A inútil filosofia

É comum se dizer que a filosofia é inútil e muitos filósofos costumam também aceitar isto, por crítica ou por desdém. Afinal, a filosofia não é uma fé que move montanhas ou ciência que produz tecnologias. A filosofia cria ideias que muitas vezes ela não domina voltando-se contra ela como ideologias.

Quando a filosofia ainda era grega, a inutilidade da filosofia tinha um sentido cultural muito específico. Ela era a consolidação de uma sociedade que via no trabalho uma condição menor, motivo pelo qual ele era mais destinado a escravos e servos. A filosofia era parte da ideologia dominante na época de que cultivar a alma era melhor do que cultivar a terra e dispor desta para seus próprios benefícios, mesmo que se precisasse disto, o que não quer dizer depender totalmente disto.

Sócrates foi o primeiro filósofo a pisar na terra a cultivar esta ideia, mesmo que muitos outros já tivessem feito isto. Foi o primeiro a encarnar esta ideia na alma e defendê-la durante parte de sua vida, o suficiente para que discípulos como Platão, principalmente, a transformasse numa filosofia propriamente dita e Aristóteles, como discípulo deste, definisse o cultivo da ideia filosófica como primeiro, isto é, como uma metafísica. Não por menos sendo Aristóteles aquele que identificaria a filosofia com o ócio senhorial como uma contemplação das ideias e de poder possuí-las já que não precisava se preocupar com os afazeres cotidianos como as mulheres, os servos e os escravos e demais trabalhadores da época.

Completamente inserida na sociedade grega, a filosofia era já à época vista como inútil, que diga Xantipa, mulher de Sócrates, ou Diógenes Laércio, com seus relatos das peripécias filosóficas, o primeiro jornalista do cotidiano, no caso filosófico, que se tem em mente. Neste sentido, não importa o quanto os filósofos criaram nesta época a verdadeira época de ouro que se tem em mente, eles não são reconhecidos plenamente pelos gregos, nem por muitos ainda hoje em qualquer lugar do mundo. A imagem de Tales de Mileto olhando para o céu e caindo num buraco é a imagem da filosofia cristalizada no tempo e nos olhos de quem olha para um filósofo, a imagem de alguém que não faz nada a não ser contemplar o céu despreocupando-se com a terra a seus pés ou tudo que está ao seu redor. Não importa também que os filósofos digam o contrário, ou que muitos pensem que a filosofia é útil de alguma forma, pois, neste caso específico como em outros, para muitos, a imagem jocosa de Tales caindo vale mais do que mil palavras.

O fato da imagem da filosofia como inútil valer mais que mil palavras é algo propriamente ideológico, por isto não adianta ir contra, já que nada pode destruir uma ideologia, como diria V, em V de Vingança, ao dizer que ideias nunca morrem. Os filósofos gregos criaram, neste sentido, uma ideia de filosofia que se tornou uma ideologia comum que qualquer pessoa no cotidiano reconhece, basta perguntar a elas. As pessoas nunca sabem para que serve a filosofia e o simples fato de não saberem demonstra que a filosofia é algo inútil, que não lhes faz falta, diferentemente de uma religião a qual elas acorrem a cada fim de semana, em dias alternados ou a cada momento em orações convulsivas sempre necessárias. A filosofia não faz falta ainda como faz a ciência constantemente requerida para se criar novas tecnologias para salvar o mundo ou destruí-lo completamente.

A inutilidade da filosofia criada pelos gregos se tornou ideologia propriamente quando a religião cristã e, em seguida, a ciência transformaram a vida cotidiana das pessoas na Europa dando a elas uma função na vida. Para algumas, a função de governar, para outras, a de ser governado, e, entre estas, a de criar formas de umas governarem as outras através de tecnologias. Ou seja, quando o trabalho deixou de ser algo indigno para ser digno, a Deus e aos Reis, e mais ainda para os Capitalistas, a filosofia passou a ser não apenas inútil, mas uma inutilidade depreciativa, sem dignidade alguma como outrora ainda tinha quando fazia parte ainda de uma classe, a dos senhores de terra gregos.

O início da sociedade capitalista na Idade Moderna europeia foi a consolidação da ideologia da inutilidade da filosofia, algo que ainda hoje insiste e persiste, mesmo com o declínio da religião produzido pela ciência, e pelo declínio desta fazendo ressurgir aquela em suas formas mais arcaicas e míticas. A ideologia da inutilidade da filosofia na modernidade superou a ideia de filosofia que os gregos criaram e domina atualmente a vida das pessoas no cotidiano ao ponto de não apenas elas não saberem para que a filosofia serve, mas também de odiá-la quando a conhecem, por ir contra toda a fé e ciência sempre úteis em sua vida e na sociedade capitalista. Não apenas o ser foi esquecido no tempo como diria Heidegger, também foi esquecida a filosofia que buscava desde Sócrates, e antes dele, conhecer o ser na physis ou na ânima, isto é, na natureza ou em si mesmo.

