Para quem escreve
Certa vez alguém me perguntou: para quem escreve? Talvez ela não soubesse, mas estava fazendo a pergunta mais difÃcil a ser feita a um escritor e a qual respondi rapidamente dizendo "para mim", logo depois romanticamente que também "para ela", pois sempre escrevi por desejo, por paixão, por amor a alguém que desperta a escrita em mim, ou ainda por algo que me faça escrever, no caso, a própria vida
Em minha vida de escritor que começou aos 13 anos, já passei por muitos tipos de escrita: a poesia em primeiro em lugar, que sempre me acompanha ainda que eu a desdenhe por não me achar um bom poeta; contos estimulado por contistas fantásticos como Jorge Luis Borges e por participar de concursos literários; peças de teatro, por toda a encenação que as palavras adquirem com os diálogos; cartas, por seu estilo direto endereçado a alguém; discursos mais propriamente filosóficos e acadêmicos; aforismas, nos quais aprendi a cristalizar pensamentos de modo preciso e objetivo, mas fazendo emergir deles diversas interpretações, como uma semente da qual se sabe que vai sair uma árvore, esta ou aquela, mas não se sabe como vai ser; até, enfim, chegar nos ensaios, o tipo de escrita que mais me atrai atualmente e que é o modo de escrita deste blog, pois nele me dou a liberdade de escrever meus pensamentos de modo errante como minha vida cotidiana, e é muito próximo dos diários em que sempre escrevi pensamentos diversos para serem lidos algum dia por alguém.
A escrita faz parte de minha vida desde que me conheço por gente, como se diz, isto é desde que me vi parte de uma realidade convivendo com pessoas e faz parte sobretudo da vida filosófica, pois apesar da filosofia estar relacionada histórica e metafisicamente com a oralidade, por um fonologocentrismo muito bem desconstruÃdo por Derrida, ela também se manifesta através da escrita ao longo da história em todas as variações de escrita descritas acima nas quais muitos filósofos se detiveram em um ou outro tipo particularmente. Assim, a filosofia começou poeticamente ainda com os primeiros filósofos, depois se tornou um discurso com os sofistas, um diálogo oral com Sócrates e escrito com Platão, adquirindo uma encenação teatral, tornando-se ensaio na modernidade, aforismática com Nietzsche e romanceada em livros por muitos. Talvez isto aconteça porque a escrita seja uma clÃnica, como sugere Deleuze em sua relação da literatura com a clÃnica, e através dela o filósofo possa não se ver como um louco como muitos pensam, apesar de não se ver necessariamente assim, mas precisar da escrita de algum modo para não ser visto assim, precisar dela para expressar o que pensa de modo tão livre como em seus pensamentos. Ainda que estes pensamentos sejam extremamente lógicos e determinados por uma axiomática dedutiva implacável, neste sentido, a escrita é ainda o lugar onde ele se sente livre expressando seus desejos, paixões e amores.
Se uso as expressões desejo, a paixão e o amor em relação à escrita é porque ela é para mim, primeiramente, um desejo irrefreável de escrever quando alguém desperta meus desejos ou a própria vida. Sempre fui uma pessoa muito calada e a escrita é um meio de eu conversar com alguém, diferente do que acontece nos pensamentos no quais eu converso apenas comigo. Apesar de nunca mostrar o que escrevo poética e literariamente para muitas pessoas, onde meus desejos, paixões e amores estão mais presentes, sei que um dia alguém vai ler o que escrevo, senão tudo pelo menos o que lhe agradar, e assim conversarei através dos tempos com ela, ou ainda, comigo novamente quando eu ler o que escrevi. Neste sentido, um escritor está sempre apostando que seus escritos permanecerão a salvo tempo suficiente para alguém encontrá-los e lê-los e este é senão o seu desejo, o desejo de sua escrita, o desejo de que alguém a leia, o leia, o conheça de algum modo. E talvez neste caso, a questão tão diretamente colocada para quem escreve? não seja a questão correta a se perguntar a um escritor, mas qual seu desejo ao escrever?, pois o que importa neste caso é o seu desejo de escrever, para si mesmo, neste caso, e o desejo de que outro o leia, e se escreve é porque causa deste desejo de escrever que é também o desejo de que alguém leia o que escreve. É para produzir um momento de encontro desejante com as palavras e com quem as leia.
