Somos falhos
São sempre falhas que buscamos nos outros. Brechas por meio das quais possamos entrar neles. Todo corpo tem falhas, pontos pelos quais podem ser invadidos. Em geral não percebemos as aberturas corporais como falhas, mas elas são os meios que nos fazem abertos ao mundo e os quais não queremos mesmo deixar expostos.
Não queremos nos expor. Mesmo que nos exponhamos constantemente, há uma reserva que vai além da roupa, do corpo, que está diretamente relacionada ao nosso ser, uma vergonha por aparecer deste ou daquele modo. Não importa o quão liberal se é em termos de valores, há sempre algo que se preserva de modo particular, como seu, sua propriedade, aquilo que lhe pertence, sua essência, aquilo que o faz ficar nu mesmo totalmente vestido.
As falhas são percebidas quando não conseguimos evitar a exposição daquilo que somos, o que nos faz mal, pois alguém pode nos atingir no Ãntimo. Podem ser coisas bobas, mas são sentidas tão profundamente que não perdoamos. Não queremos saber de perdoar. É como um vÃrus que diante das defesas do corpo são combatidos veementemente e tão pouco são deixados entrar novamente. O corpo é um campo de batalha em luta contra tudo que queira destruir seu ser. VÃrus, bactérias, animais, seres humanos, tudo é considerado uma ameaça quando o atingem, quando se introduzem por meio de suas falhas de defesa.
Nada disso é uma metáfora com a recente computação que se programa hoje em dia, mas está em consonância direta com ela. Programas são corpos produzidos para serem sem falhas, sistemas computacionais de dados produzidos para não falhar, mas como corpos mesmos são falhos, possuem brechas por onde possam ser invadidos. Evitar estas brechas é o que grande objetivo destes sistemas que devem ser fechados de ponta a ponta em seus códigos. Uma falha na produção deles pode permitir uma invasão do sistema e, se não a dominação dele, sua destruição. Não a invasão de Troia pelos gregos é o sÃmbolo máximo da invasão de sistemas, pois há sempre como burlá-los, de um modo ou de outro.
A falha não é, porém, um defeito de produção, ela faz parte de nossa essência. É uma abertura da mônada para tudo que a cerca mesmo que ela seja fechada por todos os lados como considerava Leibniz a essência do ser humano. O fato de ser fechada não elimina seu contato com o mundo. O mundo ainda assim se impõe sobre a mônada introduzindo-se nela por pressão, impondo sua força, forçando-a a se abrir, a falhar. Pensemos numa bola de borracha que apertemos com as mãos aparentemente fechada a tudo que o cerca, mas maleável à nossa mão, eis a mônada leibniziana, e mesmo que não seja maleável e, sim, dura como uma pedra, ainda assim sente a pressão que se produz nela e quanto mais forte a pressão, mais ela falha, deixa-se invadir pela força alheia, destrói-se ante ela.
Querer que algo não falhe é um desejo irrealizável. Mesmo os deuses concebidos à maneira humana são falhos, sempre falhos, de algum modo suscetÃveis a um pensamento que introduz uma falha na concepção deles. Apenas deixam de serem falhos concebidos por uma teologia negativa que nega a eles tudo que é humano em termos de valores de modo tal que seriam irreconhecÃveis ou então a própria natureza como o concebeu Spinoza de modo geométrico. Mas ainda assim, mesmo corrigindo o intelecto deste modo no que diz respeito ao método, não deixou ele de conceber deus a partir de uma substância tendo como atributos coisas demasiadamente humanas, mente e corpo, por mais que estes fossem atributos de deus nos seres humanos por uma inversão lógica. Eis a falha em seu pensamento que é senão de todo pensamento que se pretenda entender o ser de modo perfeito que somente pode ser inumano, um todo sem falha alguma.
