Por que nos desconhecemos?


Existe um código moral que impede que professores se relacionem com os estudantes. Não é um código novo, mas muito antigo. Seu objetivo, claramente, é evitar problemas de relacionamentos destrutivos de parte à parte, de professores em relação a estudantes, de estudante em relação a professores, principalmente em relação a questões sexuais que são o grande problema das relações humanas há muito tempo não apenas na relação de professores e estudantes.

No Banquete, de Platão, ao diferenciar um Amor Celestial, o de Afrodite Urânia, de um Amor Popular, o de Afrodite Pandênia, Pausânias demonstra a antiguidade desta questão no que diz respeito à relação, quando opõe estes dois amores e considera que o Amor Celestial de Afrodite Urânia é um amor no qual não se ama:

com efeito, os meninos, mas os que já começam a ter juízo, o que se dá quando lhes vêm chegando as barbas. [E que] Estão dispostos, penso eu, os que começam desse ponto, a amar para acompanhar toda a vida e viver em comum, e não a enganar e, depois de tomar o jovem em sua inocência e ludibriá-lo, partir à procura de outro. Seria preciso haver uma lei proibindo que se amassem os meninos, a fim de que não se perdesse na incerteza tanto esforço; pois é na verdade incerto o destino dos meninos, a que ponto do vicio ou da virtude eles chegam em seu corpo e sua alma. Ora, se os bons amantes a si mesmos se impõem voluntariamente esta lei, devia-se também a estes amantes populares obrigá-los a lei semelhante, assim como, com as mulheres de condição livre, obrigamo-las na medida do possível a não manter relações amorosas. (Platão, 1983, p. 15-16. Os pensadores)
Por outro lado é sabido que mesmo havendo esta lei tácita dos bons amantes há tanto tempo, não é raro haver amor entre professores e estudantes ou mestres e discípulos cujo intermédio, aquilo mesmo que faz surgir este amor, é a sabedoria, ou mais ainda, o amor pela sabedoria. Neste sentido, Sócrates foi acusado de perverter a juventude e não apenas porque o que ensinava aos jovens era subversivo para sua época e colocava em questão a democracia tão jovem dos gregos, mas porque, sim, ele despertava nos jovens um amor por si além do que era permitido. Sabemos também do quanto Alcebíades demonstrava seu amor por Sócrates e como ele era efusivo ao demonstrá-lo para ele.

A sexualidade é o principal problema na relação entre professores e estudantes não tanto pela questão sexual em si, mas porque, como diz Pausânias, "é na verdade incerto o destino dos meninos, a que ponto do vicio ou da virtude eles chegam em seu corpo e sua alma" e é importante que eles não percam na "incerteza tanto esforço". O que Pausânias adverte em seu discurso sobre os dois amores e sugere como lei é que se valorize o "amar para acompanhar para toda a vida e viver em comum", o Amor Celestial de Afrodite Urânia e não o Amor Popular de Afrodite Pandêmia, o de "depois de tomar o jovem em sua inocência e ludibriá-lo, partir à procura de outro". E assim, por uma desilusão amorosa no caso do segundo, se pôr a perder todo o esforço do estudante que não sabe lidar com isso ou toda a carreira de um professor que se depara com um amor por um jovem.

As consequências de um relacionamento mais afetivo de professores e estudantes historicamente e não apenas toda uma moral se coloca presente em cada momento que acontece uma afetividade maior entre eles. Toda a educação, neste sentido, é uma disciplina para que os corpos não sintam afetos um pelo outro e transmitam um ao outro apenas o conhecimento e, quiça, um pouco de sabedoria. O que se ganha com isto, depois de anos desta disciplina dos corpos nas escolas, é o fato de que a escola não é nem um pouco amada, muito menos há amor nela, nem de professores pelos estudantes nem dos estudantes pelos professores, apenas rancores manifestos de várias formas e mesmo pelas vias de fato, isto é, pela violência, quando professores violentam estudantes o máximo que podem com sua disciplina e os estudantes dão-lhe o troco com a sua indisciplina.

Quando a Grécia se tornou cada vez mais educada ao criar os primeiros ginásios onde jovens aprendiam o necessário para sua vida na pólis e para defender a pólis, ou seja, quando começaram a ensinar conhecimentos teóricos e práticos para defender a cidade em todos os sentidos, a lei de Pausânias foi tornada prática na função do pedagogo, a quem era incumbido de levar os jovens até o ginásio e deste modo encaminhá-los ao conhecimento, mas também de evitar que qualquer tipo de relação amorosa pudesse desviá-los deste caminho. Na modernidade, quando as escolas passaram a surgir nas fábricas de forma massiva, a função do pedagogo de vigiar e punir durante um caminho se tornou a disciplina específica de um espaço num determinado período de tempo como bem demonstrou Foucault em seu livro Vigiar e punir. Atualmente, não é diferente, pois o que se vê é que cada vez mais se busca punir práticas amorosas na escola, ainda mais com o florescimento da diversidade sexual entre os jovens. Os pedagogos de antes são ainda os pedagogos de hoje e não é difícil ver como esta pedagogia disciplinar construída há milênios produz uma sociedade cada vez mais voltada para o ódio ao conhecimento em vez do amor a ele e não por menos um ódio aquele que conhece. Um ódio, em outras palavras, contra aquilo que é o princípio básico da filosofia, o amor à sabedoria e aquele que detém um saber, os professores, e há toda uma revolta contra a educação atual dos professores, sendo preferível estudar sozinho por meio de máquinas ou por meio de professores virtuais com os quais o único contato é por meio de uma tela que separa definitivamente, neste caso, professores e estudantes evitando qualquer problema entre eles.

Engana-se quem pensa que os meios de comunicação estão destruindo as escolas e que os jovens estão cada vez mais desinteressados por saber e, pior que isso, engana-se quem quer dar a eles um interesse que não é o amor pelo conhecimento ou o amor à sabedoria, mas um amor pelo trabalho, pelo emprego, por uma vida sem amor cada vez mais cinza. Uma reforma do ensino médio que visa cada vez mais transformar a escola num lugar de trabalho não é uma reforma da educação é a mais manifesta destruição dela, pois retira do professor e do estudante aquilo que ainda faz a educação se manter viva, que é o amor pelo saber e o amor um pelo outro. O amor pelo saber que alguns professores ainda têm e que conseguem passar aos estudantes e amor que estes ainda têm e conseguem ser despertados por alguns professores.

Ao abordar tão firmemente a questão sexual entre professores e estudantes um código moral não apenas proíbe a relação afetiva entre corpos sexualmente, mas tudo que pode surgir de uma afetividade entre eles independente da sexualidade, e este é o grande problema da escola atualmente: a falta de afetividade entre professores e estudantes e, na ausência desta, a falta de afetividade pelo saber. Não há trocas de afetos por meio de abraços, beijos, olhares, carinho sem conotação sexual entre uns e outros que gere entre eles algo de bom como o conhecimento. Os professores se tornaram definitivamente profissionais e não mais tios dos estudantes, isto é, deixaram de participar totalmente das suas vidas, tornaram-se estranhos aos estudantes e estes a eles e, como tais, começaram a se desconhecer mesmo se vendo todos os dias. Passaram a não querer se conhecerem, não se falarem a não ser o estritamente necessário em sala de aula. Pouco a pouco, em vez da escola ser o caminho em direção ao conhecimento mútuo, o de professores em seus saberes compartilhados com os estudantes e por estes, acaba por se tornar cada vez mais um caminho em direção contrária em que nenhum quer ter o conhecimento do outro.

Ao mesmo tempo, neste sentido, que a educação se universalizou, isto é, se tornou massiva e direcionada a uma massa de pessoas, estas foram senão individualizadas ao ponto de se tornarem apenas números e nomes que se leem a cada aula e que se tornam pessoas apenas quando se destacam de algum modo, por problema ou por mérito, mas quase sempre desconhecidas até o fim do ano e de suas existências nas escolas. Professores podem saber os nomes ou números de todos os seus estudantes com uma memória de elefante, mas não sabem muito mais do que isso, pois não há nenhuma relação maior entre eles, e se houver, isto logo é considerado um problema, por uma questão sexual, mas também por uma questão de afetividade em geral. Filmes produzidos sobre professores ao longo do tempo demonstram como esta afetividade entre professores e estudantes é algo problemático, a lembrar um dos mais célebres, A sociedade dos poetas mortos, e mais recentemente a série não menos célebre apesar de recente, Merlí, na qual um professor de filosofia do ensino médio demonstra como esta afetividade pelos estudantes e destes em contrapartida a ele é absurdamente necessária para produção de novos conhecimentos.

Existe, portanto, uma linha clara que separa professores e estudantes, que proíbe um maior afeto entre eles não apenas sexual, e que é a linha educacional atual. Há muito tempo, deparo-me com esta linha buscando não a transgredir segundo os preceitos morais, mas ela é cada vez mais uma linha que não me separa dos estudantes, e sim, que me aproxima cada vez mais deles. Sobretudo, porque minha visão filosófica do limite não é dele simplesmente como uma separação, mas como uma união, isto é, como um a-partamento, pois a linha que me separa dos estudantes é a mesma que me une a eles cada vez mais hoje em dia. Existe, obviamente, uma clara separação entre professores e estudantes e isto é um limite, mas professores e estudantes não estão separados totalmente, mais ainda, se unem a cada momento que estão juntos em sala de aula e é necessária esta união se querem produzir conhecimentos, e esta união somente é possível através da paixão e da razão e não desta sem aquela. É preciso que professores e estudantes se aproximem para terem mais e mais conhecimento e que o contato entre eles não seja o de uma máquina, no qual se passa o conhecimento sem qualquer afeto e se produz conhecimento com menos afeto ainda, pois o que importa não é como o conhecimento se produz por afetos, mas como o conhecimento se produz independente de afetos ou paixões, em outras palavras, como nós nos tornamos cada vez mais máquinas de conhecimento, enfim, computadores.

Professores não podem se apaixonar pelos estudantes e nem estes por aqueles e, deste modo, não podem despertar um no outro uma paixão alegre, como dizia Spinoza, apenas paixão triste. Corpos não podem produzir nos outros alegrias, apenas tristezas, a tristeza de sentar numa cadeira de uma forma, num lugar e durante toda uma aula a tristeza de estar ali em contato com corpos que não lhe dá alegria. À beleza dos corpos, diz Platão no Fedro, passa-se à beleza verdadeira, a das Ideias, uma beleza que é imutável, eterna, essencial e absoluta, mas a beleza dos corpos que Platão abomina no Fédon como perturbadora e obstáculo ao conhecimento é a beleza das paixões sem as quais não se pode, por sua vez, passar à beleza das Ideias, de um ideal, à beleza do próprio conhecimento e da sabedoria.

Sem as paixões dos corpos não há saber, tão pouco o amor à filosofia. Sem se apaixonarem um pelo outro, professores e estudantes caminham em direção contrária ao que se propõem, compartilhar o conhecimento e o amor pelo conhecimento. É impossível amar o conhecimento sem amar aquele que conhece e é impossível que isto aconteça sem que corpos se apaixonem e queiram ficar juntos a todo instante um aprendendo com o outro o que sabem. Professores e estudantes devem se apaixonar um pelo outro e obter um do outro o melhor pra si. Professores, obtendo uma melhor educação dos estudantes e estudantes obtendo o melhor que os professores podem lhes dar, o conhecimento e a sabedoria para toda uma vida.

Não é moral que falta nas escolas e que se deva dar aos estudantes entendendo-se por moral uma disciplina cada vez mais rigorosa ou voltada para o mercado de trabalho. O que falta nas escolas e aos estudantes é uma ética, principalmente uma ética das paixões ou dos afetos do corpo e da alma, a partir da qual de uma paixão entre professores e estudantes em seus corpos se passe a uma paixão da alma que venha a construir um conhecimento e uma sabedoria para uma vida cada vez mais alegre e feliz ao contrário de toda a pedagogia punitiva que impõe a tristeza e o sofrimento como forma de se educar. À pergunta inicial, por sua vez, por que nos desconhecemos?, professores e estudantes, mas não apenas estes, devem responder afirmativamente conhecendo-se cada vez mais em vez de se desconhecerem mais ainda.

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