É o desejo que faz o escritor ler e que faz o leitor ler o que está escrito. É o desejo que faz com que ambos se encontrem na escrita, este lugar inóspito no qual riem, choram, ficam em suspense, prendem a respiração, em que despertam o olhar para algo, mas também o adormecem para muitas outras coisas. É o lugar no qual todos os nossos desejos mais Ãntimos se realizam com alguém que é e sempre será para nós, seja como escritor ou leitor, o mais completo estranho, pois por mais que a escrita nos aproxime, ela não revela quem somos, o que fazemos, o que sentimos, apenas o que escrevemos sobre nós mesmos e sobre tudo que vivemos.
A este desejo irrefreável seguem, porém, as paixões, no caso, as produzidas pela escrita, pelo que ela produz em quem escreve e em quem lê. As palavras me apaixonam, sempre me apaixonaram e me fizeram escrever para tê-las comigo. Sinto um prazer imenso e uma alegria sem tamanho quando escrevo, mesmo quando aquilo que escrevo é algo tão desprazeroso, mas que não deixa de ser uma paixão. Nietzsche dizia que se deve escrever com a bile e que a escrita seja assim um processo de expurgação de sentimentos com amargor na boca, o que, para mim, quer dizer sentir cada afeto das palavras que escrevo no meu corpo expressas à minha frente. A escrita é um afecto, o afecto de paixões alegres ou tristes, mas sempre paixões, como diz Spinoza sobre a nossa vida, e isto não difere para o leitor que encontra nas palavras as paixões que quer sentir e se deixa afetar por elas.
Da paixão ao amor não há muita distância, pois há um processo natural neste caso. Contudo, o amor que sinto e é presente no que escrevo não advém da negação das paixões devido a inconstância delas. Não é o amor algo transcendente às paixões, e sim imanente a elas, pois são as inconstâncias das paixões que amo. Se amo escrever, amo a escrita, não é por uma crença em salvação por meio deste amor ou por meio dela, mas porque amo os momentos em que escrevo sentindo os afectos das paixões e vejo quem eu sou, o que estou sentindo, tudo que me envolve. E o amor é um envolvimento que se tem com alguém em todas as suas inconstâncias, não negando nenhuma, absorvendo-se de todas as paixões que sente. Neste sentido, negar as paixões é negar o amor, negar o desejo ao qual se relacionam estas paixões, é negar a escrita, pois é preciso desejar apaixonar-se e amar para escrever, dar-se na escrita a alguém, dar-se ao outro.
Hoje, cada vez mais penso nestas três expressões quando escrevo, em como a escrita está relacionada a uma afirmação de desejos, paixões e amores e como todos eles se relacionam, de modo que este último está diretamente relacionado às paixões e desejos e não existe sem eles, assim como não existe escrita sem eles. Eu preciso desejar, apaixonar-me e amar para escrever e a escrita é para mim o que amo, pelo que me apaixono e o que desejo, e se ela não existe sem isto, ela não existe sem o outro, sem algo ou alguém com quem eu me envolva absolutamente, sem a vida, enfim. Outro ou a vida que é alguém que eu amo, que estou apaixonado, desejo estar consigo e expressar todos os desejos, paixões e amores que sinto. Outro que é senão uma ficção, pois é apenas aquilo que eu vejo dele, aquilo que ele me deixa ver, e que nunca terei a certeza de quem é, apenas de que o desejo, estou apaixonado por si e o amo.
Parece muito romântico isto, e é de fato. Contudo, o romantismo para mim nunca foi algo que eu vivesse só comigo sem que quisesse tornar real, por isso, desde muito cedo quis que aquilo que escrevia fosse real, que o romantismo tivesse como fim um realismo. Uma expressão paradoxal, pois o realismo é aquilo que acaba de certo modo com um ideal romântico, inclusive na literatura, ,mas se a realidade é o fim do romantismo para mim é no sentido de que é a ela que ele se dirige, pois sem ela o romantismo é apenas um sentimento estéril, sem vida, algo que se sente, mas que não é vivido e vivenciado na realidade. E eu sempre quis viver e fazer viver o romantismo na realidade, que a realidade fosse ela mesma romântica, pois não admito que tudo aquilo que sinto fique apenas comigo ou numa folha de papel, é preciso que ganhe vida para além disto. Por mais que guardasse assim meus sentimentos por alguém por um tempo em mim e em versos e mais versos ou textos literários, sempre havia um tempo, não sabia qual em que eu me entregava aos desejos, paixões e amores que a escrita expressavam e, obviamente, percebi o quanto é difÃcil ser romântico na realidade.