Mas se existe um mérito em Spinoza, assim como em Sócrates, ou mesmo em Nietzsche, é admitirem a falha. Não é possÃvel nenhuma correção do intelecto em direção à perfeição senão deste modo. O próprio princÃpio da perfeição segundo Descartes demonstra isto quando tal ideia é pensada a partir da imperfeição humana conhecida no Ãntimo de sua alma para além do engano dos sentidos. É ali no momento em que se percebe falho que Descartes tem a ideia que dá suporte a toda a sua existência pensada a partir do cogito. É na imperfeição que ele encontra a própria perfeição como uma ideia que se lhe pertence como inata tão pouco é sua, foi concebida por si mesmo a partir de seu pensamento, que está em si, mas advém de fora de si e fora de toda a natureza compreendida pelo seu próprio pensamento, que é senão deus, aquilo que é perfeito porque destituÃdo de qualquer natureza como uma ideia clara e distinta da qual já não se pode duvidar, isto é, que não possui falhas. Contudo, uma ideia que se produz a partir de uma falha de pensamento, sua dúvida metódica, que o leva a pensar em sua imperfeição e nesta perfeição exterior ao seu corpo e alma e a todo corpo existente no mundo, e que traz senão incerteza para a certeza que ele acabara de ter sobre si mesmo em sua existência a partir de seu pensamento, pois já não se pode ter certeza se tal ideia clara e distinta é dele mesmo ou divina, o que obscurece e torna indistinto se se trata de um pensamento seu propriamente ou não está ele sendo enganado por um gênio maligno como pressupõe em principio. Gênio maligno que é tudo aquilo que o impede de pensar clara e distintamente, que faz introduz senão a falha em seu pensamento.
Querer evitar as falhas em nossos pensamentos assim como nosso corpo busca evitar as falhas nele para que nos preservemos saudáveis é algo inevitável tanto quanto as falhas mesmas. Nossa vida está sempre em perigo iminente ao que nos cerca e de modo instintivo, por assim dizer, evitamos tudo que possa nos fazer mal, isto é, adentrar nossas falhas e tirar nossa existência, fazer-nos deixar de ser. Por mais que queiramos entrar em contato com o mundo que nos cerca de modo a nos dispor totalmente a ele, temos uma reserva em relação a ele, buscamos nos separar dele e só podemos viver mesmo no mundo em sua natureza desta forma, separando-nos dele. Tal separação é, paradoxalmente, o que nos possibilita viver no mundo, isto é, manter-nos ligado a ele. Uma falha que nos separa e nos mantém ligados a ele ao mesmo tempo preservando a nossa existência nele, por meio da qual estamos em contato com o mundo e ele conosco.
Evitar esta falha é evitar a si mesmo no mundo, a ser no mundo, deixar de existir em contato com ele por meio de nossas falhas. É querer impor uma ordem a ele e a nós mesmos em contrapartida na qual tudo que existe deve estar no seu devido lugar senão tudo pode falhar como um conjunto de blocos superpostos. Em tal mundo geometricamente delimitado, porém, não existimos, somos apenas uma ideia adequada para falarmos como Spinoza à qual todo corpo se adéqua senão a ela e deve ser adequado se não quer ser compreendido corretamente. A ordem concebida para suprir todas as falhas acaba por suprir nós mesmos como falhos.
O medo das máquinas com sua inteligência artificial produzidas de modo puramente lógico em sua estrutura computacional não é uma paranoia neste caso, é o medo do ser humano ser suprimido tal como é de modo falho por aquilo que é produzido para não falhar. É o medo de ser julgado por suas falhas e descartado por elas mesmas de um emprego ou mesmo da face da terra, ou ainda, de um paraÃso a partir da crença de a justiça de deus não falha. Somos falhos e qualquer coisa que se mostre sem falhas perante nós causa temor e as máquinas como aquilo que são produzidos para não falhar e não falham senão com o tempo são temorosas por conta disto tal como os deuses que nunca falham em nos julgar.
