O fantástico Capitão Fantástico


Nós temos sempre a liberdade de mudar. Se não mudamos, perdemos a liberdade. Há muito tempo escrevi isto em uma agenda que usava para escrever meus pensamentos cotidianos. Simplesmente abria uma página dela e escrevia algo para um dia reabri-la e me reencontrar nos meus pensamentos. Recentemente a peguei por conta de uma mudança, mais uma em minha vida, mais uma mudança da vida a me levar por caminhos desconhecidos.

Estamos constantemente mudando, nos mudando, mas não percebemos isto. Pelo contrário, negamos as mudanças em busca de algo perene ao ponto de sofrermos a cada momento em que somos obrigado a mudar, nos mudar, nem que seja um pouco. Este desejo de algo perene é uma concepção que carregamos desde que nos compreendemos no mundo e os primeiros filósofos se depararam com isto muito cedo quando, ao olhar para a realidade natural e todas as suas mudanças, começaram a pensar naquilo que era para eles uma physis, de certo modo, o que entendemos por natureza, mas que era em sua concepção não algo perene, mas uma eterna mudança, algo sempre novo, como diz John Burnet. Ao olharem para esta physis começaram a buscavam compreendê-la a partir de um princípio, começo ou origem (arkhé, em grego) que fosse imanente a ela mesma e, portanto, tão mutável quanto ela, sempre novo como si própria sem negá-la por algo transcendente, permanente ou perene. Se havia algo perene e permanente, neste caso, era a própria natureza e as inúmeras tentativas deles definirem o que era este princípio não são puros erros de filósofos menores na história da filosofia antes de Sócrates, mas concepções filosóficas que eram expressões da própria natureza em sua eterna mudança, sempre nova, como physis

Assistir ao filme Capitão Fantástico (Captain Fantastic, 2016) de Matt Ross é um retorno fantástico à concepção das mudanças que acontecem na natureza quando se entra em contato com ela e se compreende que ela está em constante mudança e nós também consigo, como parte do seu ciclo de vida. Mais ainda, é um retorno fantástico a uma concepção de natureza na qual os valores humanos não são contrários a ela, mas parte dela, parte das mudanças que ela impõe ao pensamento, às ideias, às virtudes. Somente na medida em que se compreende o quanto em cada mudança na natureza está implícita uma liberdade que muitas vezes é vista como negativa, como um empecilho à nossa vida. Contudo, na natureza, a liberdade não é negativa, não é um empecilho, é algo positivo, algo necessariamente positivo pois tem como intuito a própria vida que não é uma pura autopreservação simplesmente, mas uma necessidade, algo inevitável. Todo animal deseja ser livre, viver a sua vida em completa e plena liberdade e isto implica o outro em seu desejo também com o qual muitas vezes se tem que conflitar para ser livre, donde a nossa concepção de que a liberdade é uma conquista e não um direito, pois há sempre quem nos quer tirá-la a todo instante

A liberdade não é uma conquista, é um direito inalienável que temos ao nascer, é um direito da própria vida ao gerar-se de qualquer modo no menor ser vivo. Ela é algo que defendemos a todo instante, a toda hora em que estamos vivo, querendo estar vivo como todo ser vivo, e nenhuma transcendência nos tira esta necessidade de ser livre, pois mesmo acreditando em outras vidas melhores do que a que temos, não queremos morrer. Morrer é perder a liberdade de viver tal como somos para sermos livres de outro modo. Podemos negar a liberdade e negamos a liberdade há muitos muitas vezes impedindo-os de fazer o que querem de suas vidas. Negamos a liberdade para nós e negamos a liberdade para os outros e aos poucos a morte que é apenas mais uma mudança da vida em seu anseio de se libertar sempre do que é, aos poucos esta morte vai se tornando cada vez mais sofrida, cada vez mais lamentosa, cada vez mais humana de um modo que os humanos a sentem mais como uma dor do que como uma alegria pela mudança.

Ser pai, neste caso, é uma das tarefas mais difíceis que temos como seres humanos, pois defendemos ideias e ideais para nosso filhos sem que eles tenham consciência do que isto representa e corremos o risco de impor a eles aquilo que queremos e não deixamos que eles mesmos defendam suas ideias e ideais em relação à nós mesmos, não deixemos que eles mudem e, nesta mudança, libertem-se de nós. Acostumamos eles a viverem como nós sem viver esta liberdade, aprisionando-nos a cada momento numa ideia ou outra para termos alguma segurança em nossa vida, evitando a natureza que existe em nós e a liberdade de mudar sob pena de perdermos a liberdade. Queremos ser livres, mas não queremos mudar, queremos mudar, mas não queremos ser livres, eis um paradoxo que vivemos constantemente a cada momento em que pensamos no quanto nossa vida é regida pela constância de uma natureza sobrenatural, uma metaphysis, e não por uma natureza natural, uma physis, e impedimos a nós e a nossos filhos e outros viverem a intensidade de cada mudança e a liberdade imanente nela. E choramos a cada perda, a cada momento em que a natureza nos obriga a perder algo que queríamos para sempre, algo que queríamos sempre perto, algo que não queríamos que mudasse, que fosse livre para mudar, que queríamos que ficasse sempre do mesmo modo, fosse sempre o Mesmo. Choramos, principalmente, com a morte, o fim de uma vida, o fim de uma história, mesmo acreditando que a morte é apenas uma viagem como se diz tradicionalmente, ou seja, é mais uma mudança, é mais um momento de liberdade na natureza, quando mudamos e nos libertamos de corpo e alma, quando corpo e alma mudam e, livres, segue seus caminhos naturais.

É fantástico ver no filme Capitão Fantástico como a morte, como viagem, como metáfora, um transporte, um meio, se torna no filme uma viagem para cada ser em relação à sua própria vida, levando cada personagem às paixões e aos pensamentos mais tristes que ela desperta, como raiva, rancor, ressentimento, vingança, impotência, mas também os leva no fim, à paixões alegres e a um pensamento de felicidade vista a partir da natureza como uma mudança e um anseio de liberdade imprescindível para manter vivos a esperança da própria vida seja como for. Pois:
Se você admite que não há esperança, então você garante que não haverá esperança. Se você admite que há um instinto para a liberdade, que existem oportunidades de mudar as coisas, então há a possibilidade de que possa contribuir para a construção de um mundo melhor. (Noam Chomsky)
Este instinto de liberdade para a construção de um mundo melhor é a própria natureza em sua physis, sempre nova a cada mudança, aquilo que eu quero que meu filho aprenda um dia, como eu aprendo a cada dia como minha arkhephylosophia, e espero que aprendamos todos um dia.

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