Por dentro da Indústria Americana


Quando Marx e Engels concluíram o Manifesto Comunista, em 1848, dizendo "Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!", mais do que um chamado à união de todos os trabalhadores era um desafio, o maior de todos, que trabalhadores se unissem, e que se tornou com o tempo muito mais difícil, ainda mais depois da globalização do mundo com trabalhadores de diferentes culturas e transformações das indústrias com a automação como se pode perceber muito bem no documentário Indústria American (American Factory, 2019).

Quase duzentos anos depois, pode-se dizer que a união dos trabalhadores não é um desafio tão difícil, mesmo quando fazem parte de culturas e ideologias tão diferentes como a dos Estados Unidos e da China neste documentário, caso se olhe de fato para os trabalhadores em seu sofrimento cotidiano, em suas dificuldades no trabalho, problemas salariais e perspectivas de vida. Mais do que um documentário sobre a indústria estadunidense atual, depois da crise de 2008, com o fechamento de uma fábrica da General Motors, ele é um duro golpe nos Estados Unidos e demonstra muito bem o temor de Trump em relação aos chineses. Muito mais engajados no trabalho, muito mais dispostos a sacrificarem suas vidas pelos empregos, muito mais comprometidos com o ideal da empresa, os chineses são, ironicamente, o que os estadunidenses propagam no mundo há muito tempo a partir da ideologia capitalista. O que eles não esperavam é que o mundo, e principalmente uma nação comunista em sua ideologia, se tornasse melhor do que eles.

Este duro golpe perpassa todo o documentário mostrando que, primeiro, os Estados Unidos não são mais o exemplo capitalista do mundo e que, mais ainda, os trabalhadores estadunidenses sofrem o que trabalhadores de países subdesenvolvidos como o Brasil também sofrem com a perda de salários, a perda de direitos trabalhistas, com campanhas contra sindicatos, com a exploração crescente do trabalho em benefício de uma produtividade e eficiência além de qualquer direito humano que os Estados Unidos em seu capitalismo selvagem propagaram pelo mundo e agora sofrem na mesma moeda, em dólar. O que começa como um momento de integração de duas culturas diferentes num mesmo ambiente de trabalho crescendo e fazendo crescer juntas o desempenho da fábrica Fuyao, de vidros automobilísticos, se transforma na expressão mais clara do capitalismo global atual no qual também os estadunidenses sofrem assim como os trabalhadores do resto mundo. Chama a atenção neste sentido como, por mais diferentes que sejam as culturas, a fábrica molda as relações entre os trabalhadores e não é difícil ver os mesmos discursos sobre questões trabalhistas como, ironicamente, quando um estadunidense, tentando agradar a um gerente chinês, diz que os "os americanos são preguiçosos", algo que se diz há muito tempo no Brasil e que se apregoou, desde a colonização, aos indígenas tendo em vista o capitalismo colonizador.

A decepção dos estadunidenses com o trabalho que recebem como graça pelos chineses está presente em suas falas, mas também em seus corpos fartos de um época de bonança em que ganhavam 29 dólares por hora e recebem agora apenas 14 dólares por hora. Está na decepção do discurso de um trabalhador de que ganha 27 mil dólares por ano na fábrica enquanto sua mulher ganha 40 mil dólares por ano como manicure, demonstrando como o setor de serviço no capitalismo atual é muito mais lucrativo do que o setor fabril. Está nos corpos, além de fartos, também velhos, corpos de um capitalismo que, como diz um dos empregados, não contrata mais pessoas velhas, somente jovens e que é o que o presidente da empresa Fuyao manda fazer, substituir os velhos pelos novos, quando aqueles não são tão eficientes. Está na prepotência dos trabalhadores ao se verem como "americanos" tendo que admitir que são trabalhadores como muitos no resto do mundo, e os mesmos trabalhadores pelos quais Marx e Engels falaram e defenderam no Manifesto Comunista.

Há quem pense que o comunismo é uma ideologia, mais ainda, que seja uma ideologia partidária como é a do Partido Comunista Chinês inspirada no Partido Comunista Soviético, e que é esta ideologia propagada por Marx e Engels em princípio o que busca unir os trabalhadores de todo o mundo. Todavia, o comunismo nunca foi e nunca será uma ideologia, pois o que é comum não é uma ideia, mas o trabalho na fábrica e toda a relação de classe que se impõe a partir dela desde o século XIX, as mesmas que vemos se repetir no documentário Indústria Americana. Relações de classe que são antagônicas, com patrões determinando baixos salários, horas exaustivas de trabalho em ambientes sem segurança adequada e insalubres, impedindo a formação de sindicados, agora por meios democráticos, com direito a manifestações e votação para se tomar a decisão, mas ameaçando-se de todas as formas caso um sindicato seja implementado, com o fechamento da fábrica, além de métodos tão antigos como o de demissão de pessoas relacionadas ao sindicato. Curiosamente, toda a relação de classe conflituosa existente na fábrica estadunidense por conta dos sindicatos não acontece na matriz chinesa na qual a presença do sindicato dirigido pelo Partido Comunista é atuante, mas, neste caso, também ele mudou, pois não é para defender os trabalhadores e, sim, para os convencer de como o trabalho é importante na vida deles, mesmo que sendo de 12 horas por dia, com duas folgas apenas por mês, sem direito algum. Uma forma de forçar os trabalhadores a trabalharem mais por menos assim como fazem as empresas de Relações Laboriais nos Estados Unidos dissuadindo os trabalhadores a se sindicalizarem ou reivindicarem melhores salários e direitos e aceitarem o trabalho que lhes dão de qualquer modo, a qualquer preço.

