Largados e pelados: vivendo nas árvores o comunismo primitivo em realities shows

Os Estados Unidos não são apenas os maiores produtores cinematográficos em termos de quantidade, mas também os maiores produtores de reality shows. Uma breve zapeada no controle de uma TV a cabo mostra como cada canal tem o seu próprio estilo de mostrar a realidade, muitos deles mostrando como os Estados Unidos são o maior país capitalista do mundo, pois tudo neles se torna capital, isto é, algo trocável por dinheiro, em alguns casos, muito dinheiro como no caso de bens de luxo que muita gente não daria um vintém.

Diante de tantos reality shows sobre o capitalismo norte-americano é curioso notar que até mesmo o comunismo primitivo é vendido ao mostrarem a realidade de muitas pessoas vivendo situações em que a sobrevivência na natureza depende da comunidade entre elas, seja como casal ou como amigos em territórios quase isolados. Alguns realities neste sentido são Largados e Pelados (2013) (Naked and Afraid, literalmente Nu e com medo) e Vivendo nas árvores, todos eles mostrando a realidade de pessoas que são ou obrigadas a conviverem com a natureza como humanos primitivos, como no caso de Largados e pelados, ou vivem quase deste modo por escolha própria, como em Vivendo nas Árvores. Obviamente, não é possível resgatar um comunismo primitivo, nem vivenciá-lo plenamente, a não ser por tribos que vivem ainda em regiões cujas culturas sofreram pouca influência social capitalista. Contudo, que vivências deste tipo, forçadas ou escolhidas, sejam desejadas no maior país capitalista do mundo demonstra algo interessante, que o capitalismo não é algo pleno na vida das pessoas e que elas requerem vida para além dele, mesmo que seja uma vida limitada, por um determinado tempo ou por diversos bens que não podem ser obtidos nas florestas e que se resumem apenas à sua alimentação.

Em Largados e Pelados é interessante notar como há a vivência de um comunismo primitivo baseado no gênero, em que, em geral, um homem e uma mulher são deixados pelados num lugar natural isolado (ilha ou selva) por 21 dias dispondo de apenas uma bolsa com um diário, uma câmera para filmagens à noite, um microfone num colar, um mapa e um instrumento escolhido para facilitar algum trabalho, como um isqueiro ou machado. Neste reality é mostrado não apenas como seres humanos sobrevivem num meio natural, mas como eles convivem entre si num ambiente natural de modo que há todo um processo de adaptação do casal, de um em relação ao outro, já que o fato de estarem pelados obriga-os a suspenderem ou colocar entre parênteses a visão de mundo social no qual, por exemplo, a roupa é algo importante. Neste sentido, eles são obrigados a não apenas se despirem de suas vestimentas materiais, mas também de suas visões de mundo e olharem-se como seres humanos primitivos se olhavam, ou pelo menos como pensamos que se olhavam, isto é, com uma certa indiferença pelos corpos "nus" assim como os demais animais em relação aos seus corpos também "nus". Algo que é difícil para os seres humanos, como se mostra no reality, pois uma das primeiras coisas que fazem em geral é cobrirem suas partes sexuais de modo a não exporem sua nudez.

O fato de estarem nus é um problema sério para os participantes deste reality show por se exporem deste modo ao olhar do outro, mas é algo com o qual podem se adaptar sem maiores dificuldades. Contudo, o mesmo não acontece em relação à adaptação deles ao meio ambiente que não conseguem enfrentar facilmente com a nudez dos corpos, seja por estarem sem roupa, mas, principalmente, pela ausência de pelos, uma vestimenta natural dos corpos presente nos humanos primitivos e também nos animais, que nos faz pensar que eles não estão tão nus como pensamos. E com certeza no corpo está a principal dificuldade de uma vivência primitiva dos seres humanos que participam deste reality show, pois, por mais que os participantes tenham mais conhecimentos científicos do que os seres humanos primitivos, estes dispunham de meios naturais muito mais apropriados para a relação com o meio ambiente.

