Os 13 porquês de Sócrates e da filosofia


O suicídio de Sócrates é um dos momentos mais emblemáticos e dramáticos da história da filosofia e também o mais controverso, ainda hoje discutido por filósofos e historiadores da filosofia que se perguntam por que ele aceitou sua condenação pelo tribunal de Atenas mesmo todos considerando-a injusta e, consequentemente, por que cometeu a pena capital contra si mesmo cometendo suicídio ao beber a cicuta como punição. Além dele, outros suicídios também se tornaram emblemáticos na história da filosofia contemporânea como o de Walter Benjamin (1940) quando estava prestes a escapar do regime nazista na fronteira da França com a Espanha. E mais recentemente o de Félix Guattari (1992) e Gilles Deleuze (1995) que fizeram a mesma ação deixando a todos também com muitos por quês.

O que levaram cada um deles ao suicídio é muito particular. Sobre o suicídio de Sócrates, Platão deixou todo um relato apaixonado no diálogo Fédon do último dia de vida do mestre na prisão no qual ele não estava presente no dia. Tal relato foi escrito muito tempo depois do diálogo Criton e da Apologia de Sócrates, bem como de Eutífron, e é o último diálogo no qual Platão tenta defender o mestre em sua decisão de contrariar a condenação pelos crimes de impiedade, corrupção dos jovens e criação de novos deuses. Mas como diante do tribunal ateniense que o julgara, Sócrates também está indefeso diante de seus discípulos na prisão quando é perguntado por Cebes por que ele estaria disposto a cometer o suicídio e, mais ainda, aconselha a Eveno que faça o mesmo "todo homem que pretenda ser filósofo com dignidade". Algo que preocupa seus discípulos que o questionam o porque disto, como Cebes que lhe pergunta: "De que forma crês que seja possível, ó Sócrates, que o suicídio sendo proibido, possa o filósofo querer seguir a quem morre?" E Símias complementa o raciocínio dele direcionando-o a Sócrates:

De fato, o que pleiteiam os homens sábios ao abandonar melhores senhores que eles e privar-se voluntariamente de sua ajuda? É a ti [Sócrates] que é dirigida a contestação de Cebes e te imputa a culpa de te separares tão voluntariamente de nós e abandonar os deuses que, de acordo com a tua própria confissão, são tão bons senhores. (Platão, 1999, p. 123. Os Pensadores)

O que se tem por sua vez no diálogo Fédon é toda uma tentativa de Platão de transformar a morte de seu mestre no tema de seu último diálogo sobre ele e também sobre sua filosofia. Mais do que um diálogo sobre Sócrates é uma tentativa de salvar seu mestre de toda a acusação na qual ele se viu envolvido por conta de sua ironia em relação aos deuses e aos cidadãos cujo preço ele pagava agora com a própria vida. São vários os porquês ou razões que Platão dá para a morte do mestre cuja principal é senão a da própria filosofia definida por Platão a partir da vida de Sócrates como uma preparação para a morte na qual a separação da alma em relação ao corpo no momento da morte se torna para Platão o porque de se valorizar a alma em detrimento do corpo, o inteligível em detrimento do sensível, ou ainda, a Ideia em detrimento da dialética. E mesmo assim ainda pairam dúvidas do porque Sócrates aceitou tão passivamente a morte cuja razão mais simples dada por ele é o fato de já estar muito velho e que morrendo estará junto aos deuses e sua sabedoria.

Benjamin, Deleuze e Guattari se não tinham vivido bastante como Sócrates também já tinham contribuído bastante em suas vidas para a filosofia e a posteridade humana com seus pensamentos questionadores da realidade e isto serve de consolo àqueles que, mesmo sabendo da mortalidade humana, não aceitam a morte mesmo daqueles que já são velhos e sofreram bastante, ainda mais quando é uma morte voluntária, no caso, um suicídio. Porém, restam sempre porquês àqueles que ficam e se perguntam como os discípulos de Sócrates qual o sentido de sua ações, por que não lutaram pela vida, como Sócrates lutou ainda em seu julgamento, por que morrer lhe pareceu a única saída para seus problemas particulares. E mais porquês surgem quando esta situação acontece em série e há um temor ainda maior por todos que se veem diante desta situação como no caso do livro Os sofrimentos do jovem Werther (Die Leiden des jungen Werthers, 1774) do romancista alemão Goethe no século XIX, um marco do romantismo alemão que teria pressupostamente começado uma série de suicídios de jovens que leram o romance e se identificaram com os sofrimentos do personagem provocando o que psicólogos chamam de efeito Werther. Um temor de que isto aconteça que muitos têm hoje em dia com a série Os 13 porquês (13 Reasons Why, 2017) por se tratar do caso de uma jovem Hannah Baker que comete suicídio e deixa relatos do porque fez isto, o que se teme que por uma identificação com as situações vividas pela personagem muitos jovens façam o mesmo o que atualizaria o efeito Werther.

