Alucinando a realidade com Belchior


Tem pessoas que conhecemos por muito tempo e simplesmente desconhecemos totalmente de uma hora para outra. Tem pessoas que mal conhecemos e, de uma hora para outra, se tornam nossas amigas pela vida toda, ou mais do que amigas, ou mais ou menos do que isto, amantes, ficantes, crushs. Tem pessoas que nunca conhecemos, mas que é como se fossem nós mesmos travestidos num outro, como se nos alucinássemos e nos víssemos nelas, como elas ou fôssemos ela, tamanha a sensação de que tudo que ela sente, pensa e expressa é o que sentimos, pensamos e queremos expressar.

Tudo que está em nossa volta nos afeta e nos alucina a todo instante e as pessoas muito mais. Mas mais do que as pessoas em geral, os artistas são aqueles que mais nos alucinam ao nos fazer ver uma realidade nunca vista antes, que nos atravessa com toda sua expressão afetiva e toda afetuosidade, pois ser e obra se misturam num afeto ou em vários afetos artísticos, já que uma obra nunca nos afeta de um único modo, de uma única maneira, e sim, numa multiplicidade de afetos. O afeto por si só é um duplo, um acontecimento que se multiplica infinitamente.

Belchior era um desses artistas que nunca conheci, mas no qual me travesti muitas vezes e como muitos fortalezenses alucinei com sua morte querendo fazer da realidade algo que ela não é.  Mas ele nos ensinou com sua alucinação que deveríamos alucinar a realidade como ela é, algo absurdamente difícil de ser feito, posto que paradoxal, mas necessário. Alucinar a realidade no que ela é, isto é, que é senão fazer com o que o novo sempre venha nela ou se deixe vir nela, pois ele sempre vem. Alucinar a realidade que, paradoxalmente, não é fugir dela, mas olhá-la de frente e diante dela, se afirmar como algo novo, alguém que se diz no seu tempo, no tempo, na sua história e geografia, parte delas, mas sempre alucinando-as, pois "Tudo muda!/E com toda razão"!

Posso dizer neste breve ensaio que Belchior foi alguém que conseguiu com toda a arte de seu sentimento, pensamento e voz, e não por menos sua filosofia, alucinar a realidade de sua história e geografia como nenhum outro artista e no qual muitos se travestem imediatamente ao ouvi-lo cantar que é Apenas rapaz latino americano. Sim, latino americano, mas

Sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes
E vindo do interior, 

então não um latino americano ignorante político moldado na grana que ergue e destrói coisas belas e que "Diz que tudo é proibido", a quem ele soube muito bem dizer contra

Que tudo é permitido
Até beijar você
No escuro do cinema
Quando ninguém nos vê.

Mais ainda soube dizer a estes que não era quem eles pensam, pois ele não canta uma música

Correta, branca, suave
Muito limpa, muito leve
Sons, palavras, são navalhas
E eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém [!]

E como fere Belchior com seu coração jovem que "Que só entende o que é cruel, o que é paixão"! todos aqueles que querem alucinar a realidade para vis propósitos. Belchior cujo único propósito foi alucinar a realidade para que a víssemos melhor e a transformássemos em algo que não fosse o do vil dinheiro que nos faz rico, pois sabia que quanto mais o multiplicamos, diminui o amor, fugimos do amor mesmo "(n)as paralelas dos pneus n'água das ruas". Não, não devemos fugir daquilo que amamos, mas também não podemos fazer com o que o amamos permaneça sempre, pois o novo sempre vem, sempre uma novo tempo, sempre uma nova terra, sempre uma nova paixão, e é preciso ouvir Belchior infinitamente em nossos corações ao dizer alucinado, alucinando-nos que:

Você não sente nem vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
E o que há algum tempo era novo jovem
Hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer

Ah, como muitos não querem o novo e sempre querem viver Como nossos pais numa melancolia de um tempo que já não é mais, numa geografia que não mais nos contém, esquecendo algo simples que Belchior disse: "Viver é melhor que sonhar", pois sabia muito bem que devemos conter o amor em tudo que nos faz amar, pois ele

É uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa

E com amor, muito amor, podemos simplesmente amar o passado e esquecer que o novo sempre bem e sentimos doer no nosso peito uma dor profunda que é de nada ter mudado, de não termos querido mudar, não termos podido mudar, e uma melancolia nos dominar totalmente e, assim, apesar de termos feito, tudo,

Tudo o que fizemos
Ainda somos [sermos]
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Como os nossos pais

num vaticínio que nos atravessa a alma e nos lança numa alucinação que não possamos aguentar a realidade à nossa frente e preciso ser um sujeito de sorte como Belchior, um sujeito, no caso, que é alguém capaz de produzir sua própria sorte, seu destino, e nos mantermos são e salvo e forte contra todos aqueles que amam o passado e nós mesmos, hoje, quando ele se vai com Belchior em nossa lembrança. É preciso alucinar como ele que vida e morte se inverteram para podermos seguir em frente e acreditar no que ele disse: "Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro"! Sim, Belchior não morreu, pois artistas nunca morrem, pois eles são a encarnação viva de uma ideia, a de que já não podem sofrer no ano passado! Tudo que viveram foi vivido e nunca mais como diz o assum-preto e ao se perguntar o que se faz? espreitando já uma roupa nova, pois "o passado é uma roupa que não nos serve mais". E tudo deve ser COMO O DIABO GOSTA transformando "o velho no novo" sempre pois a regra,

a única forma que pode ser norma
é nenhuma regra ter;
é nunca fazer nada que o mestre mandar.
Sempre desobedecer.Nunca reverenciar.

