O Deus de Espinosa e a natureza humana

julho 29, 2021

Frequentemente há uma referência ao Deus de Espinosa para se acreditar em deus, na ideia de deus e em sua existência, como se referiu Einstein. A ideia de Deus de Espinosa adquire uma força ou potência em Deleuze, em sua obra Espinosa e o problema da expressão (2017), quando faz uso desta expressão, posteriormente, em O que é a filosofia? (1992), dizendo ainda que Espinosa é o "Cristo dos filósofos", bem como o "príncipe dos filósofos". Tudo se passa como se a ideia de deus fosse a única forma de se aceitar Espinosa na filosofia, de não de expurgá-lo de vez do pensamento como expurgaram-no os judeus da religião. Em outras palavras, parece que o que mais importa na Ética de Espinosa é a parte 1, De Deus, e ainda que se pense e se diga de deus que é suive natura, ou seja, que expresse a natureza ao mesmo tempo em que se expressa, ou que exista ao mesmo tempo em que é, não se pensa a natureza do mesmo modo que se pensa deus ao se pensar em Espinosa, ou ainda, na natureza humana.

Neste sentido, parece que o pensamento de Einstein em relação a Espinosa se tornou paradigmático no entendimento da filosofia de Espinosa, um pensamento dominante que independe de todo o resto, a saber, que independe da natureza que é não por menos pensada a partir da de deus ou da ideia de deus, no caso, a partir de uma natureza infinita, a dele, produzida por ele. Porém, não à sua semelhança, pois nada se assemelha à ideia de deus, que é uma substância em si e por si ou uma causa sui, enquanto tudo mais é por causa de si. Assim é que, diz Deleuze, "O Deus de Espinosa é um Deus que é e que produz tudo..." (2017, p. 126), o que é conforme ao método geométrico de demonstração da ideia ou substância que é Deus na Ética segundo o qual, em seguida, se definem os atributos e os modos como o entendimento da essência e as afecções, aquilo que é deus no intelecto e "aquilo que é em outro pelo qual também é concebido". (Ética, 1, V, 2018, p. 45)¹

Se importa, segundo o método geométrico de demonstração de Espinosa pensar o que é deus em si e por si enquanto substância, ideia ou causa sui para pensarmos em seguida, ou ao mesmo tempo, se é que é possível, pensar o que é em outro, a saber, nos seus atributos e modos infinitos, restritos a dois no que diz respeito à natureza humana, devemos questionar até que ponto devemos nos limitar a isto, fazendo derivar ou deduzir do pensamento de deus o pensamento da natureza e, em particular, a natureza humana. Em outras palavras, porque devemos nos referir tão simplesmente ao "Deus de Espinosa", e a uma visão teológica ou metafísica da filosofia de Espinosa como se fosse a sua filosofia, reduzindo, outrossim, esta àquela, a filosofia a uma religiosidade, a natureza à deus para que a filosofia, e o filósofo, ou ainda, o filosófico, não seja expurgado da realidade. Enfim, porque se pensa e se obriga a pensar a filosofia de Espinosa simplesmente do ponto de vista de Deus, mais ainda, deste único ponto de vista, como se fosse o seu ponto de vista a partir da sua demonstração geométrica e que pensar Deus fosse o grande objetivo da Ética, bem como de toda a ética enquanto modo de pensar filosófico.

Eis o problema, já bastante antigo, da filosofia em relação à religião, segundo o qual se o filósofo não pensar deus seu pensamento não tem fundamento, não se justifica, não é válido, não faz sentido, não tem lógica, e que, segundo uma determinação metafísica deve-se pensar deus antes de tudo, para ser possível pensar tudo, deus como o princípio e o fim do pensamento. Neste sentido, não se pode pensar a Ética de Espinosa sem pensar Deus, não se pode pensar Espinosa sem remetê-lo a Cristo, e tão pouco sua filosofia sem à religião, assim como não se pode pensar a imanência que foi sua vida sem a expulsão e, quiçá, redenção, ao judaísmo. Se Deleuze diz que Espinosa "mostrou, erigiu, pensou o 'melhor' plano de imanência, isto é, o mais puro, aquele que não se dá ao transcendente, nem propicia o transcendente, aquele que inspira menos ilusões, maus sentimentos e percepções errôneas..." (DELEUZE E GUATTARI, 1992, p. 79), seria isso simplesmente porque pensou, segundo o método geométrico, primeira e metafisicamente, deus no princípio e por fim?