Não importa que as pessoas busquem ainda o ser, conhecerem o mundo ou a si mesmas, isto em nada contradiz Heidegger, pois o ser, no mundo ou em si mesmo, que elas buscam conhecer não pode ser mais conhecido pela filosofia, somente na sociedade capitalista sustentada pela fé e pela ciência em seu cotidiano. Isto porque, buscar o ser pela filosofia é algo que não implica dominá-lo em sua natureza ou alma, prometendo novas tecnologias ou novas montanhas a serem removidas. Pelo contrário, implica em se deixar dominar pelas ideias da filosofia, em ser filósofo, se tornar inútil, pelo menos por algum tempo. Em outras palavras, parar para pensar como fazia Sócrates quando era dominado por seu daimon em vez de pensar andando como um peripatético, pior ainda, pensando que peripatético quer dizer ser um pateta, quando quer dizer, pelo contrário, filosofar no sentido de Aristóteles em sua filosofia metafísica. Parar para pensar, se fixar durante um momento que seja com os pés na terra, sentir a gravidade lhe sustentar em pé fazendo correr por seu corpo toda a energia do planeta como um daimon, tal como fazia Sócrates, ou se perder em pensamento andando como fez pressupostamente Tales de Mileto não é mais desejável ante o peripatetismo aristotélico reinante, de não ter que parar nem pra pensar, de não se querer mesmo parar para pensar, ter aversão a fazer isto, mesmo quando se faz.

Quando Deleuze e Guattari se referiram à sociedade nômade, arcaica, como uma máquina de guerra contraposta à sociedade sedentária do aparelho de Estado em Mil platôs fazendo antever um século que, segundo Foucault, seria deleuzeano talvez por muitos destes mil platôs, eles estavam descrevendo a sociedade peripatética na qual vivemos hoje em que parar para pensar é algo não apenas inútil, mas sedentário, portanto, contra todo o dinamismo nômade que se requer hoje em dia carregando a casa nas costas, no caso, numa bolsa, pasta ou mochila, ou mesmo a vida toda num notebook, tablet ou smartphone. O que, neste sentido, se o século é deleuzeano, mas também guattariano, e temos muito que aprender com Deleuze e Guattari, isto não quer dizer que o peripatetismo da sociedade capitalista atual que eles descrevem no devir nômade não é tão melhor do que o ser sedentário do Estado no que diz respeito ao capitalismo que esquizofreniza a vida cotidiana das pessoas fazendo-as andar sem cair em buracos enquanto pensa, isto é, fala ou escreve num smartphone.

A filosofia enquanto criação de conceitos de Deleuze e Guattari em sua análise da sociedade demonstra como a filosofia, além de inútil, é problemática quando se torna uma filosofia de Estado, isto é, uma filosofia parada no tempo, no caso, uma ideologia. Mas o nomadismo filosófico a partir de um devir do pensamento não é menos problemático ao retomar a ideia peripatética de pensar em movimento, isto é, pensar andando como o nômade, fazendo de toda e qualquer parada um problema àqueles que querem ser constantemente nômade, estar constantemente em movimento e veem nisto algo necessário, ainda mais necessário atualmente em que não apenas tempo é dinheiro, mas, sobretudo, espaço é dinheiro e é preciso ocupar todos os espaços possíveis ou retrabalhar todos os espaço de modo a melhor (re)territorializá-lo. Isto porque se o capitalismo criou o Estado moderno, com todas as suas estrias resultantes de seu sedentarismo, ele agora o destrói fazendo todos desejarem ser esquizofrênicos paranoicos ou paranoicos esquizofrênicos por não conseguirem ficar parados, pararem para pensar.

Os pés descalços de Sócrates a pisar a terra estaticamente sentindo seu daimon não é o mesmo que os pés calçados que pisam e territorializam a terra atualmente de modo nômade ou sedentário, pois a ideia de inutilidade da filosofia em suas paradas para pensar ou pensar andando distraidamente como fazia Tales de Mileto se tornou uma ideologia que domina a sociedade e não menos a filosofia atualmente, na qual parar é um sinônimo de morte do corpo, mas também do pensamento, o que se rejeita atualmente por um devir pensante tão inútil como antes, ou ainda mais, já que não serve mais nem à ideia de filosofia, tão somente ao capitalismo nômade da vida cotidiana na qual não por menos o filósofo está inserido e ao qual não serve também quando fica parado, pensando...

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