Precisamos aprender a desobedecer o tempo e todas as geografias da vida com uma alucinação precisa sobre a realidade como Belchior produziu. Precisamos viver a vida alucinadamente sem nenhuma lembrança do passado como algo que deve voltar, sempre voltar, impedindo que o novo sempre venha. É preciso termos

a experiência
Com coisas reais [!!!]

numa alucinação constante da vida em acontecimentos que se multiplicam e a multiplicam dando cada vez mais a ela uma paixão alegre, uma paixão por alegria e não por tristeza, uma paixão pelo momento, pelo que acontece, pelo que está acontecendo, aqui, agora, hic et nunc. É preciso que nós

Um preto, um pobre
Uma estudante
Uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas
Pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite
Revólver: cheira cachorro
Os humilhados do parque
Com os seus jornais

todos nós que somos humilhados pelos jornais hoje e, sobretudo hoje, olhemos para a realidade como a minoria que nós somos

Doze Jovens Coloridos
Dois Policiais
Cumprindo o seu duro dever
[que]E defendendo o seu amor

matam muito mais do que amam, matam muito mais do que defendem a nossa vida, matam muito mais do que fazem viver e é preciso que saibamos dizer, com toda a força que nos contém vivos, sem nenhuma teoria, nenhuma fantasia ou algo mais

Longe o profeta do terror
Que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais
Amar e mudar as coisas
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais [!!!!!]

É preciso, peito sangrado de dor pungente sentir todo o afeto da realidade, e mesmo o jovem, justamente por sua juventude pode amar o passado e querer fazer com que eles renasça com suas lágrimas de crocodilo e não podemos cantar vitória e jamais, jamais, levar flores para a cova do inimigo. É preciso fazer como Belchior que fez da

Palavra e som são meus caminhos pra ser livre,
e eu sigo, sim.
Faço o destino com o suor de minha mão.

É preciso mais ainda, como ele, agradecer ao tempo e conhecer os inimigos de um novo tempo, o tempo por vir, conhecer, seu nome, residência e endereço para lhes poder dizer em alto e bom tom alucinado:

A voz resiste. A fala insiste: você me ouvirá.
A voz resiste. A fala insiste: quem viver verá. [!]

A palo seco:

E eu quero é que esse canto torto
Feito faca, corte a carne de vocês
E eu quero é que esse canto torto
Feito faca, corte a carne de vocês [!!!]

Diferente de muitos de seu tempo, de muitos de nosso tempo ainda, Belchior nunca multiplicou a dor, mas a transformou em alegria, fez de cada paixão triste e pela tristeza, uma paixão alegre e pela alegria. Artista que foi do seu tempo e para o seu tempo, mesmo sendo para todos os tempos demais, ele fez da sua Fotografia 3x4 a nossa fotografia, pois a sua história é a nossa, de rapazes e moças do norte, que se tornam violentos, desnorteados, desapontados, apaixonados como é comum no nosso tempo, que não sabe, enfim, alucinar a realidade, mas se deixa alucinar por ela. Belchior foi como nós que o ouvimos agora, olhos melancólicos, mas ele foi melhor do que nós, um melhor que ainda devemos ser, sempre. Pois devemos aprender com a noite fria como ele, este acontecimento simples que muda nossa vida eternamente na medida em que é para nós um acontecimento mesmo, pois,

A noite fria me [o] ensinou a amar mais o meu[seu] dia
E pela dor eu descobri o poder da alegria
E a certeza de que tenho coisas novas
Coisas novas pra dizer

Para ter coisas novas pra dizer é preciso ser artista. É preciso forçar o sentimento, o pensamento, a expressão a ser diferente. É preciso sobretudo perceber o acontecimento que é a nossa vida, a vida de um artista, ser artista, uma vida de afetos, afetuosidades, afetividade ao extremo e, Antes do fim perceber a maravilha que Belchior percebeu antes, muito antes de sua morte, e que devemos lembrar sempre no seu canto aédico do espaço e do tempo como os gregos ouviam tragicamente em sua bela em sua poesia que, nas palavras de Belchior a nós é assim:

Quero desejar, antes do fim,
pra mim e os meus amigos,
muito amor e tudo mais;
que fiquem sempre jovens
e tenham as mãos limpas
e aprendam o delírio com coisas reais.
Não tome cuidado.
Não tome cuidado comigo:
o canto foi aprovado
e Deus é seu amigo.
Não tome cuidado.
Não tome cuidado comigo,
que eu não sou perigoso:
- Viver é que é o grande perigo [!]

Vivamos este grande perigo que é a vida como Belchior, com Belchior sempre e nunca mais.



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