É interessante notar a este aspecto que ainda que Espinosa defina a parte I da Ética como De Deus e ainda que se entenda a definição I da causa de si ou por causa de si como de uma "essência que envolve a existência" como sendo imediatamente a definição de Deus pensada a priori, antes, primeiramente, in caput, como título da parte I, a definição de Deus somente aparece a posteriori, após serem definidos o que a coisa "finita" (def. II), substância (def. III), o atributo (def. IV) e o modo (def. V). Por sua vez, Deus sendo definido como o "ente absolutamente infinito, isto é, a substância que consiste em infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita" (Ética, 1, VI) somente na medida em que se entende que a causa sui é uma substância e que, diferente de uma coisa finita e seus atributos e modos, isto é, da natureza homem então entendida, deus é uma substância absolutamente infinita em seus atributos e modos. Neste sentido, a partir do método de demonstração geométrico de Espinosa, em que cada parte tem uma precedência em relação à outra segundo uma ordem ou lógica dedutiva (Definição, Axioma, Proposição, Demonstração, Escólio e Corolário), e em cada uma das partes há, por seguinte, também uma ordem ou lógica dedutiva, por exemplo, não se pode pensar a definição II antes da I e assim por diante, logo, deus não pode ser pensado primeiramente in caput a não ser de modo metafísico ou teológico, isto é, como aquilo que transcendente tudo que é demonstrado geometricamente por Espinosa neste primeira parte, na Ã‰tica e em toda a ética filosófica.

De fato, este é o pensamento comum, desde Platão, que deus é a ideia de bem na ética, ou a ideia de felicidade, o sumo bem pensado por Aristóteles, e é neste sentido que Deleuze diz, outrossim, logo após dizer que "O Deus de Espinosa é um Deus que é e que produz tudo" que ele é "como o Uno-Todo dos platônicos; mas é também um Deus que se pensa e que pensa tudo, como o Primeiro Motor de Aristóteles." (DELEUZE, 2017, p. 126) Em outras palavras, a ideia de deus transcende a ideia de bem e sumo bem ou felicidade imanente do ser humano como finita, uma "coisa" finita, pensada como finita, uma ideia que tem fim como diriam Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes ao cantarem A felicidade:
Tristeza não tem fim
Felicidade sim
A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
O bem e a felicidade humana em sua imanência é sempre menor, finita, em relação à felicidade pensada a partir da transcendência deus em sua absoluta infinitude, assim como os atributos do pensamento e extensão e os modos da alma e do corpo em suas afecções relacionados, portanto, ao ser humano, são sempre menores em relação aos atributos e modos absolutamente infinitos de deus. Em outras palavras, deus é superior ao ser humano em sua substância, e não se pode negar isto a não ser que se negue deus como absolutamente infinito, o que não é possível a partir de uma teologia metafísica filosófica, nem mesmo pensada a partir do método geométrico de Espinosa em sua Ética. Isto porque deve-se partir de Deus em si e por si para se pensar o ser humano em si a partir de deus, já que ele não pode ser pensado em sua existência a partir de si mesmo a não ser na medida em que é pensado por deus do qual deriva seu pensamento e extensão, alma e corpo como suas duas potências. Se deus é o ente absolutamente infinito em sua potência, o ser humano é o ente absolutamente infinito em sua impotência sem deus não podendo ser pensado sem este.

Toda a potência da natureza humana, a saber, toda sua perseverança em ser, seu conatus, depende de deus, o Uno-Todo ou Primeiro motor e, sem ela, diria quiçá Espinosa segundo Deleuze, ou ainda, segundo os religiosos segundo os quais o homem é absolutamente nada sem deus que é a causa sui, de si, dele mesmo enquanto deus, e de tudo, o ser humano. Não importa, neste sentido, a demonstração geométrica da Ética de Espinosa, o que importa é que toda esta demonstração ética se resume ao caput da parte I, isto é, a deus, a partir do qual é pensada a causa sui, a coisa finita, os atributos, os modos e, por fim, deus em si mesmo, isto é, ente absolutamente divino a ser pensado por fim desde o princípio. E a partir do qual é pensado senão a liberdade, por um lado, em relação tanto a deus no sentido de uma liberdade de "existir a partir da só necessidade de sua natureza" e "por si só a agir" e a liberdade "necessária" do ser humano, por ser "coagida", isto é, "determinada por outro a existir e a operar de maneira certa e determinada" (Ética, 1, VII, 2018, p. 47) e a eternidade, por outro, as duas últimas definições da parte 1.

