O tecnicismo (ou teccinismo) da justiça no Brasil

A decisão da maioria dos ministros do STF em manter Renan Calheiros na presidência do Senado, mas torná-lo incapaz de ser presidente da República em caso de ausência do presidente Michel Temer e do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, mostrou novamente um tecnicismo da justiça no Brasil, um artifício que foi adotado no caso do impeachment de Dilma e voltou a ser utilizado na decisão da Suprema Corte de Justiça brasileira no caso de Renan e cujo objetivo principal é não se envolver nos problemas políticos causados pelos políticos a que é obrigada a julgar, isto é, sem querer julgar para não interferir na harmonia dos poderes.

Assim como aconteceu no impeachment da ex-presidente Dilma este tecnicismo é simples: trata-se de pautar a lei com base nos procedimentos adotados e analisar tão simplesmente se eles são falhos ou não, isto é, se estão de acordo ou não com o procedimento que deve ser adotado sem tomar qualquer decisão sobre o caso em questão a que se refere este procedimento. No caso do impeachment, como todos os documentos foram arrolados (para usar o judiciês) corretamente, todo o processo do impeachment foi legítimo para os ministros da justiça que desconsideraram os motivos políticos ou as intenções por trás dele. Neste caso, diferente do que é o costume nos julgamentos, os ministros da justiça no Brasil não quiseram saber sobre aquilo que é mais importante para fazer a justiça, isto é, impor a pena, no caso, a intenção do crime, que não foi julgado ainda pela justiça, somente pelos políticos que, neste caso, interferem diretamente no poder dos ministros da justiça, mas isto não é problema entre os poderes, somente quando estes interferem naquele.

No mesmo sentido desta questão técnica dos procedimentos, tomaram os ministros da justiça a decisão de manter Renan Calheiros na presidência alegando para isto motivos técnicos, alegando que ele não poderia ser presidente da República, mas do Senado não haveria problema. Neste caso, separaram tecnicamente a República do Senado, como se uma não tivesse relação com a outra, pois o fato de se declarar que um réu não pode ser presidente da República seria infame para a justiça, que seria totalmente desmoralizada, e neste caso o ministro Marco Aurélio estaria certo em afastar Renan da presidência do Senado, pois poderia vir a ser presidente da República, porém, isto não quer dizer, eis a questão técnica, que ele não possa ser presidente do Senado, pois uma coisa não tem a ver com a outra, está totalmente separada da outra, foi separada da outra pelos ministros. Ou seja, tecnicamente, a questão é procedimental segundo a lei, no caso, em relação a duas palavras ou dois tópicos: uma é ser Renan presidente da República, algo que ele não pode pela Constituição, o que seria senão rasgá-la declaramente se isso acontecesse, outra, é ele ser presidente do Senado, algo que não é dito pela lei e, portanto, tecnicamente possível.

Ao se apoiar simplesmente num jogo de palavras, República e Senado, trocando a possibilidade de uma presidência pela outra, os ministros fizeram uma operação na lei, isto é, operaram ela de modo a se adequar à situação que eles queriam legitimar, isto é, a permanência de Renan na presidência do Senado, sem questionar a lei e a sua observância. Fizeram, então, como Renan fez com o oficial de justiça: disse abertamente ao oficial que não estava ali para receber o ofício mesmo que o oficial o estivesse vendo. No caso dos ministros da justiça, eles disseram: não estamos aqui para julgar, mas julgaremos de qualquer modo, e fizeram o que tinham que fazer de modo técnico para não se comprometerem nem com a lei nem com a justiça, pois senão retardariam o processo, como Renan retardou o recebimento do ofício que determinava seu afastamento da presidência do Senado, o que, em ambos, os casos, o objetivo foi o mesmo, impedir que a justiça fosse realizada.

Ao observar a lei e o caso de Renan, os ministros da justiça tentaram então conciliar aquilo que estava totalmente fora da lei, a desobediência dele em não cumprir ordem judicial e o fato dele ser réu e ter que ser afastado como o foi Eduardo Cunha. No caso, tentaram conciliar o poder de justiça deles de julgar os fora da lei com o poder político do fora da lei Renan Calheiros de um modo técnico que não fosse nem contra a lei nem contra a política. Estabeleceram assim um discurso puramente formal e procedimental da questão, sem analisar os méritos dela que foram jogados para debaixo do tapete da história do Brasil pra figurar nas páginas de manuais políticos sobre a democracia brasileira que disseram estar defendendo com sua decisão sem qualquer interferência na relação dos poderes.

A questão da relação harmônica de poderes tão citada pelos ministros que tomaram a decisão de manter Renan Calheiros, porém, não é um poder dar tapinha nas costas do outro e dizer "tâmo junto", mas um poder limitar o outro que é o princípio básico de toda democracia moderna, incluindo neste caso, o poder da imprensa que não deve ser a bajulação que se vê a alguns políticos e a ofensa descarada a outros de quem não gosta. Deve ser uma relação de poderes e não uma técnica que adéqua um poder a outro promovendo o funcionamento comum deles sem qualquer problema, como a de uma fita isolante que esconde sob si a ruptura de um fio desencapado que se quer juntar de qualquer forma para fazer o democracia funcionar.

É preciso, neste sentido, ressaltar o tecnicismo da operação que o Supremo Tribunal Federal fez na Constituição e que não é diferente dos projetos de emendas constitucionais que os políticos estão fazendo no Congresso brasileiro, Câmara e Senado, sob mando do Executivo. Isto porque tal tecnicismo parte de uma visão de que a técnica é o que serve para resolver problemas mecânicos que surgem em determinados mecanismos manufaturados ou maquinais. Trata-se de uma visão moderna da técnica que não busca resolver problemas de fato, apenas resolvê-lo por algum momento até que a obsolescência sobrevenha à técnica escolhida para resolvê-lo. Há nisto toda uma evolução da técnica que se deve a uma visão dela como resolução de um problema imediato, uma invenção, um artifício que serve para determinado problema momentâneo que é comum a muitas pessoas.

