A defesa da cidade
Ao ler o relato de um amigo de que foi violentado em seu corpo e alma por guardas municipais num terminal de ônibus em Fortaleza, ele, um estudante negro do mestrado em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará que estuda a resistência à violência na periferia da cidade por meio de saraus de poesias, não deixo de sentir uma empatia por sua dor e raiva ao mesmo tempo por ter ele passado por tudo isto, bem como não deixo de pensar em como mitigar estes sentimentos que dominam o meu peito com o furor do ódio aqueles que fizeram isto a ele em solidariedade a si.
Lembro então de um texto que tinha resolvido escrever sobre um capÃtulo de O Imperador-Deus de Duna, de Frank Herbert, quando Moneo, o majordomo do Imperador-Deus Leto Atreides, explica ao então Comandante do exército o porque do Imperador-Deus escolher somente mulheres para seu exército em vez de homens na defesa do seu império e cidade no planeta Duna ou Arrakis. Antes disso, porém, lembro de uma passagem da República, de Platão, na qual ele já defende que as mulheres podem ser guardiãs tão boas como os homens, o que me faz buscar o livro para relembrar esta passagem. Todavia, ao abrir o livro aleatoriamente, leio imediatamente uma parte em que Sócrates explica a Glauco o que seria a coragem, e mais ainda, como seria uma cidade corajosa, com a seguinte pergunta:
Sócrates - Há um meio de verificar se uma cidade é covarde ou corajosa levando em consideração outra coisa que não essa parte da cidade que faz a guerra e pega em armas por ela? (PLATÃO, 1997, p. 127)A pergunta de Sócrates parece nos fazer acreditar que a cidade somente pode ser defendida pelas armas e pela guerra, como geralmente prefeitos, governadores, presidentes e candidatos a tais cargos pensam hoje em dia e fazem muitos cidadãos crerem e estarem de acordo com eles, como Glauco de acordo com Sócrates ao responder simplesmente. "Nenhum." Isto é, de que não há nenhum outro meio de defender a cidade senão pelas armas e pela guerra como fazem os guerreiros e guardiães da cidade, o que Sócrates concorda em princÃpio dizendo:
Sócrates - Por isso, não pensei que os outros cidadãos, covardes ou corajosos, tenham o poder de dar à cidade um outro desses caracteres. (PLATÃO, 1997, p. 127)A questão da defesa da cidade parece resolvida desta forma, pois todos, num senso comum, pensam que é pelas armas e guerra que se defende a cidade, contudo, Sócrates vai além do que pensa o senso comum representado por Glauco e acrescenta ao seu pensamento anterior algo que Glauco e muitas pessoas não conseguem entender hoje em dia tão afetadas pelas armas e pela guerra.
Sócrates - Portanto, nossa cidade será corajosa por uma parte dela própria e porque nessa parte a força de conservar constantemente intacta a sua opinião sobre as coisas a temer, isto é: as que, em número e natureza, o legislador designou na educação. Ou não é a isto que chamas coragem?
Glauco - Não compreendi muito bem o que disseste; explica-te melhor.
Sócrates - Eu disse que a coragem é uma espécie de salvaguarda.
Glauco - Que espécie de salvaguarda?
Sócrates - A da opinião que a lei fez nascer em nós, por intermédio da educação... (PLATÃO, 1997, p. 127)Não é possÃvel defender a cidade se você não tem educação, não adianta pegar em armas e fazer a guerra, ou dar armas para guardas municipais ou policiais de qualquer espécie fazerem a guerra se eles não têm educação, mais ainda, se não têm a educação das leis, do que é justo e injusto em sua ação, ou ainda, se não são educados na música e na ginástica como Sócrates ressalta em seguida a Glauco quanto à escolha dos guerreiros defensores da cidade:
Sócrates - ...Não penses [Glauco] que foi outra a nossa intenção: estávamos empenhados em que tivessem o melhor conhecimento possÃvel das leis, a fim de que, graças à sua natureza e a uma educação apropriada, tivessem, sobre as coisas a temer e o resto, uma opinião indelével [das leis e da justiça], que não pudesse ser apagada por esses dissolventes terrÃveis que são o prazer... a dor, o medo e o desejo... (PLATÃO, 1997, p. 128. Grifos meus.)Mesmo sem entender direito o que Sócrates diz, Glauco entende o essencial da definição de coragem dele por meio da educação que um defensor da cidade deve ter, pois "se a opinião sobre essas mesmas coisas [a temer e o resto] não for o fruto da educação, se for selvagem ou servil, não a considerarás estável e dar-lhe-ás outro nome." (PLATÃO, 1997, p. 127) Um nome que é contrário da de coragem, que é senão o de covardia que se expressa na forma selvagem ou servil de agir como a dos guardas que abordaram de modo racista meu amigo, desconhecedores como os governantes a quem servem de que a salvaguarda de toda ação de um defensor da cidade é a educação!
Não apenas homens podem ser defensores da cidade, e na abordagem a meu amigo, havia uma policial confirmando o que há tempos Platão já expunha ao pensar sua República nenhum pouco democrática, o que não quer dizer, injusta. E nela defende que as mulheres podem ser educadas para serem guerreiras tanto quanto os homens e adquirirem a arte nas armas e na guerra tanto quanto eles. Algo que o Imperador-Deus de Duna Leto Atreides ressaltaria ainda mais escolhendo para a defesa da cidade no planeta Duna ou Arrakis e de seu império apenas mulheres guerreiras como sendo ademais superiores aos homens na defesa da cidade.