A nudez, apesar de parecer apelativa neste reality show, é um componente essencial para se pensar o comunismo primitivo, pois o corpo é aquilo que precisa ser defendido e, neste caso, é fundamental. Não é explorado em Largados e Pelados a relação sexual dos participantes, até porque são pessoas algumas vezes comprometidas, mas em alguns momentos é demonstrado que ao precisarem se esquentar, eles recorrem um ao corpo do outro, pois não por acaso o frio é o principal problema deles à noite diante da nudez de pelos de seus corpos. É preciso, portanto, que eles se protejam de tudo em sua volta e precisam saber compartilhar tudo que podem para isto, inclusive seus corpos que são também o que dão ao ser humano o primeiro senso de propriedade privada, o qual eles são obrigados a suspender em seu juízo para superar as adversidades do meio natural em que estão sobrevivendo.

A necessidade dos corpos dita o ritmo das relações do casal entre si e com a natureza, seja quanto à proteção deles contra aquilo que possa fazer sofrer seus corpos, seja quanto aquilo de que seus corpos necessitam, no caso, alimentos. No caso da alimentação, as relações de gênero que se colocam não diferem muito das relações de muitas tribos indígenas no qual o homem assume um papel de caçador e a mulher de um cuidado da casa e outros cuidados. Percebe-se, neste caso, como homens e mulheres não mudaram desde um comunismo primitivo em suas relações de gênero, os homens mais exploradores do ambiente e as mulheres mais protetoras do lugar onde vivem. Mas, neste caso, uma divisão social do trabalho constitui a relação de gênero do casal mais do que um preconceito, pois estes papéis, apesar de definidos naturalmente, não são exercidos por uma coerção social tão intensa, como diria Durkheim, e por vezes eles se invertem em seus papéis porque ambos estão numa situação de sobrevivência.

Nesta questão de sobrevivência, o diálogo entre os participantes revela outra vivência do comunismo primitivo, pois se eles são obrigados a compartilharem a mesma linguagem entendendo a partir dela tudo em sua volta, mostrando um ao outro, por exemplo, algo perigoso, como um animal ou planta, eles são mais ainda obrigados a se entenderem a partir dela, isto é, a compartilharem um pensamento como o mais comum possível, isto é, um pensamento em que um concorde com o outro, em que um escute o outro de modo que ambos consigam o objetivo comum que é chegar a um determinado ponto indicado pelo programa. Em geral, depois de algum tempo juntos e se conhecendo a pouco tempo, obviamente, este entendimento a partir da linguagem se torna mais difícil, pois cada um busca mais tomar uma posição privada em relação ao outro do que buscar uma posição comum, para o bem deles.

De qualquer maneira, isto é apenas uma experiência para os participantes de Largados e Pelados a qual eles podem abandonar a qualquer momento ou são obrigados abandonar por qualquer problema de saúde que possam ter que é de responsabilidade dos produtores do reality show. Algo diferente, porém, acontece em Vivendo nas árvores no qual pessoas escolhem viver no alto de árvores em florestas dos Estados Unidos e utilizam meios primitivos de sobrevivência, como a caça e a pesca, mas também relações de troca não capitalistas, isto é, não intermediadas pelo dinheiro. Neste caso, há um limite tênue entre o que é apenas mais um reality show e uma mostra da realidade de fato de um comunismo primitivo, pois os "participantes" destes realities são pessoas reais em condições reais de sobrevivência e cuja sobrevivência está constantemente em risco sem uma possível ajuda, pelo menos ao que parece, já que diante deste limite, acompanhados a maior parte do tempo pelos produtores do programa, é difícil imaginar que os produtores mostrem, de fato, a morte deles na realidade por uns picos de audiência, o que, na verdade, poderia ser a morte do programa também.

