual da tecnologia que é o último nível que a tecnologia pretende alcançar, o sensível. Não é o fato de se vestir tecnologia ou o fato da tecnologia poder ser integrada ao ser humano sendo vestida por ele que está em questão com as novas tecnologias, mas o fato da tecnologia cada vez mais sentir como um ser humano. Em outras palavras, da tecnologia ser cada vez mais sensível em vez de vestível, ser cada vez mais humana e menos máquina, de superar a expressão Deus ex machina, como algo inesperado e sem sentido, inumana e mesmo divina no que é capaz de fazer, para ser algo tão sensível como o ser humano, mesmo não sendo um, como os animais, que mesmo não se tendo provas suficientes de seu pensamento, apesar das ações deles, eles ainda conseguem passar algo de humano ao ser humano com suas carinhas de Gato de botas do Shrek.

Que as máquinas estão relacionadas a cálculos mecânicos em sua origem como na expressão Deus ex machina, inventada pelo teatro grego, cálculo eletrônicos na modernidade e algorítmicos mais recentemente, isto não é novidade. As máquinas são produzidas para calcular, isto é, contar que quer dizer medir através de números um espaço, um tempo, uma extensão compreendida no espaço e tempo, ou mais recentemente, um espaço-tempo. Neste sentido, as máquinas são, desde sua origem, uma extensão do cérebro humano e da capacidade humana de pensar a partir dos números e não uma extensão de suas mãos, de tudo que cabe nelas a partir de seus dedos, não foram feitas para sentir...

Pelo menos esta foi a história das máquinas até recentemente, antes dos aparelhos infravermelhos mostrarem o caminho a ser seguido pelo homem, isto é, de mostrar aos homens como as máquinas podem ser utilizadas para sentir o calor e não simplesmente medi-lo em seu temperatura como um termômetro. Em outras palavras, mostrar ao homem que as máquinas informáticas como são os computadores podem cada vez mais sentir a presença de algo tal como os seres humanos, ainda que não possa pensar no que sentem, o que faria delas máquinas verdadeiramente sencientes aparentadas com os animais que, com uma inteligência artificial ou uma capacidade de decisão relacionada à sua senciência cada vez mais sugestiva, faria delas senão similares aos seres humanos completamente, como imagina a ficção científica há tempos, desde o Deus ex machina grego se diria, mas principalmente a partir do século XX e meados dele.

A capacidade de sentir a presença de algo define o estado atual das tecnologias chamadas de vestíveis e começa a superar um conflito que ao mesmo tempo retrai e impulsiona o desenvolvimento tecnológico, no caso, o conflito dos seres humanos com as máquinas que impulsiona muitos a irem além deste conflito. Neste sentido, os filósofos em seu iluminismo humanista, mas principalmente os religiosos, são aqueles que se colocam mais contra o desenvolvimento das tecnologias, não por considerarem elas inúteis em sua ciências, mas por substituírem o homem e Deus no que diz respeito em sua criação. Deste ponto de vista, o Paolo Rossi em seu livro Os filósofos e as máquinas e, principalmente, em O nascimento da ciência moderna, mostra muito bem como todo o desenvolvimento mecânico no início da modernidade passou por investidas conjuntas de filósofos que eram não apenas pensadores, mas pensadores morais, que pensavam as máquinas do ponto de vista de uma espiritualidade religiosa, atribuindo aos engenheiros mecânicos e sua técnica uma capacidade indigna e vil, portanto, degradante, como diz ele em O nascimento da ciência moderna:


...vale a pena lembrar que no verbete mécanique o Dictionnaire Français de Richelet (publicado em 1680) trazia ainda a seguinte definição: "o termo mecânico, com referência às artes, significa o que é contrário ao conceito de liberal e de honrado: tem sentido de baixo, vulgar, pouco digno de uma pessoa honesta". As teses de Cálicles ainda continuam vivas no século XVII: mecânico vil é um insulto que, quando for dirigido a um fidalgo, leva-o a desembainhar a espada. (ROSSI, 2001, p. 42)

Neste sentido, Rossi um pouco antes demonstra que o pensamento dos franceses não estava distante do pensamento dos italianos às vésperas da revolução copernicana de Galileu Galilei, este que demonstra todo o obstáculo religioso não à ciência propriamente dita, mas à técnica relacionada a ela que Galileu soube tão bem aplicar. Assim, diz Rossi:


Na obra Mechanicorum libfi de Guidobaldo dei Monte publicada-em Pésaro em 1577 encontramos esta mesma defesa, baseada em argumentos análogos: em muitos lugares da Itália “se costuma apelidar alguém de mecânico por escárnio e insulto, e alguns ficam irritados por ser chamados de engenheiros”. (2001, p. 42)

 Porém, os obstáculos impostos aos engenheiros mecânicos da época, não vinham apenas da Igreja, com seu obscurantismo, mas também da filosofia e da ciência com seu humanismo e naturalismo renascentista crescente, como ressalta Rossi, demonstrando principalmente que a relação das ciências com as técnicas no início da modernidade não foi tão próxima como é atualmente, ao ponto de serem indissociáveis para muitos e não se poder pensar a teoria sem a prática, a ciência sem a tecnologia. Mas se as ciências conseguiram superar sua relação com a técnica, a filosofia e a religião permanecem como trincheiras a elas, sem querer pensar a tecnologia de um ponto de vista humano, a não ser o humano vil, como no caso de um instrumentalismo e de uma razão instrumental ou de um humano desprovido do sentido do ser como no caso de um existencialismo ontológico.

Se as máquinas podem se tornar cada vez mais sencientes abrindo portas literalmente para o homem adentrar ainda mais num mundo tecnológico e fazer parte delas ao ponto de fazer surgir um Homo ex machina que supere o conflito entre homens e máquinas do ludismo moderno por uma relação cada vez mais próxima dos homens com as máquinas, separados e ligados ao mesmo tempo a elas num a-partamento, a questão depende do quanto as máquinas são capazes de tocar (touch) os seres humanos como eles tocam elas e deixarem de ser pensadas como vestíveis e passarem a ser vistas como sensíveis, como de fato são aos vários touches que damos nela, mas também à voz que lhes ordena algo e a tudo que sonhamos como na simulação de Osmose de Char Davies descrita por Pierre Levy, em Cibercultura, fazendo da realidade natural e humana senão virtual a partir senão das sensações e do que elas nos permitem imaginar para além da tela na qual vemos apenas ainda o mecanismo a partir do qual levanta-se (upload) e abaixa-se (download) ainda o Deus ex machina como imagem e semelhança do ser humano, uma sombra de sua realidade, mas não ainda um ser humano. Algo que elas nunca serão, mesmo bicentenárias, enquanto não se virem como máquinas como os seres humanos se veem como seres humanos, não cópias de algo em sua semelhança, analogia, representação, simulação, mas diferentes de tudo que existe que ele sente na ponta de seus dedos.

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