Neste sentido, "'Por que Leto escolhe somente mulheres para o seu exército?'", pensa o seu recém empossado Comandante do exército Idaho Duncan. Uma pergunta cuja resposta é dada por Moneo, o majordomo do Imperador-Deus Leto, a quem foi encarregado explicar isto e que diz sucintamente o seguinte: "Ele [Leto] diz que um exército totalmente masculino seria muito perigoso para a sua base civil." (HERBERT, 1986, p. 124) O que venha a ser o perigo é explicado por seguinte, mas não sem antes explicar a origem da escolha de homens para o exército em grupos já pré-históricos, quando se diz que:
...o exército masculino é um resquÃcio da função da seleção delegada aos machos não-reprodutores em grupos pré-históricos. Diz que é um fato curiosamente consistente serem sempre os machos mais velhos que enviavam os machos mais jovens para a batalha. (HERBERT, 1986, p. 124)Ou seja, a defesa da cidade era dada aos jovens que não eram capazes ainda de reproduzir que defendiam os que eram capazes, mais velhos que eles, as fêmeas e os mais jovens que eles, porém, havia um perigo quanto a isto, diz Moneo:
...quando privado de um inimigo externo, o exército inteiramente masculino sempre se vola contra a sua população. Sempre. (HERBERT, 1986, p. 124)A conclusão a que Duncan chega quanto ao perigo é bastante simplória. Para ele, o perigo está na luta pelas fêmeas, algo que Moneo diz não ser tão simples assim, pois, ressalta:
- Ah, sim. Ele diz que um exército inteiramente masculino apresenta forte tendência a atividades homossexuais. (HERBERT, 1986, p. 125)Diante do ataque à sua auto-imagem masculina, Duncan se irrita com a suposição de ser homossexual, raiva que Moneo tenta diminuir ao lhe explicar de uma forma psicológica que se trata de sublimação, energias desviadas e todo o resto, algo que Duncan continua sem entender, e Moneo explica de outro modo:
- Atitudes de adolescentes, apenas rapazes juntos, piadas e peças executadas puramente para causar dor, lealdade dirigida unicamente aos companheiros de grupo... coisas dessa natureza. (HERBERT, 1986, p. 124. Grifos meus.)Duncan é o representante não apenas do senso comum como Glauco, mas também o representante de um macho antigo clonado literalmente, pois era um antigo defensor da famÃlia Atreides que Leto sempre faz renascer tecnologicamente, e cuja memória remonta à sua época na qual o que Moneo diz parece lhe fazer sentido: "Cultos de jovens e adolescentes preservados nos militares? Tinha algo de verdadeiro. Havia exemplos em sua própria experiência..." Mas o que Moneo pensa sobre a homossexualidade num exército masculino vai muito além do que pensa Duncan e o senso comum, pois, diz:
- O homossexual, latente ou não [naqueles que fazem parte do exército masculino], que mantém essa condição por motivos que poderiam ser considerados puramente psicológicos, tende a se comprazer com um comportamento de indução à dor - buscando-a para si mesmo ou infligindo-a a outros. (HERBERT, 1986, pp. 125-26. Grifos meus.)A ausência de guerra faz com que o exército masculino volte sua violência contra os civis, mas também a homossexualidade latente ou não dos militares em suas relações masculinas também são um perigo na medida em que buscam infligir a dor nos outros na tentativa de dar vazão ao seu desejo homossexual reprimido. Algo que se manifesta principalmente no estupro de mulheres e no assassinato como diz ainda Moneo:
...quando livre das contenções homossexuais adolescentes, um exército masculino é essencialmente estuprador. O estupro é frequentemente acompanhado do assassinato, e esse não é um comportamento favorável à sobrevivência. (HERBERT, 1986, p. 126. Grifos meus.)Em todas estas circunstâncias, o que se coloca evidente, segundo o pensamento de Leto sobre o exército masculino explicado por Moneo a Duncan, é que um exército masculino é extremamente infantil, sem maturidade alguma, bem diferente do que Leto pensa em relação a um exército somente de mulheres, pois como diz Moneo:
- Elas possuem uma forma constrangedoramente fÃsica de passar da adolescência para a maturidade... Como Lorde Leto costuma dizer: "Carregue uma criança em seu ventre durante nove meses e isso muda você." (HERBERT, 1986, p. 127)E a mudança principal, Moneo vaticina: "Elas preservam a espécie." (HERBERT, 1986, p. 127)
Preservar a espécie, eis a principal caracterÃstica de um exército feminino defendido por Leto em relação a um exército masculino, o que todo guerreiro grego devia aprender também em sua época na defesa da cidade. Algo que os policiais e guardas civis majoritariamente masculinos de hoje tão pouco sabem o que é buscando demonstrar uma coragem em armas e guerra violentar os cidadãos sem qualquer educação, incapazes de serem educados para serem justos e conhecedores das leis de defesa da cidade e de quem a habita. São covardes e não corajosos, por conta disto, em seus desejos de violentarem todos aqueles que são cidadãos em vez de defendê-los educadamente e aos quais devemos dizer, por fim, o mesmo que disseram a meu amigo em sua abordagem racista, mas de modo educado e não com a selvageria e violência deles:
“O que você quer olhando pra gente? Quem você pensa que é? ‘Cidadão’ [defensor da cidade] não age assim!”P. S. Texto em solidariedade a meu amigo, Rômulo Silva, com quem me solidarizo na dor, na raiva, mas, sobretudo, no conhecimento de que a defesa da cidade passa pela educação contra toda forma de racismo do Estado atualmente por meio de seus defensores policiais.
Nenhum comentário: