A democracia sem Estado
Que a democracia foi criada pelos gregos, muitos sabem, porém, o que é a democracia desde os gregos, poucos conseguem dizer, pois ela não é a mesma desde então, passou por muitas transformações imanentes que se busca dar conta a partir de um ponto de vista transcendente de um Estado (pólis). Ao contrário do que se pensa, não existe Estado democrático, pois o Estado é uma forma de governo da democracia, um meio de limitar a democracia, isto é, de impedir com suas leis a participação do povo nas decisões segundo a definição clássica de democracia. O Estado dito democrático é aquele que impede a democracia de existir de modo puro imanente em que todos podem participar das decisões limitando estas a algumas pessoas, aos polÃticos, à queles que buscam falar em nome do povo, o que quer dizer, sem a participação do povo nas decisões, limitando estas aos seus interesses particulares ditos comuns aos do povo sem que os diferentes interesses particulares deste nunca se manifestem realmente.
Há, neste sentido, duas democracias: uma democracia do conflito do povo com o Estado, isto é, do povo com suas próprias reivindicações manifestadas em multidão contra um Estado que se arma contra ele, para impedir que se manifeste e participe do direito democrático de participar das decisões que dizem respeito à sua vida, e uma democracia do diálogo entre aqueles que falam em nome do povo, tomando as decisões a partir de seus interesses privados que são considerados interesses do povo manifestados aos eleitos e por ele. Duas linhas divergentes de um mesmo Estado "democrático", porém, uma que retorna a ele de modo circular e outra que foge do cÃrculo, que se espiraliza num cÃrculo imperfeito, problematizando a formação do Estado e sua estrutura por meio de conflitos e produz uma linha reta que foge à perspectiva do Estado, na qual o povo se manifesta de modo puro, em multidão, em conflitos e diálogos mais ou menos intensos dependendo do modo como se relacionam aqueles que formam o "povo", esta "massa" homogênea, porém, formada por diferentes interesses individuais e que pode adquirir qualquer "forma" democrática na medida em que não é mais controlado pelo Estado.
O conflito e o diálogo fazem parte da democracia, mas um exclui o outro, e não compõem do mesmo modo o Estado democrático. Tanto um como o outro diz respeito ao modo como os indivÃduos se relacionam a partir de seus interesses particulares, isto é, ao caráter público da relação entre indivÃduos particulares, ou propriamente social cujo resultado é a democracia, dependendo da manifestação pública, conflituosa ou dialógica, dos interesses particulares dos indivÃduos envolvidos nela. Deste modo, a democracia pode ser conflituosa na medida em que há uma rivalidade entre os interesses particulares, quando um nega o interesse particular do outro, se opõe ao interesse do outro e procura excluir o interesse particular do outro, ou ainda, busca excluir propriamente o outro como inimigo. Por outro, lado, a democracia pode ser dialógica na medida em que há um diálogo no qual a rivalidade é desconstruÃda, pois não há interesse em negar, se opor, excluir o interesse particular do outro, muito menos excluir o outro como inimigo, pois o que há é uma limitação da rivalidade e inimizade que ela produz cujo fim é a amizade não necessariamente conseguida.
Aparentemente, a democracia conflituosa é negativa enquanto a democracia dialógica é positiva e é neste sentido que se pensa senão o direito de natureza e o direito positivo, o primeiro a partir do conflito de interesses particulares e o segundo com a submissão dos interesses particulares a uma lei. A questão, porém, é mais complicada, pois a limitação do conflito pressupõe uma redução da participação popular nas decisões do Estado na medida em que somente aqueles que podem dialogar é que podem decidir. Ou seja, busca-se eleger no povo aqueles que podem dialogar em nome dele, manifestar-se em nome do povo, como se fosse o povo, todos os interesses particulares dos indivÃduos que formam o povo para, deste modo, limitar o direito natural de todos poderem participar das decisões em benefÃcio de alguns que podem participar das decisões.
Se o diálogo numa discussão entre dois indivÃduos, cada um manifestando seus interesses particulares, pode diminuir o conflito entre eles, todavia, o diálogo entre vários indivÃduos e interesses particulares não é tão simples assim. A diferença de interesses de dois indivÃduos é multiplicada no que diz respeito aos interesses de vários indivÃduos que formam um povo e não pode ser superada ou suprimida por uma identidade entre os indivÃduos produzida por meio do diálogo, o que o diálogo cada vez mais difÃcil, posto que ele se restringe a dois indivÃduos particularmente, ou duas perspectivas, no qual um fala e outro escuta, e se revesa numa e noutra perspectiva. Pior ainda, a identidade de um povo produzida pela superação e supressão da diferenças de interesses dos indivÃduos particulares que o formam somente é conseguida pela superação e supressão do próprio diálogo que é reduzido a uma única perspectiva do povo, reduzindo-se a diferença na manifestação dos indivÃduos por uma identidade na manifestação dele. Em outras palavras, excluindo a democracia no direitos de manifestação de cada um em seus interesses particulares em benefÃcio da manifestação de uma identidade do povo.
A questão é que o conflito está diretamente relacionado à diferença dos interesses dos indivÃduos particulares enquanto o diálogo está diretamente relacionado à identidade dos interesses dos indivÃduos particulares. No primeiro, a massa não forma um povo homogêneo, tão pouco adquire uma forma senão por um breve momento, como quando amassamos uma massa e damos a ela uma forma que é em seguida desconstruÃda para ser dada outra forma. Na segunda, a massa é um povo homogeneizado, com uma forma única e que não pode ser mais desconstruÃda, não se pode mais amassar a massa novamente para dar a ela outra forma de modo que a massa adquire uma estrutura sólida, não mais maleável, isto é, dialogável como antes e como se pensava ao dialogar tendo em vista a identidade do povo.
A democracia conflituosa mantém a participação dos diferentes indivÃduos em seus diferentes interesses particulares enquanto a democracia dialógica exclui pouco a pouco a participação dos indivÃduos e um povo é formado independente dos interesses particulares dos diferentes indivÃduos a partir daqueles que são eleitos entre estes para dialogar não mais em benefÃcio dos diferentes interesses deles, mas de um único interesse, o do povo. É neste sentido que surge o Estado como representante dos interesses do povo, de interesses públicos e não dos interesses particulares e privados, e o conflito se generaliza, pois não é mais entre diferentes indivÃduos que formam o povo e, sim, entre este e o Estado como representante dele através daqueles que são eleitos por ele.
É a participação democrática popular, isto é, pela multidão que faz parte do povo o que se busca evitar com a formação do Estado por aqueles que foram eleitos como representantes do povo. O contrato social estabelecido com suas diversas leis pelos eleitos não visa promover uma participação popular com seus diferentes interesses particulares, visa promover a participação de alguns interesses particulares que não são necessariamente interesses de todos que compõem o povo, posto que são interesses de Estado, daquele e daqueles que representam o povo. A participação popular é restringida por meio do voto e não expandida como se pensa, pois o que conta é o voto dos eleitos nas decisões tendo em vista os interesses do Estado formado por eles que, se é dito como representante do povo, é apenas para legitimar seus próprios interesses. Ou seja, existe na eleição dos polÃticos uma ruptura na democracia que limita a participação popular ao mesmo tempo que expande a participação de indivÃduos particulares, os polÃticos eleitos, que estabelecem uma participação não popular, isto é, que não tem em vista os interesses do povo, e, sim, os interesses do Estado que são senão os interesses dos polÃticos como indivÃduos eleitos a partir de seus interesses particulares.
Em outras palavras, o Estado democrático dialógico não representa os interesses do povo, mas daqueles que dialogam em detrimento do povo, em ruptura com ele, tendo em vista seus interesses particulares que foram os que os elegeram e que se tornam os interesses do Estado a partir deles. Se um polÃtico tem o interesse particular em se armar cada vez mais para aumentar o poder do Estado em sua força militar, em termos de Forças Armadas ou de PolÃcia, são estes interesses que o Estado democrático dialógico representa. Obviamente, outro polÃtico pode se eleger com interesse contrário, reintroduzindo na democracia dialógica a democracia conflituosa dos dois indivÃduos com interesses particulares diferentes. Porém, diferente do conflito de interesses de dois indivÃduos que pode ser resolvido no diálogo, entre os polÃticos não é o diálogo que resolve o conflito, é o agenciamento de um ou mais indivÃduos com os mesmos interesses formando blocos que se opõem e, diferente do diálogo que tem em vista a qualidade do discurso, o que se coloca a partir de então é qual bloco é maior do que outro e, deste modo, pode destruir o discurso do outro, o que quer dizer, desqualificar o discurso do outro. Uma desqualificação quantitativa e não qualitativa no sentido de que quem fala mais ganha e não quem fala melhor.
Como se pode perceber não é o diálogo o que se tem em vista a partir de um sistema fala-escuto, e, sim, uma fala que não é escutada pelo outro num sistema fala-não escuto que é superada pela força de uma maioria que representa, neste caso, a democracia não mais dialógica e, sim, conflituosa. Porém, num sentido diferente, pois o conflito é generalizado na medida em que não são interesses particulares simplesmente que estão em questão e, sim, interesses particulares que se tornam interesses públicos do Estado em conflito com interesses particulares do povo, no caso, daqueles que fazem parte do povo que não quer se armar que não são representados pelo Estado. Pior ainda, são acuados por aqueles que querem se armar senão contra ele, que militarizam o Estado para defenderem seus próprios interesses e que em defesa de seus interesses particulares fazem do Estado democrático dialógico um Estado não democrático dialógico suprimindo o diálogo qualitativo pela maioria que não quer dialogar, no caso, a dos que foram eleitos para isto.
É esta maioria representativa que destrói a democracia dialógica e institui um Estado não democrático, tirano, ditatorial e fascista, na medida em que já não importa mais o discurso e, sim, quantos votam nele por terem interesses particulares envolvidos que não são os interesses particulares dos diferentes indivÃduos que formam o povo. É, por sua vez, uma democracia conflituosa o que se instaura generalizadamente na medida em que o conflito de interesses entre dois indivÃduos se tornam um conflito de Estado e do povo com o Estado na medida em que há cada vez mais um distanciamento dos interesses dos polÃticos eleitos como representantes do Estado com os interesses particulares do povo que os elegeram. Na teoria, os polÃticos são eleitos como representantes dos interesses particulares do povo, na prática, eles são representantes de seus próprios interesses que se tornam interesses do Estado ou são já os interesses do Estado na medida em que há uma necessidade da existência deste para que eles próprios existam.
O conflito e o diálogo formam uma democracia, mas não do mesmo modo. Os atenienses formaram uma democracia dialógica, de amigos, mas ela excluÃa crianças, mulheres, escravos e estrangeiros do diálogo para evitar a participação destes no diálogo e o conflito de interesses particulares de crianças-adultos, mulheres-homens, escravos-escravocratas (homens livres), estrangeiro-natural, os segundos falando em nome dos primeiros em favor da cidade-Estado (pólis). Os europeus formaram uma democracia dialógica no mesmo sentido até o século XX, quando crianças, mulheres, escravos e, dentre estes, os negros, e estrangeiros começaram a reivindicar participação nela e o conflito foi instaurado até hoje, como mais e menos diálogo, suprimido por uma maioria que ainda os exclui de participação, portanto, excluindo o povo em sua grande maioria muitas vezes. Mais ainda, os europeus e americanos formaram um Estado não democrático, tirano, ditatorial e fascista em total oposição ao povo ao tornarem o quantitativo mais importante do que o qualitativo, os interesses de alguns particulares mais importantes do que os interesses particulares populares.
