O limite da liberdade

A liberdade é um dos princípios inalienáveis do ser humano. Antes mesmo de nascer ela já é concedida a ele. E é mais do que comum morrer-se por ela, isto é, para ser livre. Mas a liberdade não é apenas um princípio necessário ao ser humano, ela também um problema e talvez seu maior problema.

Uma aluna de medicina resolve tirar um selfie com uma paciente agonizando. Era o seu primeiro atendimento e ela queria fazer um registro (aqui). Em uma reportagem, o jornal destaca o crescimento de escolas que passam a ser geridas pela PM (aqui). Nos dois casos, podemos dizer que há uma só questão: o limite da liberdade.

A liberdade e seu limite já foi tema de várias filosofias mesmo que indiretamente. No diálogo Fédon, de Platão, ela aparece na sua forma mais pungente na defesa da liberdade da alma em relação ao corpo e à terra que são expressamente comparados por ele a uma prisão. O que esta defesa coincide com a defesa não por menos da liberdade de Sócrates, do filósofo e de sua expressão, todos condenados pelas Leis de Atenas.


A defesa da liberdade por Platão resume bem todos os levantes históricos já feitos pelos homens para serem livres quando se sentem presos não apenas em sua alma, mas principalmente em seu corpo, mas também a necessidade não menor de se por um limite a liberdade, seja da alma, seja do corpo. Neste sentido, quando pensamento em liberdade pensamos inevitavelmente também no limite dela, na necessidade de se por um limite a si. O que nos faz perceber que se a liberdade é buscada e defendida a ferro e fogo e de muitas outras formas, ela é não por menos limitada a ferro e fogo e de muitas outras formas também.

De algo extremamente positivo, eis que a liberdade passa a ser por sua vez algo extremamente negativo, oscilando mesmo entre estes dois polos. Sócrates quer ser livre, mas ele não quer afrontar as leis de Atenas e as leva às últimas consequências estas leis, seja para afirmá-las, seja para negá-las radicalmente. É sua última ironia, que nos faz indagar se ele se submete totalmente às leis que o prende tomando a cicuta ou se ele é totalmente livre a elas tomando ele mesmo a cicuta, ou seja, se a morte é aplicada a ele como privação total dele ou se ele escolhe morrer livrando-se desta privação total.

Percebe-se, neste sentido, que a liberdade que é pretendida de modo necessário, se é um princípio, é ela um princípio que se acredita que é não apenas bom, o melhor a ser tido, mas também um princípio que se acredita que trará muitos outros benefícios. Em outras palavras, a defesa da liberdade é a defesa de uma crença de que com ela se terá algo mais do que se tem hoje, que se fará melhor o que se faz hoje e que tudo será diferente do que é quando se está preso. Se o diálogo de Platão é emblemático neste sentido, como muitos outros ademais, o que merecia uma análise do quanto de simbolismo há neles, é porque, para Platão, tudo, absolutamente tudo, é uma prisão, no caso, à alma, como ele deixa claro ao dizer que também a terra é uma prisão, por terra entendendo-se tudo que existe e tudo que é conhecido, isto é, o mundo. E que, em contrapartida, a liberdade somente pode ser conseguida a partir da morte, e, pelo breve momento em que a alma expia de suas penas no Tártaro segundo o mito das almas que ele retoma neste diálogo e o princípio órfico de transmigração das almas.

Obviamente, pode-se pensar, se muitos morrem pela liberdade, isto não quer dizer que muitos queiram morrer para serem livres, o que faz da filosofia da liberdade platônica dificilmente ser aceita, posto que ela defende não apenas a morte pela liberdade num sentido heroico, mas também a morte para ser livre num sentido suicida. Contudo, em ambos os casos, em Platão, está a crença, fortificada pelo simbolismo mítico-religioso, de que a liberdade é algo a ser almejado em qualquer momento em que se sinta ou se efetiva uma prisão. E que, mais ainda, a liberdade é uma necessidade inevitável ao ser humano.

Deve-se, porém, a toda a tradição judaico-cristã em toda a sua manifestação histórica, religiosa e filosófica toda uma reflexão da liberdade transformada em algo negativo, quando a vontade de ser livre é negada ao homem totalmente por Deus, seu criador, e dada a ele de forma mitigada como livre-arbítrio no qual já se pressupunha diversos limites, entre eles: a responsabilidade, o respeito, a obediência, a culpa, a pena, a punição. Se os gregos, e mesmo os romanos no início de seu império mantinham com os deuses uma liberdade num sentido heroico em que, mesmo confrontando aos deuses eles eram reconhecido pelo valor de suas ações, e mesmo o suicídio de Sócrates é algo heroico morrendo pelo que acredita, tal heroísmo provindo da liberdade não é refletido na tradição judaico-cristã, a não ser de forma mitigada como defesa da liberdade religiosa, em última palavra, de Deus. Enquanto livre-arbítrio a liberdade deixa de ser, por sua vez, uma conquista no sentido heroico, e mesmo suicida, para ser uma permissão e um benefício e, como tal, seja limitada em sua distribuição, posto que é dada mais ao homem do que à mulher em certos aspectos, seja limitada em sua efetivação, posto que ela deve ser sempre no sentido de obediência a Deus no que é permitido e proibido.

Obviamente, a estes aspectos estão presentes na cultura greco-romana anterior ao cristianismo e difusão do judaísmo por meio daquele. Contudo, os gregos eram politeístas e sua religiosidade se confundia com os mitos que eram relatos "históricos" nos quais sempre havia uma liberdade de interpretação. Deste modo, por mais que possa pensar que a liberdade era limitada por Zeus a quem os gregos deviam obediência, contudo, a obediência a outros deuses concediam aos gregos o poder de agirem em discordância mesma com Zeus. Ademais, as representações míticas do panteão divino grego mostra por vezes os deuses discutindo entre si e não por menos a Teogonia na qual Hesíodo reúne diversas divindades gregas, demonstra que a religiosidade advém da luta de Zeus pela liberdade, contestando o poder do pai Cronos, o qual já havia contestado o pai Céu. Deste modo, a religiosidade grega manifestando a liberdade de modo heroico desde o início, mesmo que seja em confrontação com o "pai", algo inimaginável na tradição judaico-cristã, para quem o "Deus-Pai" é todo poderoso e inquestionável, cujo reflexo na tradição greco-romana seria de certo modo Zeus, mas seu poder não provém simplesmente dos seus raios e trovões, mas principalmente, de suas alianças, matrimoniais e políticas.

A crítica que Nietzsche faz do cristianismo no que diz respeito à liberdade que é perdida nele de um ponto de vista moral expõe toda esta questão, estendendo-a aos gregos no que diz respeito à Sócrates no que diz respeito à perda do aspecto dionisíaco da cultura grega no que diz respeito à valorização do aspecto apolíneo. Contudo, mesmo Nietzsche é obrigado a mitigar sua crítica em relação aos gregos, considerando que entre o dionisíaco e o apolíneo, isto é, entre a liberdade artístico-cultural, no caso, representada pelo deus Dionísio, e a limitação desta liberdade, representada pelo deus Apolo, é menor na moral grego do que na cristã, posto que, naquela, há um equilíbrio que nesta não há. Isto porque de todo e qualquer modo a liberdade cristã é exclusivamente a liberdade da religiosidade cristã e não a liberdade do ser humano, o qual deve sempre ser limitado por sua obediência a Deus.

Com a defesa da liberdade como livre-arbítrio a partir da tradição cristã, particularmente, a liberdade deixa, por sua vez, é mitigada em seu valor de positividade e passa a ser vista mais de modo negativo. Antes de Nietzsche, e como professor dele, Schopenhauer já percebera a negatividade da liberdade no sentido do livre-arbítrio e a defenderá em seu texto O livre-arbítrio. Antes dele, também Agostinho expusera esta questão no sentido propriamente religioso, ainda que filosófico, mas é apenas em Schopenhauer que esta questão sai do âmbito da religiosidade, ainda que filosófica, para retomar sob um aspecto propriamente filosófico.

O fato de na obra de Schopenhauer a liberdade se defrontar diretamente com a necessidade já demonstra claramente que a liberdade tem um limite e que a questão da liberdade é a questão do livre-arbítrio, isto é, da decisão entre a liberdade e a necessidade. A liberdade, neste caso, não é algo imperativo, não é ela mesma uma necessidade. A necessidade foi dissociada dela na medida em que, acima da necessidade humana de liberdade, está a obediência a Deus, isto é, a liberdade no sentido religioso, o que será o grande dilema de todo o cristianismo no que diz respeito ao livre-arbítrio, na medida de se saber até que ponto a liberdade é permitida ou proibida.

Neste ponto, tornamos novamente a Platão e no sincretismo de Sócrates com Cristo produzido pelo cristianismo, ambos condenados, ambos mortos pelo que acreditavam, ambos vistos como "heróis", porém, aquele no sentido heroico grego de conquista da liberdade e este, porém, no sentido heroico de perda da liberdade, posto que se Cristo salva, todos devem contudo ser obedientes à sua religião para serem salvos. Cristo, neste sentido, difere de Sócrates que não prende ninguém nem tão pouco quer salvar ninguém como todo filósofo, e passa a ser a expressão de toda e qualquer lei, religiosa, moral ou política, a qual permite ou proíbe a liberdade por meio de um livre-arbítrio. O que a liberdade é vista de modo paradoxal em relação a isto, como observa muito bem Schopenhauer, pois a liberdade advinda do livre-arbítrio em relação à lei é tanto positiva como negativa, e, para ele, muito mais negativa diante de seu pessimismo.

O que se coloca como lei à liberdade é propriamente a necessidade de se pôr um limite à liberdade, a necessidade da liberdade ser limitada, ou ainda, mais propriamente, a necessidade ela mesma como um limite à liberdade. Isto é, tudo aquilo que se colocara anteriormente como responsabilidade, respeito, obediência em relação a Deus é colocado como necessidade ou lei necessária a qual, caso não seja, colocada como limite à liberdade, coloca-se como culpa, a pena, a punição. A questão, todavia, é porque a liberdade é limitada, isto é, porque mesmo sendo tão necessária à lei, ela deve ser vista sempre com ressalva, porque tão positiva em tudo que ela permite, ela se torna tão negativa, enfim, porque ao mesmo tempo que ela é afirmada ela é negada.

...Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
solta-membros dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.
(Hesíodo, 1992, p. 111, vv. 120-22)
Ninguém expressou melhor a liberdade do que Hesíodo em sua Teogonia e ninguém depois dele deixou de perceber a necessidade e porque de um limite a ela.

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