Novamente, a vivência de um comunismo primitivo não é plena e esta não é a questão principal, pois o que é mais importante é que o capitalismo também não é pleno em reality shows como Vivendo nas Árvores. Mais ainda as condições em que vivem as pessoas nas árvores demonstra, pelo contrário, o abandono de toda a plenitude do capitalismo não por uma experiência de vida qualquer no meio de uma floresta até o limite que seus corpos aguentem, podendo voltarem pra casa a qualquer momento e desfrutarem de tudo que o capitalismo lhe possibilita, mas porque escolheram viver sem ele. Neste caso, Vivendo nas Árvores, mostra uma realidade sem capitalismo, mesmo quando seria possível a partir dele uma vida mais confortável nas árvores, como em um outro reality show, Casas nas Árvores (Treehouse Masters) que se propõe a mostrar justamente isto, um especialista em construção de casas nas árvores com todo o conforto que elas possam ter.

Em Vivendo nas Árvores não são casais que se submetem a uma experiência nada romântica isolados numa ilha deserta, mas homens, alguns jovens, outros de meia idade, vivendo solitários em árvores a maior parte do tempo e sobrevivendo a partir do que a floresta os possibilita. A adaptação ao meio natural é algo diferente neste caso, pois eles não estão nus num meio natural totalmente hostil aos seus corpos, nem tão pouco há uma questão sexual e de gênero envolvida. São homens vivendo como seres humanos primitivos, com roupas que os protejam do clima, os mais velhos bem barbados, e dotados de um conhecimento técnico, óbvio, de construções de casas em árvores, mas também de armadilhas para pegar animais, de armas e toda e qualquer tecnologia primitiva que lhes possibilite sobreviver às intempéries do tempo e aos perigos de outros animais. O fato de morarem em árvores demonstra além disso uma adaptação maior com a natureza na medida em que, nelas, eles podem sobreviver melhor aos perigos apresentados pelos animais que os rondam como ursos e outros animais selvagens.

Se a sobrevivência não chama tanto a atenção de um espectador ansioso por ver pessoas em situação limite com todos os seus dramas pessoais, choros e desesperos, como em Largados e pelados algumas vezes, o modo como os homens constroem suas vidas nas árvores e convivem em uma harmonia entre si e a natureza no limite tênue que é possível demonstra como um comunismo primitivo vai além da sobrevivência e se constitui como uma forma diferente de viver a vida para além do capitalismo. E isto não porque eles usem técnicas primitivas, pois algumas delas não são nenhum pouco primitivas, como roldanas para suspender algo pesado ou transportar objetos de um ponto para outro, como a água de um rio até a casa na árvore. Mas, principalmente, porque eles estabelecem uma relação de comunidade entre si que é de uma troca sem que haja exploração do trabalho de um em relação ao de outro e de uma comunidade com a natureza que é no mesmo sentido, sem exploração dela, apenas dispondo do que é necessário para sua sobrevivência. Uma relação de troca comum que eles estabelecem também com as pessoas capitalistas que estão em sua volta, trocando com elas objetos que eles produzem, como facas, ou trabalho em que são especialistas, carpintaria, por objetos ou instrumentos que necessitam para realizar um trabalho ainda que temporariamente sem qualquer intermediação de dinheiro, portanto, vivenciando um comunismo de fato no meio de uma sociedade capitalista.

Existe no caso de Vivendo nas Árvores, portanto, não apenas um limite tênue entre o que é realidade e o que é um programa que mostra a realidade, isto é, um limite tênue entre o capitalismo dos realities shows e o comunismo primitivo mostrado na realidade por estes programas, mas também um limite entre o que é reality, o comunismo, e o que é show, ou espetáculo, o capitalismo em sua forma atual na sociedade tal como foi definida por Guy Debord. Naturalmente, diante das condições adversas em que vivem os homens nas árvores, poucas pessoas se estimulam para viver deste modo. Contudo, para além da sobrevivência delas não atraente para muitos, transparece uma vivência independente da intermediação do dinheiro, em que é possível as pessoas viverem em harmonia com a natureza e entre si e trocarem aquilo que lhes é necessário ou o que é o produto do seu trabalho sem que haja a exploração de um pelo outro através do lucro requerido pelo capital. Em outras palavras, que do comunismo primitivo mostrado nos realities shows norte-americanos, se possa passar para um comunismo utópico pensado para além do capitalismo cuja realização não é impossível, apenas ainda não foi realizada pelo desejo humano.

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