O conflito pode ser resolvido pelo diálogo ou por um grupo com força maior do que outro. Entre dois indivÃduos pode ser revolvido pelo diálogo ou pela força maior de um sobre o outro, um se impondo sobre o outro pela quantidade de força e não pela qualidade do discurso. Entre aqueles que são eleitos para limitar a participação popular acontece o mesmo, porém, a força não é a de um indivÃduo em particular, mas de um conjunto de indivÃduos em bloco maior do que o conjunto de outros indivÃduos também em blocos ou isolados. Por fim, a partir deste conflito entre os eleitos, o Estado pode se tornar um Estado democrático do conflito ou do diálogo, no caso de um uso maior da força de um conjunto em bloco, um Estado democrático conflituoso, cujo conflito é senão com o próprio povo.
O que acontece a partir dos eleitos é uma ruptura da democracia surgida a partir do diálogo como superação dos conflitos de interesses dos indivÃduos e uma inversão propriamente dita dela, pois é o diálogo que é superado pelo conflito dos interesses dos indivÃduos. De certo modo, esta superação do diálogo está prevista no voto dos eleitos que representam senão interesses contrários numa disputa eleitoral entre dois candidatos opositores, ou seja, é o voto popular que institui o conflito como superação do diálogo e não o contrário. Se o "debate" entre os candidatos possui uma "qualidade" em termos de discursos, não necessariamente há um diálogo nesta medida no sentido de um falar e escutar o que o outro está falando, no sentido de diminuir a diferença entre eles, e, sim, o contrário disso, aumentar a diferença no sentido de uma negação, oposição e exclusão do outro do debate.
O voto como princÃpio democrático ou da democracia é o princÃpio da destruição dela, pois sobrepõe a quantidade de interesses particulares à qualidade dos interesses particulares. Se o voto mensura alguma qualidade é no objetivo de se opor, negar, sobrepor e excluir uma qualidade por outra. Por meio voto se diminui a qualidade do diálogo num debate que é uma luta entre rivais e inimigos sem qualquer possibilidade de conciliação que se torna uma guerra entre aqueles que são eleitos e que buscam ser os representantes do Estado ou fazer com que o Estado represente seus interesses particulares como sendo do povo, quando são somente de uma parte dele e, quiçá, de uma parte muito pequena dele, a de quem possui mais dinheiro por possuir mais lucro.
Se o voto legitima a participação popular, ele não deslegitima esta participação no momento em que há a eleição de um representante do povo, instituindo uma oposição dele com o povo e em si mesmo na medida em que é representante do Estado que governa o povo. É o povo em sua participação popular nas decisões o que se quer limitar ao se eleger representantes dele, pois é mais fácil controlar alguns do que muitos e, por meio de alguns, se pode controlar muitos. Controlar o povo é o grande objetivo do Estado e, por isso, o motivo de uma democracia conflituosa do povo com o Estado e deste como seu povo em detrimento de uma democracia dialógica do povo com o Estado por meio de seus representantes polÃticos eleitos que não dialogam entre si, simplesmente conflitam para ver quem é tem mais força assim como o Estado conflitua com o povo mostrando sua força também em vez de dialogar com ele.
No fim, é a democracia o que o Estado busca impedir que se constitua, uma democracia formada por uma sociedade sem Estado, sem representantes eleitos por maioria quantitativa, que busca uma melhoria qualitativa de suas vidas, inclusive por meio de representantes, porém, que os representam diretamente e não indiretamente por meio do Estado e seu sistema eleitoral. Uma sociedade sem o Estado é o que o Estado e os polÃticos representantes dele não querem, principalmente por motivos econômicos, por ganharem dinheiro representando o Estado e empresas que financiam suas campanhas. Uma democracia puramente imanente só é possÃvel sem o Estado, do contrário, é uma democracia limitada em sua imanência de interesses particulares pela transcendência do Estado e seus interesses particulares vistos como públicos.
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