Por trás das estrelas
Não se faz história sem conhecimento. Esta é a maior lição que o filme Estrelas além do tempo (Hidden Figures, 2016) nos dá, um filme que ao contrário do título em português, não é sobre estrelas, mas o que está por trás delas, como o título em inglês sugere numa tradução literal, Figuras escondidas, no caso do espaço, a massa escuro na qual as estrelas brilham na qual poucos prestam atenção ao olharem para o céu à noite.
Assistir a este filme é mais do que uma aula sobre a história recente do pós-guerra com a Guerra Fria entre EUA e URSS na busca de serem os primeiros na corrida espacial. É assistir a uma aula de história de todos os tempos em que as dificuldades que os seres humanos enfrentam somente podem ser superadas com o conhecimento e não com a força e violência que os separa uns dos outros. Um conhecimento que é uma capacidade de todos os seres humanos sem distinção de cores de pele, mas que é negado pela ignorância de muitos que veem na cor da pele aquilo que define o ser humano.
Desde os gregos, e a partir de Aristóteles em particular, é sabido que o que define o ser humano é sua capacidade de raciocinar e de expressar o seu raciocínio por meio da linguagem falada. Não é irrisório, neste sentido, quando Al Harrison (Kevin Costner), chefe do Grupo de Missões Espaciais da NASA pergunta à recém chegada matemática negra, Katherine Jonhson (Taraji P. Henson), se ela sabe Geometria Analítica ou falar. Trata-se senão de saber se ela possui as duas características principais do ser humano que o diferencia dos animais desde aqueles que foram os primeiros a valorizarem a Geometria de modo teórico, ou analítico, e não apenas prático, no caso, os gregos a estabelecer os valores da cultura ocidental branca ou destituída de cor, diferente dos negros, considerados de cor indo contra toda a lógica do conhecimento segundo a qual o negro é senão aquele que é destituído de cor, diferentemente do branco que é a síntese de todas as cores. Vide em relação a isto, a experiência do círculo colorido que, quando girado, se torna branco.
Parece estranho que diante de provas incontestes do conhecimento, ainda se insista em pensar de modo inverso a ele mesmo, criando-se uma falsa consciência de que a realidade não é tal como a conhecemos, mas tal como a que queremos que sejam. No caso, tal como a que os brancos americanos querem que sejam como sendo o que é e não pode ser mudada, como diversas vezes é repetido por Paul Stafford (Jim Parsons) companheiro de trabalho de Katherine a ela e por Vivian Mitchel (Kirsten Dunst) à matemática Dorothy Vaughan (Octavia Spencer), ou ainda, diz esta à sua amiga matemática Mary Jackson (Janelle Monáe) que almeja ser engenheira da NASA e é impedida por leis ad hoc que a obrigam a entrar na justiça para estudar ter uma pós-graduação de uma universidade branca na qual não poderia estudar. Mary que também escuta de seu marido, Levi Jackson (Aldis Hodge) que não existem mulheres engenheiras, muito menos negras, que esta é a realidade.
Dizer que negros são "de cor" e brancos não são de cor não é desconhecer a realidade, é escondê-la, mas não se pode esconder o conhecimento dela por muito tempo, nem para si, nem para os outros. Ver cada uma das mulheres matemáticas negras representadas no filme demonstra que o maior problema em relação ao conhecimento não é aquilo que se mostra, mas o que se esconde e não pode ser escondido se quer adquirir conhecimento. Tão pouco se pode limitar que se adquira o conhecimento, que ele brilhe em meio à escuridão não como uma estrela, mas como aquilo que faz os olhos brilharem, uma energia que todo o corpo canaliza transmitindo aos neurônios numa massa cinzenta onde tudo é escuridão em nossa cabeça como no espaço.
Ver cada uma das matemáticas negras no filme mostrando o conhecimento que tem e buscando cada vez mais ter enquanto brancos simplesmente se preocupam em limitar os conhecimentos delas, demonstra claramente como é o conhecimento que faz a história e não aqueles que tentam limitá-lo, sempre sendo esquecidos, ou pouco louvados pela história. Pode-se perceber a diferença entre aqueles que querem ir além como seres humanos, no caso, as matemáticas negras, e aqueles que querem apenas que a realidade seja como ela é sempre sem qualquer mudança, mesmo que busquem isto. Não se muda a realidade sem querer ir além no conhecimento, limitando-se apenas a dizer que esta é a realidade, é assim que as coisas são como dizem os brancos às matemáticas negras.
Neste sentido, outra passagem deste filme ímpar no que diz respeito a uma demonstração do conhecimento para toda mudança social é quando a matemática Mary Jackson argumenta com o juiz para aceitar que ela possa fazer uma pós-graduação numa universidade para brancos para que seja engenheira da NASA. Nada de leis e argumentos jurídicos é exposto ao juiz, que os conhece de cor, mas o conhecimento da história naquilo que é mais importante para ela e principalmente para os EUA e URSS na época e também para o juiz, no caso, ser o primeiro. Não o primeiro em termos de saber mais do que os outros, mas o primeiro a fazer história a partir do conhecimento, como o primeiro a entrar numa universidade, o primeiro a entrar no espaço, o primeiro a conseguir algo através do conhecimento e não da força e da violência, pois é isto que fará ser lembrado daqui a 100 anos e mais.
Não lembramos do primeiro, por ele ser melhor do que os outros, como se tratasse de uma corrida espacial. Lembramos do primeiro por ele ser aquele que muda a história, que produz um acontecimento do qual a história sempre se lembrará. Alguém que viu não aquilo que estava presente na realidade, mas além dela. Respondendo então à pergunta de Sócrates na República de Platão, "Então, definiremos o filósofo como aquele que em tudo se prende à realidade?", diríamos senão que não, pois o filósofo é aquele que vai além sempre em seu conhecimento da realidade, que, se busca vê a realidade, ter consciência e conhecimento dela, não é para simplesmente dizer como ela é, mas para mostrar algo de novo nela. Lembremos mais uma vez o que é o conhecimento para Platão em sua famosa alegoria da caverna quando o ser humano sai dela e somente saindo dela por adquirir novos conhecimentos, por mais que poucos acreditem nisso, assim como as matemáticas negras de Hidden Figures.
Quantos são capazes de conhecer além da caverna em que se colocam todos os dias em suas crenças de que a realidade é deste ou daquele modo e que não pode ser diferente? Que não pode ser mudada? Que tem que ser como é para sempre? Somente aqueles que buscam o conhecimento são capazes disso, Platão sabia bem, antes dele Sócrates e antes deste os primeiros filósofos como Tales de Mileto e Pitágoras de Samos que iniciaram o conhecimento analítico da Geometria há muito tempo atrás e há milhares de anos são conhecidos por isto e ninguém pode escondê-los da história, pois o conhecimento que produziram é como a escuridão do espaço, está lá para todos verem, mesmo que muitos somente queiram ver as estrelas brilharem. As matemáticas Katherine Jonhson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson demonstram que aprenderam como eles a valorizarem mais o conhecimento do que a aparência delas como mulheres e negras, indo além da realidade e se vendo como seres humanos tão capazes de raciocínio e de fala ou argumentos como eles, buscando em si mesmas e não em sua cor valorizarem quem são. E, sobretudo, a manterem o espírito gregário ao qual o conhecimento serve, como demonstra muito bem em outra passagem, Dorothy Vaughan, ao buscar conhecimento de programação e ver nele uma oportunidade não apenas para si, mas para todas as mulheres matemáticas negras que trabalham consigo irem além em seus conhecimentos mantendo seus empregos.
E é pela valorização do conhecimento que demonstraram tão bem que elas fazem parte da história, não pelo que a cor delas representa para os brancos que, pelo visto, não sabem nem quem é de cor, no caso, invertendo a realidade para melhor aparecerem nela. Ainda que seja por causa da "cor" do ponto de vista de um racismo ainda pungente que seus conhecimentos sejam mais ressaltados, por a cor ser o que as impediam de serem conhecidas em todos seu brilhantismo por trás das estrelas como as grandes matemáticas que são e todos os negros podem ser. Como o céu escuro, elas não brilham, pois o conhecimento não faz ninguém brilhar, mas fazer os olhos brilharem olhando para uma realidade que poucos conseguem ver, porque ela não existe ainda, não faz parte da história, a não ser quando pelo conhecimento se produz a própria história.
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