A revolta dos seres humanos contra as máquinas é senão a busca de demonstrar como elas são, então, falhas como os humanos e, portanto, não podem estes serem substituÃdos por aquelas. Por mais perfeitas que sejam em sua pureza lógica esta pureza ainda pode ser corrompida por qualquer um que consiga invadir seu sistema ou mesmo torná-la obsoleta. Pois há sempre como demonstrar a falha de um sistema demonstrando o que ele não pode fazer e devendo, deste modo, ser substituÃdo por outro, ou ainda não podendo substituir um ser humano justamente por causa disto, por não fazer o que o ser humano faz. Donde, por mais que uma máquina possa em sua inteligência artificial expressar um pensamento como um ser humano não é ela ainda um ser humano na medida em que não pode substituir o próprio pensamento humano que a constrói e ser deste modo autônoma em relação a ele tão pouco em relação à natureza. E tende a falhar tecnicamente toda construção automática das máquinas se elas não forem capazes de perceberem suas próprias falhas de pensamento e de ação quando falharem e, deste modo, falharem por não perceberem suas próprias falhas.
Se existe algo que a informatização trouxe de modo mais emblemático em relação à nossa existência foi senão a percepção cada vez maior das falhas humanas. Todo o pensamento cientÃfico tecnológico moderno racionalista e idealista fez acreditar num futuro sem falhas a partir de modo progressivo, contudo, o que se viu a cada momento em que um progresso cientÃfico tecnológico advinha eram cada vez mais falhas neste pensamento, de modo que todo o iluminismo trouxe uma grande sombra que já não podia ser ocultada pelas luzes da razão. Percebeu-se que a razão falha e mais precisamente que falha quando se pretende mais sem falhas de modo puramente lógico construindo uma ordem que exclui de si toda a humanidade como algo que já não faz parte de um pensamento iluminado e clarividente à maneira cartesiana. Em outras palavras que a luz natural da filosofia cientÃfica tecnológica moderna não era um Sol a fazer viver a natureza como na alegoria da caverna de Platão, mas meteoros incandescentes a trazer novas vidas na terra, todavia, não sem antes destruir outras e, quiça, toda uma multiplicidade de seres de uma vez como à época dos dinossauros.
Com a informatização cada vez maior da vida transformada em bits percebemos cada vez mais as falhas de pensamento e ação do iluminismo moderno ao mesmo tempo que tentamos corrigi-las. Se a informática é atualmente a linguagem da natureza tomando cada vez mais o lugar da matemática pura de Galileu como interpretação da natureza é senão porque ao contrário do que pensava o filósofo florentino e muitos depois dele, a linguagem da informática não é pura, sem falhas, como se pensava a matemática antigamente e na época clássica moderna. Pois tão pouco também é pensada atualmente a natureza de modo perfeito em sua ordem pressupostamente matemática, mas falha, relativa a cada observação e, mesmo que deus seja concebido por Einstein como aquele que não joga dados, dados estão sempre a rolarem na natureza cabendo ao ser humano apenas apostar na probabilidade de uma ou outra interpretação a partir dos dados.
Todo programa criado do ponto de vista da informática tem falhas assim como a natureza e cada modelo criado para servir de medida de interpretação da natureza introjeta em si mesmo a falha para corresponder cada vez mais aos dados da natureza na qual tudo é provável, mas com uma conotação diferente do que pensava um pensador clássico. Pois não se trata de demonstrar a ordem da natureza em sua perfeição o que se coloca em questão atualmente, mas que toda a busca de perfeição da natureza entendida como algo estático ao dispor do ser humano como um dado objeto ou dado objetivo é senão uma probabilidade, isto é, um dado que pode ser um objeto ou não, pressupor algo objetivo ou não, o que não quer dizer algo subjetivo ou produzido por um sujeito. Ainda que o sujeito atualmente seja aquele que interpreta os dados em questão sob sua determinada visão de mundo como pressupunha Husserl mesmo quando o conhecimento é puramente objetivo como no caso da geometria cuja origem é senão subjetiva e não objetiva como se poderia pensar.
São as falhas nos programas que permitem que eles se adequem cada vez mais ao que pretendem se aplicar e todo aquele que faz parte da informática compreende que ela, assim como a natureza, não é um sistema fechado, mas aberto, o que quer dizer, passÃvel de falhas. Não por acaso as empresas de informática pagam muito bem à queles que encontram falhas em seus sistemas e os melhores programadores são também os melhores em encontrar falhas nos sistemas dos outros e suprir em seus próprios programas. Ser melhor do que outros, neste caso, é superar as falhas dos outros, mas não sem antes pressupor suas próprias falhas e superá-las. Toda luta com o outro numa batalha é uma luta em princÃpio consigo mesmo para não falhar mais do que ele e não por acaso se diz que o pior inimigo é si mesmo, mas apenas quando se conhece as próprias falhas.
De um ponto de vista informático, sabe-se, outrossim, que não se pode suprimir todas as falhas, que se deve manter o sistema aberto a elas ou mesmo que não se pode evitar esta abertura na medida em que ele é aplicado. Por mais perfeito que seja o código de informática, ele deve ter uma aplicabilidade e sua aplicabilidade pressupõe falhas, corrupção do sistema pela utilização em determinada máquina, já que não há a utilização de um programa numa máquina ideal assim como não existe mundo ideal no qual ele seja aplicado e não venha com o tempo a se tornar obsoleto. Não porque ele seja falho em si mesmo, isto é, ainda funcione bem como as máquinas de escrever, mas porque ele pode ser falho em si mesmo não servindo mais para o mercado que simplesmente prefere outro programa ainda que o atual não seja falho. Neste sentido, um programa depende sempre de sua aplicabilidade e sua aplicabilidade leva a demonstrar suas falhas até o momento em que ele se torna em si mesmo falho e tende a ser substituÃdo pelo outro em sua funcionalidade, assim como seres humanos são substituÃdos em sua utilidade. Quem pensa que a Matrix é um mundo de máquinas que substitui seres humanos para os seus propósitos, pelo contrário, ela é a própria natureza a substituir seres por outros seres dependendo da sua funcionalidade, ou mesmo o mercado de trabalho capitalista substituindo aqueles trabalhadores que começam a falhar em seus trabalhos. Ela é a programação em si mesma substituindo códigos por outros códigos e linguagens entre si para manter o sistema funcionando sem falhas aparentes, mas sempre corrompido desde o princÃpio, isto é, desde sua arquitetura pelo Arquiteto do programa.
Neo não é apenas o novo, mas a falha de todo o sistema. Aquilo que se quer evitar, mas já não se pode evitar. Aquilo que não podendo se evitar é o que salva senão todo o sistema na medida em que o sistema percebe a utilidade dele como sua essência mesma, pensando na falha a partir de um determinado propósito, como algo, então, que deve existir, uma necessidade caso ele queira se manter funcionando.
Somos falhos, eis a nossa essência. O que não quer dizer, porém, que sejamos maus, que a falha seja um valor moral: erro, mentira ou falsidade. Se o erro é humano, a falha não. O erro, a mentira, a falsidade pressupõem um pensamento e uma ação que tem em vista o que é certo, uma verdade, um ser verdadeiro em oposição a tudo aquilo. A falha não é algo ao que nos opomos dialeticamente, mas algo que simplesmente evitamos para nos mantermos vivo em nosso corpo, mente, funcionalidade. Evitamos as falhas conhecendo-as cada vez mais e não nos distanciando delas de modo absoluto por uma certeza, verdade ou ser verdadeiro tentando não errar, não mentir, não sermos falsos. Toda falha é relativa e não pressupõe como o erro, a mentira e a falsidade a sua negação ou superação absoluta por uma certeza, verdade ou ser verdadeiro. Não se pode substituir absolutamente uma falha, apenas evitá-la relativamente.
A falha pressupõe a relatividade de todo o sistema corporal, natural e humano diante de toda e qualquer ordem que se pretenda impor sobre ela de modo absolutamente em relação ao corpo, natureza e humanidade. Ela nunca pode ser suprimida, por mais que se queira conscientemente, permanecendo sempre inconsciente e vindo à tona de forma inconsciente mesma, isto é, para além de toda a consciência humana como um ato falho, algo não programado. Pois toda falha é senão algo não programável, algo fora do que fora planejado, ordenado, pensado de modo consciente e evitado em sua ação.
Ao se programar uma falha ou se pensar uma falha em seu ato como um ato falho não se tem uma falha propriamente, apenas a falha destituÃda de si mesma, corrompida ela mesma em sua essência, repercutida na consciência que já a domina e a controla totalmente de modo ilusório, mas não real. Trata-se senão de uma realidade virtual, uma realidade na qual as falhas são controladas de modo a não aparecerem ou aparecerem como falhas sem serem realmente, uma distorção de sua realidade, pois se há uma diferença clássica entre o real e o virtual é senão que este é sem falhas mesmo quando elas aparecem nele. Neste sentido, toda ordem é virtual e não real, a geométrica sobretudo, na medida em que ela não possui falhas e quando as têm é senão como arestas que dão estrutura à forma e podem ser apagadas lhe aprouver. Não é por acaso que toda estrutura virtual se torna hoje uma substituição da realidade e não é uma representação da realidade mesma como no pensamento moderno, pois se trata de destituir senão todas as falhas que existem na realidade e no pensamento desta realidade pelos modernos. E se tantas pessoas vivem uma vida virtual, isto se deve na mesma medida porque nele elas podem viver sem falhas, quaisquer que sejam elas: de corpo, de pensamento, de valores. A virtualidade tem como objetivo eliminar todas as falhas da realidade e é senão isto que as pessoas senão falhas querem e quanto mais falhas forem as pessoas, mais o mundo virtual se torna atraente para elas, pois é o mundo no qual elas podem evitar todas as suas falhas, ocultando-as não apenas dos outros, mas também de si mesmas.
Toda a virtualização do mundo real atual se é um problema é senão por causa disto, por fazerem as pessoas quererem evitar absolutamente suas falhas, não saberem conviver com elas, a menor que sejam. O virtual é o mundo perfeito porque não tem falhas ou por suas falhas serem apenas aparentes, isto é, não são falhas mesmas em si mesmas, mas algo que acontece nele sem ser uma falha na realidade. Pode-se morrer infinitas vezes num jogo de videogame, pode se destruir e produzir n perfis numa rede social, pode se fragmentar o quanto possÃvel em universos paralelos a partir da Internet, pois morrer, destruir, fragmentar-se neste caso não implica em nada falho na realidade, algo com o qual se deve lidar, pensar em evitar, apenas deletar como se nada tivesse acontecido.
Se a Internet e, principalmente, as redes sociais estão cada vez mais chatas para algumas pessoas é porque cada vez mais o virtual está se tornando real, isto é, cheio de falhas de pensamento e de ação. Porque a cada vez mais ele não é uma amortização da vida real, mas uma transposição dela para um plano virtual que não é menos falho do que o real na medida em que é utilizado por seres humanos que são necessariamente falhos. Mais ainda que veem suas falhas a partir de juÃzos de valores muito bem definidos que impedem sua ação de ser falha sem qualquer penalização, pois diante da ordem imposta por um pensamento racional ainda moderno, não se pode falhar perante à lei que é senão a medida de todas as falhas, o parâmetro utilizado para não evitar as falhas, mas para puni-las a cada vez que aconteçam na vida real ou virtual.
A ideia que a lei não falha assim como a justiça divina não é que ela não seja falha em si mesma, mas que ela é o princÃpio de que não se pode falhar, é o dever de não falhar em hipótese nenhuma. Não é possÃvel nenhum Estado laico nesta medida já que o parâmetro desta medida é senão a justiça divina enquanto ideia de que deus não falha e não admite tão pouco que os seres humanos falhem sem uma punição de sua falha ou uma remissão do seu pecado. Não se pode falhar, eis o que quer dizer toda lei humana e divina, pois cada falha deve ser punida pela lei mesma que não admite falhas.
Uma lei que não admite falhas é o pressuposto do pensamento polÃtico moderno segundo o qual se tem sempre razão segundo a lei, de que toda ordem é, por princÃpio, algo não falho, que deve ser admitida como sem falhas. Em outras palavras também a lei neste caso sendo algo virtual enquanto uma ordem concebida sem falhas. Se as leis são concebidas de um ponto de vista democrático como algo que podem ser modificados, aprimorados, isto não pressupõe que elas sejam falhas. Pelo contrário, elas são aceitas senão por serem consideradas por aqueles que a elaboram como algo não falho, algo que venha a resolver um problema definitivamente e que não de pode ser questionado em sua falha mesma, pois qualquer falha na lei inviabiliza senão sua aceitação. Eis porque a exceção não é uma falha na lei propriamente, mas algo concebido pela própria lei como uma aparente falha dela quando se trata senão daquilo que a lei pressupõe como seu limite de alcance no velho jargão de que toda regra tem uma exceção, mas não uma falha.
Considerar uma lei falha dentro de um pensamento moderno é pressupor que ela possa ser substituÃda brevemente e nenhuma lei é concebida para durar pouco como são produzidos os objetos a partir da natureza. Se as ciências da natureza já superaram há bastante tempo a ideia de uma perenidade das leis da natureza no sentido de que elas tendem a se modificar junto com toda a natureza em seu devir, pois nada nos garante que a natureza será do modo que é atualmente daqui a milhões de anos, ainda mais com a interferência do ser humano, as ciências humanas e jurÃdicas ainda se orientam a partir de uma ordem social, polÃtica e jurÃdica à maneira clássica considerando as leis como algo inviolável. Leis são, portanto, sistemas fechados e não abertos como a natureza ou programas de computador que não podem ser modificados conforme a aplicação. Se as leis não se aplicam a determinadas situações, não é um problema das leis propriamente que devem ser abandonadas, mas do que acontece que não se adéqua a elas e que devem se adequar, pois esta é senão a lei e a ordem pressuposta por elas social, polÃtica e juridicamente.
Não há falhas na lei, mesmo que hajam erros nela, mesmo que elas não sejam uma grande mentira ao se dizer para todos igualmente, mesmo que seja uma falsidade sua aplicação pelos magistrados ou sua elaboração pelos polÃticos que legislam, isto é, criam as leis. As leis não são pensadas como programas de computador que visem suprir aquilo que é o desejo ou anseio de seus usuários, no caso, os cidadãos, para que vivam melhor na realidade, e programas que tendem justamente atender a quantidade mais variável de usuários. Pelo contrário, elas são criadas restritivamente para atender determinados grupos sociais e não se expandir a todos para garantir o poder de alguns sobre outros criando diversas exceções em vez de suprir falhas.
Os polÃticos que criam as leis atualmente não pensam que são falhos, mas cidadãos de bem, sem falha alguma e, logo, suas leis também não, mesmo que não visem a atender a todos, apenas aqueles a quem elas dão direitos e deveres. Não há falhas na lei, nunca há, pois aqueles que as criam tem em vista uma ordem determinada que deve ser seguida por todos como algo certo, uma verdade, algo verdadeiro e que não obedecer a lei é um erro, mentir, ser falso, em outras palavras, alguém contra a ordem que elas pressupõem e, portanto, punÃvel senão por isto. Apontar falhas na lei é demonstrar que as pessoas que as criam são falhas, mas justamente por não se considerarem falhas, as leis que criaram não são consideradas falhas por elas.
Toda a ordem social, polÃtica e jurÃdica é uma virtualidade na medida em que não admite falhas na sua lei, que não admite que as leis sejam modificadas conforme a sua aplicação para que melhor atendam as necessidades das pessoas em suas falhas mesmas. Ao se considerar uma ação falha do ponto de vista da lei e não um erro, mentira ou falsidade punÃvel a partir de um princÃpio moral torna-se possÃvel que tal ação seja evitada de algum modo. Contudo, ao punir pela lei um erro não se evita o erro apenas o substitui por outro, no caso, uma violência pela outra em medida virtualmente proporcional. Virtualmente porque pensa-se que a ação de punir, por ser uma ação da lei, é isenta de falhas como a ação divina e que, assim, aquele que é punido não está sofrendo uma ação que seja ela mesma errada, mas correta, em certa medida. Ninguém até hoje se modificou por ser punido realmente, mas por ter percebido a falha de sua ação ou pensamento no sentido de que ela o impediu de viver, de manter sua vida de determinado modo. Por não ter buscado evitar sua falha para viver melhor consigo mesmo e com os outros, não sem falhas, mas admitindo-as a cada vez no sentido de ser cada vez melhor em evitá-las.
A lei e toda a ordem social, polÃtica e jurÃdica não dá o direito de falhar, eis o grande problema da lei pensada do ponto de vista moderno. Qualquer falha é pressuposta como um erro diante de uma moral que é intolerante por princÃpio, por não tolerar falhas. A lei de talião não é apenas um aspecto primitivo da lei com a substituição de um olho por olho ou dente por dente, é o princÃpio mesmo da lei exposto na substituição de uma ação errada por outra equivalente a ela em erro, pois não pode se substituir um erro por um acerto, já que não há nenhuma equivalência neste sentido, e somente pode se substituir aquilo que é equivalente em medida e nunca oposto, já que a oposição impossibilita qualquer troca por não se poder chegar num acordo. Toda lei é um erro, seja porque é uma ação moral que visa substituir um erro, seja porque é um erro que é pensado como um acerto, logo de modo errado lógica e moralmente. Não por acaso a lei é violenta, neste sentido, pois é seu princÃpio mesmo ser tão violenta quanto for a ação daquele que produz a violência contra ela e se não se troca mais olho por olho ou dente por dente, mas o direito de ir e vir mais amplamente por um direito de ir e vir limitadamente numa prisão por um determinado tempo, todavia tão pouco a violência é menor, tendo em vista que a privação do direito de ir e vir, neste caso, é a violência mais duradoura, pois é para toda a vida. E aqueles que são presos uma vez sabem muito bem disso ao ponto de não terem outra alternativa neste caso senão viverem uma vida violenta em relação ao princÃpio moral que ordena a sociedade, a polÃtica e jurisdição, pois se sua vida perdeu todo o sentido em relação a esta sociedade, polÃtica e jurisdição que não tolera o erro e para sempre ele será bandido, nada o impede de se tornar cada vez mais bandido, isto é, não perceber suas falhas e querer evitá-las não tendo em vista uma ordem social, polÃtica ou legal, mas a si mesmo em sua vida e a vida dos outros.
Aquele que falha ao ser punido pela lei tem sua vida totalmente ceifada de perspectiva. Ele se torna um erro, a própria mentira e falsidade enquanto ser humano. Não lhe resta nenhuma alternativa para si, nenhuma forma de deixar de ser deste modo, toda sua essência se tornou determinada pela lei e mesmo que mude seus atos no sentido de apagar os seus erros, eles permaneceram podendo ser expostos a qualquer momento não como falhas relativas, mas um erro absoluto, como tendo feito algo totalmente errado do ponto de vista da lei. A lei retira do ser qualquer determinação dele a si próprio a partir de sua ordem ao dizer que ele é culpado. A privação do seu direito de ir e vir é senão, neste caso, a privação de seu direito de ser de outro modo, de devir, que lhe impede de vir a ser outro novamente. É a mais implacável ordem sobre a existência que a impede de ser de outro modo, algo que não tem nenhuma comparação com uma lei natural, já que pressupostamente a evolução pressupõe senão que todo ser varie em sua existência para sobreviver e somente deste modo ele pode existir. O que quer dizer que ele deve pressupostamente falhar num determinado momento para poder existir no sentido de que suas pernas já não são mais úteis para sua sobrevivência na água e deve ter nadadeiras ou, inversamente, estas já não são mais úteis para si tendo que adquirir pernas.
