A filosofia no ensino médio
O que era uma ficção distópica agora é uma realidade: a Filosofia como disciplina foi retirada do ensino médio. Tal decisão, tomada juntamente com a exclusão da disciplina de Sociologia, é uma decisão política e econômica, assim como toda a Reforma do Ensino Médio, que não tem caráter educacional, mas político e econômico em sua fundamentação ideológica. Primeiro, ao considerar que tais disciplinas não são importantes para a sociedade, pois seus conteúdos podem ser ensinados sem necessidade de um professor específico da área, o que é uma questão ideológica política, pois ninguém pensa isso de uma disciplina como a Matemática, mesmo que suas origens sejam filosóficas com Tales de Mileto e Pitágoras. Em segundo lugar, uma questão econômica que visa sobretudo demitir professores de áreas menos importantes para o interesse econômico do governo em seus gastos e das empresas em suas necessidades de mercado prevaleçam tornando os estudante cada vez mais propensos a aceitarem normas sem qualquer questionamento delas.
O fato de excluir a filosofia como disciplina e aprovar apenas "estudos e práticas" ditos filosóficos ter sido uma decisão tomada por 326 de 330 deputados da Câmara e da grande imprensa do país ter noticiado o fato como "Câmara aprova exigência de filosofia e sociologia no ensino médio" (Folha de São Paulo), "Câmara aprova emenda que inclui filosofia e sociologia no ensino médio" (O Globo), e não "Filosofia e Sociologia são transformadas em estudos e práticas do ensino médio", demonstra que o interesse é político e ideológico, pois visa claramente confundir aqueles que não sabem a diferença entre "estudos e práticas" e "disciplinas". Tal diferença, porém, os políticos que promovem esta reforma do ensino médio sabem muito bem, pois há para eles um objetivo claro, acabar com estas disciplinas, mas deixar para aqueles que não sabem a diferença a imagem de que elas não acabaram, para que não haja nenhuma crítica à sua decisão. Sinal dos tempos que virão e já se apresentam nos quais qualquer decisão tomada pelo governo não é questionada, mas obedecida como ordem militar. Que a imprensa participe desta confusão, não é algo incomum, como não foi em outros momentos sombrios da história do país, pois não é interesse dela neste caso propor em geral uma reflexão sobre a questão, apenas, como de costume, apresentar os fatos, e como estes fatos não estão na pauta do dia envolvendo corrupção, por exemplo, são de menor importância.
Juntas, Filosofia e Sociologia como disciplinas formam elas próprias um núcleo de extremo problema para sociedade desde sua origem. Excluídas no Brasil desde 1971 pelo golpe militar e retornando como disciplinas específicas obrigatórias na forma de Lei em 2008, (Lei nº 11.684) o retorno delas foi muito questionado na época pelos mesmos que estão na base do governo atualmente, inclusive, na parte educacional. A exclusão delas na ditadura imposta pelos militares demonstra claramente o ápice do problema que elas causam, contudo, o problema que causam vai muito além deste período e do Brasil, pois diz respeito a como as pessoas adquirem consciência da realidade. Consciência e realidade que são palavras muito utilizadas pelas pessoas politicamente cujo sentido é propriamente filosófico, foi mesmo criado pelos filósofos, mas que poucas compreendem.
No caso da Sociologia, sua origem criou um problema em relação às demais ciências naturais em sua epistemologia, pois os "estudos e práticas" das ciências naturais não podiam ser aplicados totalmente na área de humanas. Em princípio, até se tentou fazer um arranjo metodológico com Auguste Comte e Émile Durkheim, através de um funcionalismo, no qual utilizavam métodos das ciências naturais para analisar os seres humanos, mas Karl Marx e Max Weber com seus racionalismos filosóficos e histórico-econômicos demonstraram o quão distante está este funcionalismo da realidade humana, mesmo que ele se enraíze nela. Mas eles demonstraram mais, que a imperfeição não é apenas deste arranjo metodológico, mas de qualquer metodologia que se pretenda universal nas ciências humanas, pois tudo depende da visão de mundo que se tem da realidade. Uma visão de mundo ademais que, para Marx, não seria possível através dos filósofos ou da filosofia segundo sua máxima de que "Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é transformá-lo.", como se a filosofia fosse incapaz de transformar o mundo, o que tal senso comum é totalmente contradito na medida em que se tente responder a pergunta mesma sobre o que é o mundo, como se conhece o mundo, por que se deve conhecer o mundo, por que ter uma consciência do mundo, por exemplo, a partir da economia política como Marx propôs, e não como muitos marxistas que usam esta frase como mantra para expurgar o demônio filosófico, aquele que habita todo filósofo desde Sócrates e que faz temer todos na sociedade.
O problema da filosofia em relação à sociedade é mais antigo e tem uma longa história. Não é uma preocupação com o método ou está relacionado a uma visão de mundo social, mas a uma visão do homem sobre si mesmo na sociedade, no caso, uma visão do que é importante para ele na sociedade. No que diz respeito a esta visão, um filósofo não é um importante para a sociedade e Sócrates mais do que qualquer outro demonstrou isso quando foi acusado e morto pela lei democrática de Atenas por impiedade, isto é, por uma questão ideológica política que associa intimamente religião e política, o principal motivo da exclusão dos filósofos na sociedade. Sócrates não foi o primeiro filósofo a ser julgado por impiedade, Anaxágoras antes dele foi julgado e muitos foram os que sofreram processo por impiedade neste período como demonstra Priscilla Gontijo Leite:
No século V, os processos com a acusação de impiedade mais conhecidos são contra Anaxágoras, Fídias, Aspásia, Diágora de Melos, Andócides e Sócrates. Já para o século IV, sabe-se que Aristóteles, Demades, Teofrasto, Demétrio de Falero, Estílpon de Mégara e Teodoro foram processados por impiedade. (Leite, 2014, p. 68)O processo por impiedade resume de um modo geral a questão da exclusão do filósofo na sociedade, pois como diz também Priscilla:
Na Atenas do século V e IV a.C. vários filósofos foram processados por crimes de impiedade por causa da divulgação de suas ideias, que por vezes colocam em xeque os valores tradicionais da sociedade. (...) Percebe-se que a maioria das acusações de impiedade contra os filósofos é motivada por interesse políticos. (Leite, 2014, p. 61)A relação entre a religião e política é o que exclui em grande parte o filósofo da sociedade como aconteceu na Atenas democrática de Sócrates, mas também na Europa medieval, com Giordano Bruno sendo acusado e morto pela Inquisição por afrontar a religião cristã no século XVI, e Galileu Galilei sendo processado também e recluso em casa pelo resto de sua vida. Casos, porém, como o de Baruch de Spinoza no judaísmo, demonstra que não importa a religião, todas elas vão excluir os filósofos da sociedade pelo mal que causa a ela. Um mal que é pressentido por outros filósofos, mesmo quando não vão a julgamento, como Descartes, que deixou de publicar um livro sobre física em sua época com medo de ser julgado por suas ideias serem parecidas com a de Galileu, e Kant, em seu texto O que é esclarecimento?, ao discutir justamente se o soberano deveria ou não aceitar a crítica dos filósofos, isto é, o esclarecimento que os filósofos propõem.
O que venha a ser este mal que o filósofo causa tanto à sociedade ao ponto de 50 minutos de aula dadas por um professor de filosofia no ensino médio se torna uma grande questão na reforma do ensino médio proposta pelos políticos brasileiros é simbolizado propriamente pelo demônio de Sócrates. Pois desde criança ele ouve uma voz que o impede de cometer erros, como o de participar ativamente da vida pública ou dos negócios do Estado, pois, como diz na Apologia, de Platão, “teria sido morto também num curto espaço de tempo e não teria realizado nada de útil, nem por vós nem por mim” (Platão, 1999, p. 84), já que, segundo ele: “Não existe homem que possa se salvar ao opor-se com sinceridade, não digo a vós, mas a qualquer outra multidão, e tente impedir que muitas vezes se cometam injustiças e se infrinjam as leis na cidade”. (Platão, 1999, p. 84)
A consciência que Sócrates tem em relação à sua exclusão na sociedade por vias legais e democráticas demonstrada muito particularmente por Platão é a consciência que todo filósofo adquire em sua vida, que a filosofia e a política são coisas antitéticas na prática, pois a filosofia busca a sinceridade ou a verdade um valor ético que os 324 deputados que aprovaram sua exclusão não tem e tão pouco muitos da sociedade que os defendem. A defesa da filosofia no ensino médio é a defesa de Sócrates em todo o seu questionamento da sociedade que é algo comum a todo filósofo e que muitos chamam de "doutrinação", quando a doutrinação é tudo aquilo que a filosofia se opõem em suas leis, motivo pelo qual ela é tão impiedosa como Sócrates foi, e somos, nós, filósofos até hoje. E seremos agora mais do que antes, com o demônio filosófico que habita em nós e nos faz expurgar todo o mal que nos tenta consumir, pois este demônio é a ética de uma consciência política que os políticos brasileiros e seus defensores não têm e que querem que ninguém tenha com a reforma do ensino médio.
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