A lei para todos

É comum se dizer que a lei é para todos pressupondo que todos são iguais perante ela, sem discriminação quanto à raça, cor, etnia, gênero, sexualidade e condição social. Contudo, apesar de universais neste sentido, as leis são elaboradas e aplicadas a partir de situações particulares. E é justamente deste ponto de vista que o que é comumente aceito e dito por todos não é do modo como se pensa.

Toda lei tem como pretensão a universalidade ou uma regra universal, mas ela precisa ser aplicada em casos particulares. Aristóteles já pressupunha isto em sua Ética a Nicômaco, ao tratar da justiça como excelência moral na medida em que ela se relaciona à lei, isto é, quando a justiça é uma justiça legal. O problema da justiça ou da lei surge, neste sentido, quando ela deve ser aplicada em situações particulares, mas também quando situações particulares fazem surgir determinadas leis. Este último caso, não sendo pressuposto por Aristóteles tendo em vista que ele parte do universal para o particular e não o contrário, pois as leis são primeiramente pensadas em sua universalidade e depois aplicadas particularmente e não o contrário, isto é, pensadas quando a um fato particular depois generalizadas. Mesmo que se possa pensar deste modo a partir de Aristóteles, mas já não sendo este o modo como ele pensa. Pois este seria o modo particular das ciências da natureza, enquanto aquele seria o modo particular das ciências políticas, sendo a diferença entre ambos o fato de, nestas o universal não é um fim, apenas um princípio, enquanto naquelas, o universal é um fim e um princípio ao mesmo tempo enquanto telos.

Não há lei absolutas em relação aos seres humanos como existem para a natureza, eis a questão, por mais que se possa definir leis que contemplem todos os seres humanos. Hoje, pode-se dizer que não há também leis absolutas para a natureza, tendo em vista que ela não é imutável em suas leis senão por um determinado tempo natural. Isto é que suas leis antes consideradas imutáveis podem sofrer mutações por um acidente podendo mesmo a natureza tal como se conhece hoje ser extinta com um sopro da relatividade do tempo e do espaço. Contudo, há menos variação nas leis da natureza do que nas leis em relação aos seres humanos e as variações nas leis da natureza se devem senão à presença humana nela modificando suas estruturas básicas.

Se a lei é para todos, a sua elaboração e sua aplicação não é. Ela depende de circunstâncias variadas de tempo e espaço, bem como dos interesses humanos históricos envolvidos em cada uma delas. A justiça, bem como a injustiça, diz Aristóteles são termos aparentemente ambíguos, isto é, imprecisos, e isto também se relaciona às leis. O que pode ser de interesse numa determinada época histórica para determinados interesses humanos, pode não ser em outra e, neste sentido, as leis constituem um fluxo de interesses que se cristalizam em determinadas circunstâncias, ora justamente para alguns, ora injustamente para outros.

Em relação a isto, Aristóteles adverte: nenhuma lei é errada, mas pode ser omissa, pois "a lei não prevê todas as situações". Isto não quer dizer que a lei deva se eternizar deste modo, apesar de não poder ser alterada. Mas o que fazer quando a lei não contempla a todos tal como ela pretende ou como deveriam pretender os legisladores? Simplesmente atualizá-la, incluir a situação que ela não tinha previsto, o que seria tornar a lei mais justa ou melhor, isto é, equitativa.

Se a lei é para todos, mas não contempla a todos, o justo a ser feito para que a lei seja igualmente justa como deve ser em princípio, é que a lei seja corrigida naquilo que ela omitiu, como diz Aristóteles claramente há quase 2500 anos atrás:

Quando a lei estabelece uma regra geral, e aparece em sua aplicação um caso não previsto por esta regra, então é correto, onde o legislador é omisso e falhou por excesso de simplificação, suprir a omissão, dizendo o que o próprio legislador diria se estivesse presente, e o que teria incluído em sua lei se houvesse previsto o caso em questão. (Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1137 b, p. 109.)

Se toda lei tem como pretensão ser para todos e deste modo ser justa, ela deve portanto incluir as situações que ela não prevê, e não excluir, tendo em vista que estas situações já estavam excluídas dela. A inclusão destas situações é, portanto, o princípio de equidade da lei na medida em que se tente fazê-la cada vez mais justa, para todos. Um princípio, porém, que é negado por muitos daqueles que elaboram ou defendem as leis no sentido de não incluir nelas situações que não estavam previstas por elas, invertendo, portanto, o ponto de vista de Aristóteles e das leis, ao dizer que aquilo que não está previsto na lei não pode ser incluído nela, quando deveria ser justamente o contrário para que a lei fosse ela mesma justa.

O que se propõe ao excluir da lei aquilo que ela não prevê em relação à raça, cor, etnia, gênero, sexualidade e condição social, seja a lei divina ou humana, é que a lei tal como ela está estabelecida não seja alterada para incluir o que não se previa quanto a estes aspectos particulares da lei. Ou seja, o que se propõe é que a lei continue sendo injusta, que ela não seja para todos, que ela não melhore, que ela permaneça omissa e errada, isto é, que a lei não seja equitativa, mas desigual, beneficiando uns e outros não. O que é um total contrassenso se tomamos o ponto de vista de Aristóteles e mesmo se considerarmos que se a lei é para todos, ela deve incluir todos, do contrário não é uma lei válida que devamos aceitar voluntariamente e não é injusto ser contra aqueles que a defendem deste modo.

O que se pretende, portanto, hoje em dia no Brasil com diversas leis estabelecidas por diversos legisladores, isto é, políticos, brasileiros não é uma justiça, mas uma injustiça crescente quanto à raça, cor, etnia, gênero e sexualidade. Uma injustiça em nome da lei, em defesa dela como está estabelecida na lei de Deus e na Constituição negando tanto àquela quanto esta qualquer inclusão que beneficie situações que não estavam previstas seja nos mandamentos de Deus seja nos mandamentos dos seres humanos. Não por acaso, deste ponto de vista, falta ética à política brasileira, pois os legisladores brasileiros em vez de pensar as leis de modo universal, como pensava Aristóteles, acrescentando a esta universalidade as particularidades que lhe faltasse, pensam as leis de modo particular, a partir de seus próprios interesses econômicos, políticos e religiosos, negando qualquer interesse ou situações alheias a que eles definiram, sendo incapazes de governar o país com sua total falta de ética.

Em contrapartida, todas as leis que tentam incluir situações em relação à raça, cor, etnia, gênero, sexualidade e condição social, seguem o princípio aristotélico de equidade que visa tornar a justiça melhor, mais ainda, visa tornar o ser humano melhor em sua excelência moral e quem se opõem a elas e a este princípio, legisladores ou não, se opõem não apenas a uma melhoria das leis, divinas ou da constituição, mas também a uma melhoria do ser humano e são os piores seres humanos segundo Aristóteles, pois sabem que fazem o mal e usam a lei, divina ou humana, como instrumento para isto.

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