Amor, paixões e desejos cotidianos
É comum em seus discursos cotidianos pessoas dizerem que querem alguém, no sentido amoroso, que lhes respeite, que lhes dê atenção, que lhes sejam fiéis, que lhes ajudem no dia-a-dia, que estejam sempre consigo nos momentos bons e ruins da vida, e deste modo exaltam sempre cada vez mais de formas diversas o amor ideal que elas querem. Contudo, não é menos comum todo este ideal vir abaixo por uma paixão avassaladora que lhes faz esquecer boa parte do seu ideal e muitas vezes por uma pessoa que é justamente o contrário deste ideal, que desejam ardentemente.
A relação entre o amor e a paixão, esta último geralmente confundido com o desejo, é algo que faz parte da vida cotidiana de muitas pessoas. Sempre me deparei com estes discursos sobre o amor e muitas vezes me travesti como homem ideal na busca de ser o amor ideal de algumas mulheres neste sentido. É o que fazem algumas pessoas quando a beleza não adorna seu corpo de tal maneira que sejam desejadas: tornam-se amigas de quem desejam bem mais do que isso... Mas a estas pessoas, independente do gênero, a decepção é sempre algo inerente, pois, o amor tal como muitos idealizam é sempre o amor da amizade e nada mais do que isso. E, mesmo que se tenha tudo que este amor amigo proporcione, falta muitas vezes a paixão arrebatadora que faz esquecer o amor ideal por alguém como amigo, que faz tirar os pés da terra e mover-se em desatino ouvindo o início da Primavera das Quatro estações de Vivaldi, ou ouvindo qualquer música que demonstre a paixão para si.
Amor e paixão são diferentes, todos sabem disso, e muitos são senão os que valorizam mais aquele do que esta e não é difícil saber porque, pois o amor é um suporte para o dia-a-dia, que faz vivê-lo melhor, sem maiores problemas, sem maiores sofrimentos, pois ter ao lado alguém que você ama, alguém que é seu amigo e está consigo em todos os momentos que precisa é algo senão bom e belo. Mas não é raro neste sentido haver decepções amorosas quando se tem justamente a pessoa que ama, mas que, ao lado dela, já não a vê mais como amante, isto é, não se sente mais ao seu lado do modo que se sentia antes depois de estar pra sempre a cada dia ao lado dela. Isto porque no momento de devoção de amor eterno se confunde o amor com a paixão e esta não dura pra sempre, pois o sempre é inerente à sua duração, e não em relação àquilo que pelo que se apaixona.
A paixão nos eleva ao amor, mas também nos afasta dele. É a paixão que nos faz amar alguém repentinamente sem saber porque, quando e onde, pois ela não é uma pergunta, e sim, uma resposta, afirmativa de si mesma e negativa ao dia-a-dia no qual tudo é sempre o mesmo ainda que diferente, é sempre uma repetição, como uma conversa entre amigos ao fim do dia-a-dia, sejam eles do trabalho ou de casa, ou ainda, com o amigo que você quis pra si eternamente até que a morte os separe. Se a paixão nega o cotidiano é porque ela nos faz ansiar por aquilo que não é cotidiano, da ordem natural das coisas, uma diferença que não é a do mesmo ou da repetição, mas daquilo que não se repete ou não se repetirá indefinidamente porque vai acabar, um dia sempre acaba. Tal paixão nunca é, deste modo, eterna, nem tão pouco a morte a separa, pois ela é sempre nova, sempre renascida a cada momento da vida pela própria viva, pelo próprio viver a vida independente desta vida ser com alguém ou sem alguém. É a vida senão aquilo pelo qual alguém se apaixona verdadeiramente por meio de algo ou de alguém.
O amor nos faz suportar a vida, mas a paixão nos faz vivê-la em toda a sua intensidade. Ambos, amor e paixão, se misturam por um bom tempo enquanto vivemos, pois os sentimentos não são algo que possamos identificar plenamente de início. Eles precisam de um tempo para se definirem e é este tempo que faz com que vivamos mais ou menos tempo com alguém sem sabermos se o que sentimos é amor ou paixão, ou apenas desejo, mas cuja resposta muitas vezes sabemos em nosso íntimo qual é, mesmo que não queiramos saber. O amor é sempre eterno e nunca deixamos de amar quem amamos, pois as pessoas que amamos serão para sempre pessoas que fazem nossa vida melhor a cada dia, mas a paixão é algo que sentimos no enlevo dos dias quando nos deparamos com algo ou alguém que nos faz feliz, ainda que por um instante, ainda que não conheçamos naquele momento ou plenamente, ainda que nunca mais vejamos depois daquele dia.