Diferente do que aconteceu com Sócrates, ou ainda, Deleuze e Guattari, o que se coloca em questão tanto em relação a Werther como em relação a'Os 13 porquês não é o suicídio propriamente, mas o fato dele acontecer entre jovens diante de uma obra de ficção e não propriamente diante da vida, o que atemoriza aqueles que pensam que pensam que o menor contato com Os 13 porquês hoje em dia possa desencadear o efeito que a obra de Goethe causou em sua época. Contudo, o que espanta nisto tudo não é a identificação dos jovens com estas obras fictícias sem se perguntar o por quê, algo natural que aconteça em sua idade juvenil quando há muito mais uma ânsia de respostas fáceis para seus problemas na vida do que perguntas que coloquem seus problemas sob diversos ângulos, algo que somente é possível de um ponto de vista crítico. O que espanta outrossim é que também adultos em vez de se colocarem perguntas criticamente numa tentativa de saber porque jovens possam ou estão se identificando com a série, ou ainda se perguntar como resolver os porquês que a série apresenta e, assim, tentar entender os jovens e ajudá-los com seus problemas, simplesmente eles tomam a mesma atitude dos jovens escolhendo simplesmente dizer para eles não assistirem a série porque são imaturos pra isto. Isto é, são imaturos para a vida como são os adultos que incapazes de se questionarem sobre os problemas que passam seus filhos e a juventude hoje em dia, preferem simplesmente ignorar o que sentem, o que desejam, quais são suas paixões e sentimentos mais profundos.

O fato de ter se criado uma corrente contra a série Os 13 porquês que é passada cada vez mais adiante por quem assistiu e não quer que os jovens assistam demonstra o quanto a juventude hoje é edipianizada e complexada por todos que incapazes de ouvirem-na, preferem julgá-la como incapazes de assistir a uma série e poder lidarem com seus próprios medos e sua própria vida. Em vez de significarem a vida para os jovens em meio a todos os problemas dela, a melhor solução que muitos encontram hoje em dia é tirarem a própria vida das mãos dos jovens, privando-os de qualquer contato com a realidade para que cresçam felizes sem saber o que é a realidade de fato em alguns momentos. Pelo menos isto até quando ela os angustia inevitavelmente e os leva a problematizar a vida ao ponto de, independente do que vejam e do que leiam, eles acabem se matando ou matando alguém por justamente não saberem lidar com suas paixões e sentimentos e como resolver seus problemas afetivos como se vê hoje em dia infelizmente.

Conhecer a si mesmo, o lema délfico que Sócrates transformou em lema de sua própria vida foi uma questão colocada no julgamento de Sócrates quando se considerou que, por fazer os jovens questionarem a si próprios, ele foi acusado de corromper a juventude, algo que acontece novamente hoje com a série Os 13 porquês, quando se deveria perguntar a partir do lema délfico socrático:

1) por que os jovens não podem se conhecer na realidade?
2) Por que não se busca conversar com os jovens para ajudá-los a se conhecerem na realidade?
3) Por que se desconhece tanto os jovens na realidade e, mesmo assim, ainda pensa que os conhecem?
4) Por que mesmo quando jovens pedem ajuda influenciados pela série Os 13 porquês, mesmo assim se preocupa mais com a série do que em ajudá-los, em saber o que estão sentindo e que a série os faz querer demonstrar?
5) Por que se trata os jovens como crianças sem qualquer discernimento da realidade ou capacidade de compreendê-la?
6) Por que os jovens estão tão fragilizados ao ponto de uma série poder despertar neles um desejo de morte?
7) Por que desejam os jovens se matar mesmo ainda tendo uma vida inteira pela frente em que seus problemas podem ser resolvidos?
8) Por que há um ceticismo tão grande dos jovens em relação a si mesmos e dos adultos em relação a eles?
9) Por que mesmo todos os adultos já tendo passado pelo sentimento de angústia e desespero pelo que os jovens passam são eles, hoje em dia, incapazes de lhes transmitir suas experiências de vida como os militares que retornavam da guerra como Benjamin observou?
10) Por que em vez de rebater os jovens em um complexo edipiano de proibição dos desejos não se analisa o que desejam os jovens e tornam seu fluxo de desejo mais criativo e produtivo evitando que eles mortifiquem seus corpos e mentes de modo paranoico e esquizofrênico como analisaram Deleuze e Guattari?
11) Por que não se prepara os jovens para a vida da alma tal como Platão pensou e, para além do que pensou, para a vida corpo e seus afetos?
12) Por que não problematizar com os jovens suas próprias vidas em vez de se simplesmente proibi-los de viver?
13) Por quê?

Mais do que significar a morte de todos estes filósofos ou mesmo dos jovens no efeito Werther, ou possivelmente a partir da série Os 13 porquês, no caso desta por meio de diversos porquês eles não devem assisti-la,  trata-se de buscar com eles filosoficamente significar a vida, esta que angustia a todos em algum momento da vida incapazes que somos de lidar uma vez ou outra com nossos afetos e buscar junto com eles uma resposta pra tantos porquês nela. Pois é senão perguntando junto com eles por que vivemos que encontraremos uma resposta para a vida, ou talvez não, pois como diz Clarice Lispector, Viver ultrapassa todo o entendimento. E viver é senão a única forma de entendermos a vida, a nossa liberdade absoluta, posto que a morte é inevitável e, portanto, determinável em algum momento que vai acontecer, ao contrário da vida a qual sempre decidimos viver a cada dia e que é, por sua vez, determinada por nós ao perseverarmos em viver tendo como único porque ela mesma em seus afetos, como única razão de vivermos ainda que não saibamos porquê, porém, a cada dia se alegrando por viver mais um dia, pela vida que decidimos viver em vez de simplesmente morrer. A vida que nos dá a filosofia com todos os seus por quês.

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