Uma visão diferente da técnica nos propõe Walter Benjamin numa passagem de seu texto Crítica da violência e poder, quando considera que a técnica serve para resolver conflitos humanos e não problemas do cotidiano simplesmente, ainda que seja inevitavelmente sobre conflitos cotidianos numa micropolítica. Neste sentido, ele diz:

É nos casos em que os conflitos humanos se relacionam mais diretamente com bens materiais que se abre o domínio dos meios puros. Por essa razão, a técnica no sentido mais amplo do termo é seu campo apropriado. Seu exemplo mais profundo talvez seja o diálogo, considerado uma técnica de civilidade no entendimento. Nele não só é possível um acordo não-violento como a exclusão, por princípio, da violência encontra explicitamente sua expressão em uma relação significativa: a de não haver punição para a mentira. (Benjamin, 2011, p.139. Grifos meus.)
Os conflitos humanos sobre bens materiais, neste caso, mas sobre qualquer questão de justiça, para Benjamin, podem ser resolvidos de modo não-violento pela técnica do diálogo que é o entendimento entre aqueles que estão em conflito. Antes e muito antes de Habermas pressupor uma ética do discurso que privilegia o diálogo ou uma razão comunicativa como resolução de conflitos na democracia, Benjamin já pressupunha isto, mas colocando isto como uma questão de técnica. Contudo, técnica que tem um sentido diferente da que resolve um problema momentâneo, e sim que resolve todo e qualquer problema, pois a cnica tem aqui o sentido de ser aquilo que produz um entendimento possível entre quaisquer indivíduos em conflito e que requer o conflito como condição mesma dela. No caso, não um conflito objetivo quanto a determinado mecanismo, mas um conflito subjetivo, dos sujeitos envolvidos onde a intenção de cada um conta de modo independente, pois seus objetivos são diferentes e não comuns, e, se cada caso é um caso em particular, a técnica é sempre a tentativa de resolver todos os casos de conflito.

A técnica no sentido daquilo que produz um entendimento possível é algo totalmente diferente do tecnicismo promovido pelos ministros da justiça que, para resolver um problema objetivo, a interpretação da lei no caso de Renan, diferente do caso de Cunha, tomaram uma decisão objetiva a partir de uma parâmetro absolutamente técnico da lei, isto é, de que ela não se aplica no caso da presidência do Senado, apenas da presidência da República. Ou seja, resolveram o problema de interpretação da lei a partir de uma escolha de palavras, tirando a primeira do mérito da questão e deixando apenas a segunda, quando as duas estão diretamente incluídas no problema e não podem ser separadas desta forma. Os ministros não dialogaram ou fizeram dialogar a lei tendo em vista um entendimento dela para resolver um conflito subjetivo, no caso, tentar entender como uma pessoa réu poder ser presidente, seja do que for, pois o que mais importa neste caso é a função de presidente, e não a de se é da República ou Senado. Neste caso, se é possível alguém acusado crimes presidir o Senado de um país e, neste sentido, governar a vida de toda a população dele, isto é, entender como que alguém que, como colocou a ministra Rosa Weber, não pode ser presidente da República, pode ser presidente do Senado se a prerrogativa moral é a mesma, pois a função é a mesma, a de ser presidente.

Em vez de discutir esta questão e julgar a possibilidade de se permitir ou não que Renan ocupasse uma presidência, da República ou do Senado, e este foi o questionamento do impedimento de Renan pelo partido Rede, os ministros que votaram a favor dele preferiram resolver a questão por meio de um tecnicismo judicial, ignorando qualquer diálogo e entendimento sobre a questão. Não promoveram, por sua vez, um diálogo democrático do poder Judiciário com o poder Legislativo como condição da harmonia dos poderes no qual a diferença entre poderes deve sempre prevalecer, mas igualaram o poder da Justiça ao da Legislação ao nível da lei, quando este a produz e aquele a aplica, mas sem que haja nenhuma discussão sobre ela, apenas um discurso artificial sobre ela que serve para adequá-la aos seus interesses particulares, no caso dos políticos do Legislativo de fugir à à justiça do Judiciário, e dos ministros do Judiciário de fugir à política do Legislativo.

Desse ponto de vista, o tecnicismo da justiça no Brasil é senão um teccinismo, uma utilização da técnica pelos ministros da justiça não para promover a justiça a partir de um diálogo e entendimento em qualquer caso possível, mas para esconder um interesse em particular, no caso, o dos ministros em manterem Renan Calheiros na presidência do Senado, mas não da República, com base no próprio interesse deles em não conflitarem com Renan ou fazer o Judiciário conflitar com o Legislativo. O procedimento que realizaram alivia o problema imediato de desgoverno do Brasil, mas não o problema do Brasil propriamente porque os que estão nos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário são incapazes de governar a si próprios limitando seus interesses particulares, que é uma condição ética para a existência da democracia. Incapazes de limitarem seus interesses particulares em benefício de todos, a democracia brasileira vai em direção contrária ao que muitos pressupõem e anseiam, pois não promove um diálogo cada vez mais entre os poderes cada um interferindo no outro quando um deles não exerce a virtude necessária ao seu poder, mas simplesmente diz: "tá tudo bem. Tâmo junto!" Assim, a harmonia de interesses dos três poderes que governam o país esquece absolutamente os interesses da população brasileira, ou seja, não se preocupam em resolver os problemas dela, mas os seus próprios problemas tecnicamente em seu teccinismo.

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