Amar e sentir paixão ao mesmo tempo não é impossível, a cada dia se apaixonando por alguém que está ao seu lado, e deste modo, alcançar uma plenitude de sentimento na vida. Mas a vida, e os poetas e românticos sabem muito bem disso, não é um único amor, são várias paixões ao mesmo tempo, não simplesmente por pessoas, mas por coisas, por trabalho ou por um ócio cotidiano, pois tudo faz parte da vida. É por isso que muitas pessoas se separam, não porque lhes falta amor e todos os bons sentimentos que se juntam a ele, mas porque lhes falta a paixão que algo ou alguém lhe dá, que faz do seu dia algo extraordinariamente feliz. Todos os contos de fada de amor acabam em casamento, pois o casamento é o momento ápice da confusão entre amor, paixão e desejo, como também da separação deles. Viver cotidianamente com alguém que se ama é acordar todos os dias sabendo que tem ao seu lado uma pessoa ideal, mas o ideal nem sempre é bom e belo, como pensava Platão, e talvez ele mesmo soubesse, pois se ele é um modelo de vida, a vida não é tão modelável quanto pensava ele em sua República. A vida é sempre uma cópia imperfeita de um modelo ideal, ele também sabia disso, pois nem natural nem humanamente se vive a perfeição natural e virtuosa dos deuses tal como queria ele em seu amor pela sabedoria. Vive-se mais como sonhavam os poetas gregos, aos quais ele se contrapunha, pois, para eles, a vida, até mesmo a eterna dos deuses, não era nunca uma vida perfeita, e sim vivida com paixão por todos os seres.
Paixão ou pathos é o que acontece em nossa vida, seja bom ou ruim, é o que sentimos ao viver, é a intensidade da própria vida sendo vivida, mas também exaltada em si mesma. É, por assim dizer, de certo modo, o amor pela vida, por viver a intensidade da vida. É o que sentimos quando nos deparamos com alguém que é e sempre será pra nós um estranho no primeiro momento, mas no primeiro momento em que o vemos, deixa de ser estranho, perde toda a estranheza, pois o acolhemos em nosso olhar, em nosso corpo e em todo nosso ser com a mesma confiança que temos em viver o dia de amanhã, mesmo sendo cético como Hume e sabendo que isto talvez não seja possível, que algo aconteça e o estranho inicialmente se torne estranho finalmente à nossa vida.
Se não é difícil confundir amor com paixão, tão pouco é difícil confundir paixão com o desejo, e todos ao mesmo tempo. Paixão e desejo, porém, não se confundem, pois o desejo é totalmente subjetivo no sentido interior e, por mais que se realize em algo, é sempre inerente a cada ser em todos os seus anseios. O desejo é o que o corpo produz em seu próprio enlevo, assim como o amor é o que a própria mente produz no seu elevar-se. Ama-se um ideal no maior grau de racionalização de perfeição da vida que um ser quer pra si e deseja-se no sentido oposto, no menor grau de racionalização de uma perfeição da vida, pois nada impede que se deseje algo que não faz sentido algum de um ponto de vista racional, isto é, ordenado natural ou divinamente. O corpo não distingue aquilo que deseja e, deixado a si mesmo pela alma, esta também não distingue, e assim ambos comungam a mesma coisa que desejam. Do mesmo modo, no sentido oposto, quando a alma é deixada a si mesma em sua razão, o corpo a obedece plenamente e ambos também comungam do que a alma deseja, e, não por menos, a vida vivida deste duplo modo é o que corpo e alma, desejo e razão anseiam pra si, separados e juntos ao mesmo tempo, revezando-se em seus anseios ou simplesmente ansiando apenas pelo que querem de corpo e de alma.
Não há nem no amor, nem no desejo, uma paixão pela vida, apenas uma racionalização e um desejo por ela em algo ou em alguém. No primeiro, há uma idealização da vida em sua perfeição, no segundo, nenhuma idealização perfeita dela. A paixão, porém, não é ideal nem tão pouco a ausência de ideal, é a própria vida idealizada em si mesma quando nos deparamos com algo nela. A paixão não é algo que possamos controlar, pois nem é uma ideia nem um desejo, é aquilo mesmo que sentimos despertar em nós num instante que é eterno enquanto dura este instante. Podemos nos apaixonar por alguma ideia ou razão e por algo que desejamos, e querer repetir indefinidamente este instante no tempo, mas a paixão mesma não se repetirá, apenas a ideia ou o desejo. Ela durará o tempo que lhe é inerente, nem mais nem menos. O que restará depois disso será o amor ou o desejo pela vida ou por aquilo que faz viver a vida a cada dia, mas nunca mais a paixão pela vida em si mesma no instante que algo ou alguém nos fez se apaixonar por ela um dia.
Por fim, pode-se resgatar um amor, pois ele sempre está presente, e ter sempre ao seu lado alguém que ama, pode-se resgatar o desejo, pois ele sempre vem a ser presente, e sempre sentir prazer com quem está do seu lado, mas não se pode resgatar jamais uma paixão, pois ela jamais será presente como foi um dia quando se apaixona por alguém.
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