O que resta


Devemos escolher. Diante de todas as possibilidades ou variáveis possíveis, existe a necessidade da escolha. De um ponto de vista lógico, são muitas as possibilidades ou variáveis que vão se reduzindo pouco a pouco até que haja a dialética, a oposição entre duas possibilidades e variáveis possíveis, e, por fim, reste apenas uma escolha.

Pensando logicamente, há sempre uma escolha. É sempre possível escolhermos algo que desejamos, temos vontade, queremos, pensamos. Tudo acontece como manda a natureza, ou seja, por causas naturais, segundo as leis determinadas pela natureza numa seleção natural que faz com que tudo evolua até uma escolha, a única que resta e que determina a sobrevivência da espécie. Uma escolha que é divina para muitos, pois, segundo a lei natural da causalidade, para além de todas as possibilidades de escolhas naturais, de todas as leis naturais que determinam as escolhas, existe uma escolha primeira que foi a de deus de criar o mundo com todas as existências possíveis nele antes de qualquer evolução. A escolha de deus em criar o mundo determina todas as possibilidades de escolhas da vida em sua seleção e evolução natural e não há nenhuma escolha deste modo que seja independente da escolha de deus, por mais distante que esteja dele, pois deus está em todas as escolhas possíveis por direito e, de fato, realizadas segundo a fé e crença religiosa.

Neste sentido, podemos dizer, que não há escolha de fato, muito menos de direito. O ser humano escolhe o que a natureza determina para sua sobrevivência segundo a lei da causalidade que é a lei do mais forte, não apenas em corpo, mas também econômica e politicamente a partir do corpo como um produto-mercadoria e seu materialismo histórico. É na matéria que está a força do corpo, como seu alimento ou como sua arma, a potência que lhe permite escolher o que deseja e ter o que deseja a partir de seu poder corporal, econômico, político, material.

É deste um modo causal e material que se costuma determinar as escolhas quando se diz por causa de... Em contrapartida, há toda uma derivação lógica da escolha que, no limite, torna impossível a escolha mesma, pois, ao se pensar em todas as causas pelas quais se escolheu algo determinado é como se não houvesse uma escolha de fato, pois ela é determinada por tudo que aconteceu antes e não podia ser diferente. Não havia, portanto, outra escolha possível a não ser a escolha feita, a que restava fazer. Ao submeter-se a escolha a uma causalidade lógica natural e, ademais, divina, a escolha deixa de ser uma escolha, pois faz parte de um plano natural e divino segundo a lógica da causalidade e todas as escolhas se encontram previstas nas escrituras da natureza e de deus.

Vista deste modo, a escolha é o resultado de um processo lógico que se torna matemático e, atualmente, submetida a um processo algoritmo que a determina antes mesmo de ser uma escolha, de haver uma escolha. Toda a previsibilidade científica e tecnológica depende desta relação causal das escolhas possíveis como variáveis que, computáveis, levam a um única escolha possível, a que resta ser feita. Isto porque não se pode, segundo a lógica, escolher algo diferente. Nunca, ademais, uma escolha pode ser diferente do ponto de vista lógico, pois não a diferença não faz parte da lógica, não é reduzida à lógica em seu acontecimento na medida em que aquilo que é diferente não é uma escolha possível e, sim, uma escolha impossível. É uma différance, como diz Derrida, ao escolher escrever a palavra différence em francês como différance, substituindo um e por um a, subvertendo toda a lógica da escrita, mas não por menos da fala.

Fazemos escolhas possíveis, é lógico. O impossível não é lógico. Não pode ser escolhido, não pode ser submetido à lógica da escolha, não é uma possibilidade e muito menos uma variável no processo de seleção natural e divina. A escolha do impossível não é uma escolha natural ou divina, científica ou teológica, e sim, humana, filosófica. É a escolha do livre-arbítrio como escolha impossível, do impossível, do não natural e não divino, do ser humano Ãºnica e exclusivamente ao abandonar o paraíso, isto é, uma ordem divina e natural pré-estabelecida na qual não se pode escolher algo diferente, do contrário, se é expulso dela. Mas segundo a qual não há nenhuma possibilidade de ser humano sem se abandonar esta lógica paradisíaca que submete o ser humano a uma criatura divina e natural sem qualquer possibilidade de escolha, para além de toda e qualquer consciência dela de modo divino e natural em seu espírito.