Ao pensar a partir de deus a Ética e a filosofia de Espinosa segundo seu método geométrico nada importa a não ser a compreensão de deus enquanto causa sui e substância absolutamente infinita em seus atributos e modos em relação à qual a natureza humana é pensada ou de modo inferior, menor, em relação à deus, seus atributos e modos, isto é, como algo outro e diferente, ou de modo superior, maior, em deus, em outras palavras, idêntico ou semelhante a deus. Percebe-se, assim, duplamente o platonismo e o aristotelismo em relação à compreensão do ser humano a partir do deus de Espinosa, que é outro e diferente de deus em sua natureza e, ao mesmo tempo, idêntico ou semelhante a deus. Porém, deve-se, segundo Espinosa, recusar qualquer identidade e semelhança entre deus e o humano, pois um é absolutamente infinito e o outro, diferentemente, não, assim como se recusa, por fim, qualquer ideia de duração em relação à eternidade, pois a existência de deus como verdade eterna não pode ser confundida com a existência do ser humano em sua explicação a partir da "duração e do tempo", pois a verdade eterna da existência de deus não pode explicada "ainda que se conceba a duração carecer de princípio e fim". (Ética, 1, VIII, 2018, p. 47)

Espinosa, como um bom judeu, ainda que expurgado do judaísmo, recusa qualquer imagem de deus a partir do ser humano em sua existência, ainda que não pretenda negar Cristo como reencarnação divina e se pensa a definição de deus em sua substância absolutamente infinita após a definição de uma substância absolutamente finita, não há uma imagem que se possa ter desta substância, do que é, que corresponda ou expresse o pensamento de deus. No caso, não há uma imagem do pensamento de deus, podemos dizer segundo Deleuze, tão somente um pensamento puro de deus, uma razão pura como dirá Kant, sem que possibilite pensar categoricamente ou segundo a imaginação deus enquanto substância absolutamente infinita. Em outras palavras, trata-se de pensamento geométrico, porém, não cartesiano, que não pode ser reduzido à imagem de duas retas que se entrecruzam, no máximo, a duas retas que não se tocam, a de deus e a do ser humano, donde a ideia de paralelismo de Deleuze, porém, que não passam ainda de uma imagem a qual se deve abstrair no infinito, isto é, trair de modo abstrato ao se pensar no absolutamente infinito que é deus.

Em que medida este pensamento puro de deus é um pensamento filosófico e não metafísico e teológico, como denuncia Kant em sua Crítica da razão pura, eis a questão, mais ainda, em que medida, Deleuze ao problematizar a expressão em Espinosa, tem como preocupação a expressão de deus como princípio e fim da filosofia e ética de Espinosa, eis outro problema. Até que ponto se deve reduzir toda a filosofia ética de Espinosa à compreensão da existência de deus como causa sui, de si e tudo, à qual a natureza humana se submete, é, por fim, o grande problema ao se referir reiteradamente ao "Deus de Espinosa" e se regojizar ainda mais disso ao se dizer que Espinosa é o "Cristo dos filósofos", como se sua preocupação filosófica e ética fosse reencarnar deus, fazendo do deus transcendente um deus imanente, a natureza, mais ainda, a natureza humana.

Como diz Deleuze, é preciso pensar uma imanência, uma vida, que não seja imanência a algo, ou uma vida a partir de outra vida ou um além da vida, isto é, uma imanência que não seja imanente a uma transcendência, uma natureza humana propriamente filosófica e não teológica, metafísica, religiosa. Não é o "Deus de Espinosa" a questão, mas "aquilo que cuja essência envolve a existência, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente" (Ética 1, I, 2018, p. 45. Grifos meus), aquilo que não foi definido ainda como substância nem seus atributos e modos finitos ou infinitos, aquilo que é e existe antes de deus ser definido como substância absolutamente infinita. Aquilo que é o que força o pensar filosófico propriamente dito que não é de deus, que é visto como mal e o sumo mal, o demoníaco, que força um pensamento que não é a imagem de uma Ideia enquanto bem e felicidade, que não é uma imagem idêntica ou semelhante à Ideia em si, segundo Platão, e cujo movimento não advém do Primeiro motor, isto é, da substância. Aquilo que é, por fim, uma imagem do pensamento sem qualquer ideia do que seja, ela ou ele, não um pensamento puro segundo uma ideia de deus ou da natureza, e, sim, um pensamento impuro que não pode ser pensado a partir de uma imagem de deus ou da natureza a não ser dele mesmo, ou ainda, do ser humano como coisa pensante daquilo que é e existe sem saber, em princípio e por fim, o que é aquilo que o faz pensar e ser coisa pensante, finita outro e diferente ou idêntico ou semelhante a deus.

Aquilo... o que é? Caute. Cuidado. Dizem que é o o Deus de Espinosa.

¹ Todas as citações diretas de Espinosa são da tradução bilíngue do Grupo de Estudos Espinosanos coordenados por Marilena Chauí. Cf. ESPINOSA, Ética. Tradução Grupo de Estudos Espinosanos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018.

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