O chamado selvagem


Desde Aristóteles e os gregos o homem é considerado um ser social, impossível de ser feliz sozinho como diz Vinícius de Moraes. Numa paráfrase de Sócrates, eu registrei isto no seguinte pensamento: "só, sei que nada sei".

De todos os animais existentes na natureza selvagem, o ser humano é o único que se sente sozinho e decide levar uma vida solitário, que é quase uma punição para si por tudo que as pessoas pensam sobre isso. Entre os gregos, depois da pena de morte, o ostracismo, isto é, a expulsão de uma cidade e a impossibilidade de qualquer outra lhe acolher, era a pior punição. O desterro é a condição do vagabundo, do sem lei, do sem ordem, do ser bárbaro, isto é, oposto ao ser grego ou gregário.

Viver na Terra é viver numa comunhão de pessoas em laços sociais que definem o que nós somos a cada momento, a começar por sermos filhos, depois estudantes, depois trabalhadores, depois pais, não necessariamente nesta ordem, com exceção de ser filho, claro, que é como principiamos a vida. No caso, não apenas a vida a partir de nossa mãe, mas também de uma mãe mais antiga, a dita Mãe Terra na medida em que somos enquanto seres humanos considerados todos filhos dela, ou nos acostumamos a nos ver deste modo. Filhos ingratos, ela sabe muito bem, por tudo que fazemos a ela ao nos beneficiar de tudo nela e não darmos e não a beneficiarmos em contrapartida, pois não somos fiéis a ela, e quando somos é de um jeito meio curvo, como Cronos, seguindo suas ordens para depois descumpri-las sem perceber o que ela nos mostra com sua prodigiosidade.

No filme Na natureza selvagem, (Into the wild, 2007), de Sean Penn, podemos perceber como a Terra que tudo nos dá não é apreciada por nós e a negligenciamos ao ponto de vivermos nossa vida à margem dela e considerarmos todos aqueles que não vivem civilizadamente como nós uns bárbaros. Viver na Terra nunca foi viver uma obrigação de ser sociável, como se pensa, e não é como filhos que ela nos quer em geral, mas como seres humanos que desfrutem dela o quanto podem durante sua vida e retornem a ela quando já não mais viverem. Mas projetamos nela todo um cuidado de mãe que nunca quis nos dar, pois já nos deu o que mais poderíamos ter dela, a própria vida.

Incapazes de vivermos a vida na Terra sozinhos, a sociedade foi a forma de nos mantermos vivos na Terra. Não por não sermos capazes mesmo de muitas prodigiosidades para vivermos uma vida solitária nela, mas porque simplesmente não queremos isso. A solidão, a separação de tudo e de todos é sempre vista como um mal e não nos sentimos bem senão quando estamos com alguém. E quando não queremos mais viver com alguém ou nos isolamos de muitas pessoas, o que era um sentimento mal que a sociedade nos produz por querermos ficar sós se torna ele mesmo um mal que deve ser evitado e mesmo ojerizado por todos, como uma loucura, algo irracional já que a sociedade é uma vida racionalizada. Neste sentido, a solidão se torna um prisão e a culpa sua pena, culpa por estar só quando poderia estar com alguém em sociedade.

Se o bárbaro se opõe ao grego e todo um ser gregário, o selvagem, porém, não se opõe a nenhum dos dois. O chamado selvagem nem é bárbaro nem é grego. Nem é o ser sociável que se espera que seja em toda sua normatividade, nem é o ser fora da lei e da ordem que se vê como mal e que deve ser evitado ou punido, por suas ações ou simplesmente por existir como diferente da sociedade em que vive. Entre os bárbaros e o ser gregário, hoje civilizado, o selvagem é alguém cuja vida como o próprio nome sugere advém da selva como algo não cultivado pelo homem. É um ser humano que vive independente da sociedade e suas oposições bárbaras e que comunga das forças da natureza para sobreviver, as forças que há em si e que advém da selva na qual ele habita.

O selvagem, diferente do grego civilizado que impõe a lei ou do bárbaro que se opõe a ela, vive independente da sociedade aos cuidados da sua natureza selvagem e é capaz de viver sua vida solitariamente, pois tudo que precisa, a Terra lhe possibilita, desde que aprenda a prodigiosidade dela, isto é, suas artes. Para viver na natureza selvagem é preciso aprender a lei da selva na qual a natureza é sempre imprevisível e nenhuma experiência que possamos ter nos permite saber o que há por vir. O por vir é a condição mesma da vida na natureza selvagem, uma vida que conhecemos a cada momento um pouquinho mais, mas nenhuma experiência anterior nos prepara para ela, pois não há o que esperar no por vir, apenas o que pode acontecer.

Se somos em geral ingratos com a Terra e pouco fiéis a ela é porque acreditamos sempre que ela é nossa mãe e que ela está sempre lá para nos proteger e que ficar sós, sermos solitários, não é uma opção, é algo que devemos negar como um mal e que nossa mãe não quer que vivamos. Pelo contrário, a Terra quer que vivamos uma vida sempre autônoma e independente e todos os seres vivos são dotados desta capacidade, os humanos mais ainda. Toda a prodigiosidade humana advinda dela é a confirmação disso e ser selvagem é a condição mesma de nossa vida nela através de suas artes prodigiosas.

Viver uma vida selvagem, porém, não quer dizer necessariamente viver na natureza selvagem, mas viver a vida separada e ligada à natureza selvagem ao mesmo tempo, sorvendo tudo que ela nos possibilita livremente. No filme Na natureza selvagem Ã© possível compreender isto, pois o chamado selvagem não é aquele que se isola, mas aquele que vive sua vida consigo mesmo, isto é, solitariamente, e com os outros. É aquele para o qual viver a obrigação social e se opor a ela não faz sentido, pois a vida é voltada para o prazer de viver cada por vir no espaço e tempo com outras pessoas ou sem elas de modo independente.

Ser independente é o que todo jovem anseia, mas alguns se tornam bárbaros e outros civilizados, poucos conseguindo viver uma vida selvagem como Cristopher Jonhson McCandless. A sociedade tem as suas formas de nos convencer a deixar de lado o chamado selvagem e vivermos a vida de obrigações que todos esperam de nós deixando de lado nossos desejos e vontades de uma vida mais livre, o que não quer dizer sem lei ou ordem. Viver livre como Cristopher na natureza selvagem não é viver isolado, mas viver como ele viveu compartilhando sua vida com todos em sua volta sem se prender a papéis ou status sociais predefinidos e é como cada ser vivo vive na natureza selvagem e morre nela.

A vida feliz ou a felicidade que Aristóteles tanto nos fez pensar que somente encontramos na sociedade não é a vida da obrigação de trabalhar para a sociedade ou se opor a ela, é compartilhar nossa vida solitária com todos os seres vivos da natureza selvagem, incluindo os seres humanos, algo que Cristopher fez durante sua pouca vida plenamente e que devemos aprender a fazer se quisermos ser fiéis a Terra e não filhos dela simplesmente com toda nossa ingratidão.

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