Se deus criou o mundo conforme suas leis apreendidas pela fé e crença religiosa nas escrituras ou oralidade de uma tradição que seriam, outrossim, as leis naturais observadas de modo lógico e causal pelo cientista, o livre-arbítrio é uma criação humana, do ser humano como humano, isto é, como si mesmo. Por meio desta liberdade de escolha, o ser humano se determina de modo não natural e não divino, o que não quer dizer necessariamente que negue a natureza ou deus, pois isto faz parte da lógica das escolhas possíveis para explicar sua existência e a existência de tudo, mas não explicam o seu livre-arbítrio, inexplicável por natureza e, quiçá, pelos deuses, na medida em que não se pode explicá-lo científica ou teologicamente, remetendo a escolha a uma causalidade possível. Dizer que foi porque deus quis ou porque a natureza assim determinou, não torna a escolha menos impossível. Pelo contrário, aprofunda radicalmente a escolha até o ponto em que a lógica das escolhas e causas possíveis já não consegue ser reduzida a um termo, a priori ou a posteriori, racional ou empírico, científico ou metafísico.

Dizer que uma escolha é impossível, ao contrário do que sugere a lógica, não quer dizer que não se pode fazer uma escolha, que é impossível fazê-la. Quer dizer que ela não pode ser determinada pela lógica, natural ou divina, científica ou teológica. Quer dizer que ela é única, singular e nenhuma lógica pode determinar sua causa, pois não há uma causa, não há lógica na escolha. Tão pouco quer dizer que sua impossibilidade torna a escolha algo incomum ou raro, pois é de modo extremamente comum e cotidiano que se faz escolhas impossíveis, singulares, únicas, a cada momento de nossa vida.

Querer determinar as causas de uma escolha é uma preocupação da ciência e da teologia tendo em vista uma previsibilidade do mundo a partir da natureza ou dos deuses. É preciso prever o que vai acontecer, no caso, qual a escolha que resta ser feita de modo lógico ou teológico, em nome da ciência ou de deus. Não se pode deixar o mundo ser destruído por um aquecimento global ou por qualquer outra causa natural, tão pouco o mundo pode ser destruído sem que seja um plano divino, ou seja, sem que esteja nas escrituras o fim do mundo e que isto seja explicado teologicamente, no caso, por que deus quer destruí-lo e, mais importante para os religiosos, quem vai se salvar por ter fé nele e acreditar numa salvação divina.

Nem a ciência, nem tão pouco os deuses, explicam a escolha humana que, em princípio, em seu livre-arbítrio, não faz o que deus quer, vide as escrituras judaico-cristã, mas também todos os mitos gregos e de outras tradições, nas quais o ser humano, não importa o que aconteça a si, escolhe o que não é lógico escolher em nome de deus e de sua natureza e sofre as consequências por isto. Veja-se também como cotidianamente nem mesmo o mais religioso dos seres humanos segue fielmente deus ou a natureza e faz escolhas impossíveis, que não deveria ter feito, e sofre também por isto. Veja-se toda a destruição do mundo que acontece atualmente e, em vez de salvá-lo, em nome de deus e da ciência, procura-se cada vez mais destruí-lo. Nenhuma destas escolhas, podemos dizer, faz sentido, não são lógicas, não obedecem a deus e nem tem em vista uma natureza na medida em que o que se coloca em vista da natureza é a sobrevivência e viver para além de toda a destruição do mundo.

Não necessariamente as escolhas impossíveis, a partir de um livre-arbítrio, sejam negativas, tenham em vista a destruição ao serem, logicamente, contra a lei da natureza ou dos deuses. Escolher o impossível não é escolher ser contra a natureza ou deus, pois não se pode submeter a escolha do impossível a uma escolha entre alternativas a favor ou contra algo. O impossível é uma escolha em si mesma que não depende de outra coisa, não tem por causa algo, logo não é favor ou contra algo. É uma via rupta que não se volta para o passado, negando-o dialeticamente, mas para o futuro, tendo em vista o por vir a partir de uma escolha que remete a um por que inexplicável, como quando alguém diante de alguém que fez uma escolha impossível questiona: mas por que escolheu isto? E não há nenhuma explicação possível de modo lógico ou teológico, não há nenhum sentido possível que remeta a escolha a algo natural ou divino, pois não foi porque a natureza ou deus quis, mas porque o ser humano assim o quis para si mesmo, ainda que isto venha a destruí-lo e destruir o mundo em que habita.

Se todas as escolhas impossíveis são submetidas a escolhas possíveis, variáveis determinadas, isto não importa. As consequências da ação não são previstas e é isto o que torna a ação advinda da escolha algo impossível, singular, único, não saber o que vai acontecer, não se poder prever o que vai acontecer. A unicidade, singularidade, impossibilidade de uma escolha rompe com as consequências previstas, bem como a ação resultante dela que se torna única, singular e impossível. Não é possível ser humano sem fazer escolhas impossíveis, e esta condição é inelutável pela própria natureza e divindades, pois os deuses e a natureza colocam os seres humanos diante de escolhas impossíveis a cada momento ao seu modo, fazem-nos questionar se são ou não humanos.