A lei da natureza é o devir, ao contrário de toda lei humana que pressupõe ser de um determinado modo sem possibilidade de devir em relação a lei, submetendo-se toda existência à sua determinação como um acerto ou erro quanto à obediência dela. Impedir todo e qualquer devir na existência é o princÃpio da lei humana e divina totalmente diferente do que pressupõe a lei natural cuja ordem se modifica a todo tempo ainda que não se perceba como a rotação da terra em si mesma e em torno do sol a não ser relativamente a partir da variação da luz solar incindindo sobre si. O que isto deveria servir senão de medida para toda lei humana, o fato de que a partir da incidência dos raios solares pode-se perceber senão que a cada momento há um devir da terra e uma mudança de tudo que existe nela, bem como uma mudança de tudo que existe nela para que se sobreviva e que, diante da mudança de tudo que existe na terra, a terra senão também se modifica ininterruptamente, num cÃrculo falho que não se fecha sem se abrir novamente para si mesmo em seu traço ocultando e evitando sua falha ao tornar a si mesmo.
Somos falhos e tudo que é falho é evitável. Evitar nossas falhas é não por menos fazer os outros pensarem em suas falhas é fazer com que as falhas que nos definem sejam cada vez mais evitadas e não podem ser substituÃdas ou negadas por qualquer ordem. Expor nossas falhas é algo inevitável e esta é a única lei que nos determina de fato e nenhuma lei criada por nós à semelhança de um deus pode fazer com que não sejamos falhos. Aceitar isto não é atribuir, portanto, um valor moral negativo e pessimista ao qual se deva impor um valor moral positivo e otimista negando que somos falhos, é admitir que estas falhas vão persistir durante toda nossa vida e se podem ser evitadas, não podem ser excluÃdas, tão pouco valorizadas como algo bom ou ruim, a definir o nosso ser deste ou daquele modo segundo uma moral ou costume. Não há nenhuma moral pressuposta nas falhas, apenas a consideração de que elas existem e devem ser evitadas para nosso bem e de outros, independente de qualquer ordem moral, pois não importa o que é bom ou mau segundo uma lei, mas aquilo que independente dela é importante, viver ainda que de modo falho, o que não quer dizer contra a determinação da lei já que viver contra ela é viver senão sob o julgamento dela de modo negativo tentando fazer o que ela não permite e isto não é viver na realidade apenas de modo virtual segundo ela, no caso, caso negativamente e não positivamente.
Viver fora da lei neste sentido não é viver contra a lei, mas viver à margem dela, não precisando da lei mesma para avaliar a si mesmo em suas falhas em relação aos outros e destes em relação a si. É não admitir o erro, a mentira e a falsidade ou o oposto disto como determinante de sua vida. É não admitir nada que o determine absolutamente como uma lei. É assumir a vida como um devir e não como um ser. É viver e conviver com suas falhas e não determinar a sua vida de modo absoluto sem falha alguma para si ou para outros. Saber admitir, em contrapartida, a sua e a falha dos outros em mesma medida e buscar evitá-las. Sobretudo não acreditar que é um ser verdadeiro, detentor da verdade e do que é certo sabendo evitar esta que é senão a pior falha do ser humano, pensar que não é falho, a falha de toda moral que pretende fazer do ser humano detentor de tudo isto excluindo aqueles que não são como ele pensa ou age segundo sua lei humana, porém, considerada divina.
Por fim, que não se perdoem as falhas aqui, pois não há o que se perdoar numa falha, pois não se trata de um erro, mentira ou falsidade nelas em relação a uma ordem e lei pressupostas, apenas algo que não se pode evitar no momento, mas, quiçá se possa em outro, ou jamais, quem sabe? Somos falhos.
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