Na verdade, não é difÃcil perceber isto, e desejável que romantismo e realidade sejam algo totalmente distinto, logo, aquilo que é a base do romantismo que é o desejo, esta base rui e todas as paixões e amores que se constroem a partir dela se destroem. Existe, neste sentido, uma separação clara e distinta [e toda separação tem senão este objetivo de clareza e distinção desde Descartes], entre o romantismo e a realidade na qual aquele não é desejável por esta a não ser como uma ficção na qual os desejos, paixões e amores se realizam fora da realidade. Algo estranho e paradoxal como se pode perceber, pois é difÃcil pensar numa realidade que não é realidade, mas é isto que é o desejo, as paixões e o amor na realidade, uma ficção do escritor absorto em seus próprios sentimentos, uma ficção pura que não existe na realidade, apenas em seus pensamentos, mesmo que a realidade de uma vida esteja presente nele, mas é apenas uma vida fictÃcia, não vivida, não vivenciada na realidade totalmente apenas racionalmente.
Schelling foi um dos filósofos que mais se aproximou de uma concepção romântica da realidade deste ponto de vista racional quando pressupôs uma educação estética da humanidade na qual os sentimentos não fossem vistos como algo que devem ser negados, mas valorizados, pois sem eles, o homem social não seria tão social assim como todos querem, não seria um cidadão. Contudo, o seu romantismo tem em vista o absoluto e este é senão algo eterno e imutável, logo, nega em algum momento os sentimentos, produz uma ruptura em relação a eles a qual acontece no momento em que eles não são mais necessários ou somente são necessários para formar um cidadão, mas não que este cidadão seja ele mesmo sentimental. Em outras palavras, o que Schelling concebe é uma utilização dos sentimentos para fins racionais, principalmente polÃticos, algo que a história recente demonstrou que este tipo de romantismo produz se produz um nacionalismo como ele queria, este nacionalismo pode acabar sendo exacerbado num totalitarismo polÃtico e econômico mortificador dos desejos, paixões e amores humanos por outros seres humanos. Isto porque o romantismo tal como pensou Schelling e muitos românticos como ele é um romantismo absoluto e como tal totalitário, e toda totalidade é sempre um todo que é indivÃduo, por sua vez, algo individual e individualista, que já não se pode dividir, nem se deve dividir e se impede qualquer um de o dividi-lo. É o germe de todo fascismo, de toda a destruição da realidade por uma ficção, de todos nela em benefÃcio desta ficção, de um romantismo completamente fora da realidade enfim.
Não é difÃcil perceber a obsessão que o romantismo alemão causou no mundo, não porque foi criado pelos alemães, mas porque eles conseguiram expressar da melhor forma o desejo, as paixões e o amor romântico em sua mais pura ficção escrita como n'Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe. O problema é que tal romantismo surgiu senão de um desejo, paixão e amor individualista a partir de toda a sociedade moderna constituÃda na Europa entre os séculos XVI e XIX que perdura até hoje. Este romantismo é a expressão mais clara e distinta da realidade ocidental em sua negação dos desejos, paixões e amores mesmo quando se diz produzida por eles, pois tudo não passa de uma ficção, uma ideia que é real, uma ideia que é a própria realidade, mas uma ideia que não faz parte da realidade, pois ela nunca se torna real para além de si mesma, apenas em si mesma, sem desejo, paixão ou amor algum na realidade, pela realidade.
Dizer que escrevo para mim, para alguém, é algo romântico, mas também real, pois é estar em contato com alguém pela escrita, pelas palavras que serão lidas em algum momento, em algum instante, por alguém, mesmo que sejam lidas por mim quando leio o que escrevo no momento mesmo em que escrevo ou tempos depois, como faço frequentemente com meus diários, onde meus pensamentos estão ali, todos misturados em folhas que os conectam, mas não o engendram totalmente e que, quando os abro, conecto-me novamente a eles, a mim. Por isso se escrevo para alguém é para mim, mas também para todos os outros, pois a escrita é algo que me conecta a mim e aos outros, em desejo, paixão e amor, por mim e pelos outros, não de modo absoluto, e sim, relativo, hic et nunc. Neste sentido, se o ensaio é principalmente o tipo de escrita ao qual me dedico hoje é porque nele está presente o erro e o acerto, logo ele não é totalmente errado ou certo, é algo que pode ser questionado, e é desta forma o tipo que mais se parece com a própria vida e a filosofia, sem uma métrica definida no tempo ou espaço a não ser o instante em que é escrito, no qual e pelo qual quem escreve se redime por todos os erros cometidos, como a própria vida na hora da morte, às 5 horas da manhã para quem escreve, e que é geralmente a hora em que mais escrevo e na qual meus pensamentos são os mais felizes
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