Deuses e natureza são algo determinado, o ser humano não, mesmo que se possa determiná-lo segundo a natureza e os deuses, pois a escolha do ser humano vai contra eles constantemente, motivo pelo qual a moral religiosa e científica são tão requeridas. Aquilo que se chama mal Ã© a escolha do impossível determinado como impossível segundo moral enquanto norma de conduta conforme a uma lei natural, observável pela ciência, ou divina, a partir da fé religiosa. O mal é uma escolha impossível, a escolha que não deve ser escolhida.

O livre-arbítrio é a escolha do mal necessariamente e é considerado o mal em si mesmo, pois não se pode escolher algo que difira do que a ciência determina segundo a natureza em sua lógica ou do que as religiões determinam segundo a palavra divina. Porém, o livre-arbítrio é a única escolha humana possível, a que resta para o ser humano ser humano e não uma criatura determinada pela natureza ou pelos deuses de modo lógico, ou ainda, uma criatura determinada por outro ser humano como uma máquina. Sem o livre-arbítrio não há humanidade, apenas uma criatura submetida a uma ordem divina e natural, um animal como outro qualquer da natureza, que segue o plano divino sem qualquer liberdade de escolha, e que somente se conhece como ser humano por ser criado por deus e uma criatura na natureza, não se conhece por si mesmo através da liberdade de uma escolha propriamente dita que vai sempre além da razão, do razoável, o que não quer dizer maléfica para si ou para outros.

O fato do livre-arbítrio ser a escolha do mal, ou do erro, é devido à moral científica e religiosa, por se pretender limitar o livre-arbítrio, impedir que exista uma liberdade humana quanto às suas decisões, que, se são arbitrárias, não quer dizer que tenham em vista o mal, ou que sejam individuais e, por serem deste modo, contrárias a uma comunidade científica ou religiosa. O livre-arbítrio não é a vontade de um indivíduo contra todos os outros indivíduos a não ser quando a escolha de alguém é submetida à lógica de uma comunidade que o obriga a aceitá-la ou viver isolado dela como indivíduo autossuficiente, autônomo em relação a uma heteronomia. Ter a liberdade de escolha não quer dizer escolher viver sem relação com os outros, não deveria implicar o isolamento de quem escolhe tornando o indivíduo perante uma comunidade, não deveria ser a escolha entre ser indivíduo ou ser social. Todavia, esta é a escolha que se coloca como impossível, que já é vista como impossível, a de ser individual em detrimento de ser social, quando na escolha mesma não há esta implicação, não há uma exclusão da sociedade pelo individual e tão pouco deste pelo social, a não ser de um ponto de vista lógico, que uma escolha impossível visa senão fazer pensar no limite.

Isto porque o que se coloca em questão com uma escolha impossível é que não se é possível pensar para além da lógica que estabelece uma oposição de termos diante de uma multiplicidade de escolhas possíveis e que, mais ainda, obriga a escolher dentre eles, escolhendo-se, via de regra, o mais forte dos termos de uma oposição que se elege como vencedor, pois isto é o que resta a fazer. Se é preciso pensar nas escolhas a serem feitas, é preciso também pensar na determinação das escolhas feitas que excluem a possibilidade das escolhas, que submetem as escolhas a toda uma lógica perversa que obriga a escolhe dentre duas alternativas sem que se dê margem para escolhas diferentes. Isto não implica que não haja oposição diante das escolhas, mas que haja apenas uma única oposição, uma oposição singular que é a de escolher a não oposição, de escolher cindir a lógica que sustenta a oposição, que opõe um ao outro, seja o que e quem for um e outro. Trata-se de escolher não via de regra, mas via rupta, rompendo com a lógica sem que necessariamente que a lógica seja destruída, mas que ela não prevaleça sobre as escolhas, que não seja o fundamento das escolhas, científico ou teológico, do contrário, toda e qualquer possibilidade de escolha se torna impossível, isto é, deixa de ser possível segundo a lógica.

Limitar as escolhas a uma escolha, a que resta a ser feita, é o que determina a lógica e a teológica, mas não o que determina a filosofia que torna todas as escolhas possíveis, mesmo as que são impossíveis na medida em que o pensamento filosófico, por mais lógico que seja, rompe com a lógica e a teológica, pois, o ser humano através da filosofia tem em vista senão sua liberdade de escolha cujas causas não são necessariamente lógicas e teológicas e, neste sentido, vão além do que prever a ciência e a teologia. Isto porque, por pior que sejam as escolhas, elas ainda são pensáveis pela filosofia como escolhas humanas, demasiadas humanas, que fazem o ser humano ser o que é para além do bem e do mal determinado pela natureza e pelas divindades. Diante de todas as escolhas possíveis, em nome da natureza e de deus, o que resta é ser humano, mas que ser humano se deve ser, cada um deve escolher ciente de que se suas escolhas são únicas nunca são as únicas em sociedade e há sempre consequências para elas.

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