O que se convencionou a chamar hoje em dia de uberização do trabalho é muito bem demonstrado neste documentário e não é nenhuma novidade, pois foi nas fábricas do século XIX que o trabalho forçado pelas circunstâncias da pobreza, consumindo a força de trabalho 12h por dia, sem descanso e sem direitos trabalhistas começou a surgir, e esta é a premissa básica do capitalismo a qual ele retorna a cada crise das empresas em seus lucros. Em Indústria Americana vemos como isto se dá ainda hoje e como na fala de um dos empregados a repetição exaustiva de movimentos aliena o trabalhador ao ponto dele se perguntar o que está fazendo ali. Toda a ideia de produtividade e eficiência a baixo custo com empregados do setor de serviços de entrega trabalhando incansavelmente começou no chão da fábrica e se hoje está nas ruas é porque a sociedade deixou de ser uma sociedade disciplinar para ser uma sociedade de controle na qual o trabalhador não precisa necessariamente estar num local de trabalho e, sim, que o local de trabalho esteja onde ele estiver por meio das novas tecnologias, principalmente o celular. É a desterritorialização do trabalho da fábrica e suas esteiras de produção em série introduzidas por Ford na indústria automobilística para as ruas com os produtos desta indústria (carros e motos) formando uma esteira em constante deslocamento da produção com suas entregas. A uberização nada mais é do que a produção em série fora da fábrica na entrega de serviços e a uniformização do trabalho de serviços cada vez mais veloz como pressupõe a produtividade capitalista dentro da fábrica com suas máquinas.

A velocidade dos carros e motos, que estimularam a produção capitalista e o fetiche por máquinas, não apenas produtivas, mas como bens culturais, hoje representa o capitalismo fora das fábricas em sua mesma produção em série nos engarrafamentos cotidianos e a busca de uma maior velocidade na produção de produtos-serviços tal como acontece nas fábricas. E novamente as máquinas, agora, informatizadas, automatizadas, transformam o capitalismo tal como no século XIX com a perspectiva de demissão em massa de trabalhadores nos próximos anos, 230 milhões estima o documentário. O que era, deste modo, um futuro promissor com a chegada fábrica e a contratação de empregados da antiga fábrica da General Motors no início do documentário, com uma integração de duas culturas, se torna um futuro distópico como o analisado pelo filósofo Franco Berardi em Depois do futuro, no qual trabalhadores se veem cada vez mais sem perspectiva, de modo melancólico lembrando o passado e com um vazio existencial niilista em suas vidas. A implementação das máquinas automatizadas na fábrica da Fuyao demonstra de um modo claro aquilo que no século XIX foi o motivo do movimento do ludismo contra elas, destruindo-as, por verem nelas a destruição do futuro dos trabalhadores, tal como é demonstrado no documentário na fala de um dos empregados ao dono da empresa, no final, dizendo que uma máquina substituirá quatro trabalhadores.

Apesar de um certo regojizo inevitável em ver os estadunidenses passarem pelo que trabalhadores de países subdesenvolvidos passam com empresas deles, é difícil não sentir empatia com o sofrimento de suas situações de trabalho, que são as mesmas para todos os trabalhadores no capitalismo e que, se um dia eles puderam se regojizar por não se verem como trabalhadores e, sim, como "classe média", em Indústria Americana é como trabalhadores que eles são obrigados a se verem, sem os bens de consumo que se acostumaram a ter, como no Brasil recentemente, e já não mais se tem. Ver a classe média estadunidense sofrer nas fábricas com salários a baixo do que julgam merecer, sem direitos trabalhistas, tal como hoje acontece no país, só demonstra que o capitalismo não diferencia culturas, ele as integra todas ao seu modo no chão da fábrica na qual todos devem trabalhar o máximo possível pelo menos possível benefícios existenciais e sociais. E agora não são os trabalhadores fartos estadunidenses em seus corpos rechonchudos, com dedos grossos e ineficientes o exemplo para o mundo capitalista, mas os chineses, magros, uniformes, homens em sua maioria, dispostos a trabalharem a qualquer custo, mesmo do outro lado do mundo pelos mesmos salários, sem direito a descanso, seguindo rigidamente o controle de produção.

O momento final do documentário, ao lembrar o início do filme Tempos modernos, de Charles Chaplin, mostra deste modo o fim da utopia da globalização capitalista, com trabalhadores estadunidenses entrando  de um lado representando o velho trabalhador moderno, e, do outro, o trabalhador do futuro, o chinês, que representa os Tempos pós-modernos da indústria e do capitalismo que destrói todo tipo de cultura padronizando todos como trabalhadores desunidos por ideais, mas unidos pelo mesmo sofrimento em cada dia de sua jornada de trabalho.

Nenhum comentário:

Tecnologia do Blogger.