Militares no poder: a ditadura que ainda não deixou o Brasil

Que os brasileiros em sua grande maioria deixaram a ditadura para trás, num passado muitas vezes mítico, que parece nunca ter existido, fato é que a ditadura não deixou os brasileiros que veem nos militares o sinônimo de tudo que é "bom", como os "mocinhos" nos filmes policiais americanos de décadas atrás, mesmo que as ações policiais recentes contradigam isto nas quais, para eles, não apenas bandido bom é bandido morto, mas qualquer pessoa que se oponha a eles somente é boa morta.

Com um certo alívio, nas recentes manifestações muitos apontaram um decréscimo no número de pessoas com cartazes pedindo intervenção militar no Brasil pra ele voltar a ser o que era, principalmente, nas décadas em que os militares estavam no poder. Contudo, mesmo não sendo muitos eles estavam lá, livres, leves e soltos, sem serem xingados, humilhados, criticados e até mesmo violentados como seria qualquer pessoa que aparecesse com um mínimo detalhe vermelho em sua roupa a qual sofreria sem sombras de dúvida tudo isto. Ou seja, se muitos não querem ou deixaram momentaneamente de lado o pedido de uma intervenção militar, fato é que quem a defende é muito mais bem quisto e tolerável do que qualquer um que se vista de vermelho, mesmo que defenda a democracia, algo que muitos militares não defendem.

Se a quantidade de pessoas que defendem os militares no poder não representa ameaça, o simples fato delas existirem sempre será uma ameaça e que se torna real quando elas não são simplesmente as que estão nas manifestações, mas em diversos outros lugares, como escolas, dirigindo, gerindo e ensinando e no Congresso Nacional, Assembleia Legislativa e Câmara Municipal, não apenas manifestando sua opinião, mas impondo-a, muitas vezes, "democraticamente". Neste sentido, é um leve engano as pessoas pensarem que a ditadura acabou, que ela faz parte do passado, que o governo dos militares acabou e que é página virada o seu poder. Pelo contrário, eles estão mais presente do que estiveram a anos atrás, depois que deixaram o poder e cada vez mais ativos e cada vez mais suas ações militares aos moldes da ditadura são valorizadas como ações que devem existir numa democracia.

Que os brasileiros deixaram a ditadura, mas a ditadura não os deixou não é comprovado pelas manifestações recentes de pedidos de intervenção militar, e não há nenhum problema nisto democraticamente. Contudo, há problemas quando as pessoas passam a valorizar tudo aquilo que os militares fazem como sendo o bom, o correto a ser feito, o único método de alcançarmos a "ordem e o progresso" tão almejada por todos. Atitudes como a da polícia que prendeu um palhaço por ele ter criticado fervorosamente policiais no Paraná (aqui), o fato do Governo de Goiás ter concedido a gestão de escolas públicas a militares para combater a "violência" (aqui) e o fato de muitas atitudes de tortura, maus tratos e execução de policiais contra bandidos serem aceitas como algo que deve ser feito, demonstra como a ditadura ainda está presente na mente das pessoas e não é fácil elas verem nesta ideia algo ruim, a não ser quando elas mesmas forem vítimas, como foram vítimas muitos inocentes nas execuções em cidades paulitas muito provavelmente por militares (aqui), pelo seu modus operandi e pelas motivações em torno delas, mesmo que não se acredite nisto.

No primeiro caso, o do palhaço, por mais que se diga que ele ofendeu de alguma forma os policiais ao questionarem sua ação em defesa do governador e que isto seria um desacato, conforme defendeu o delegado, demonstra o mínimo e óbvio que as pessoas não conseguem perceber quando os militares estão o poder, o menor que seja, como numa situação como esta. Pois se é óbvio que o palhaço não deveria ter agido como agiu, de certo modo, também é óbvio que ninguém tem como o policial o poder de algemá-lo, de chamar reforços para prendê-lo, de levá-lo preso e, enfim, de cercear todos os seus direitos civis e políticos no mesmo momento em que é ofendido. O que isto demonstra que quando os militares estão no poder, ninguém pode criticá-los de qualquer forma que seja, pois será punido de alguma forma e isto é "legítimo", isto é, legal.

Isto demonstra como, por exemplo, a ação da polícia do Paraná não é apenas para conter bandidos, mas conter qualquer tipo de pessoas em suas manifestações, o que, no caso das escolas públicas administradas por militares a mando do governo do estado de Goiás, isto se agrava tendo-se em vista que todos os estudantes não têm o que fazer, a não ser obedecê-los e caso não façam isto, óbvio, serem punidos, como nos seguintes casos:

Mascar chiclete é transgressão leve. Usar óculos com lentes ou armações de "cores esdrúxulas" também, segundo o regulamento disciplinar dos colégios da Polícia Militar de Goiás. (...)
São transgressões médias: sentar-se no chão fardado, espalhar boatos, deixar  de prestar continência ou de cortar o cabelo no estilo escovinha. "manter contato físico que denote envolvimento amoroso" (beijar) ou se meter em rixa são faltas graves. O aluno perde pontos a cada quebra de regra. Quem não se adéqua é transferido."
O fato grave, neste caso, não são os militares assumirem o poder e quererem promover a sua forma de pensar e agir, mas um governo eleito democraticamente simplesmente transferir para eles o poder de fazer isto. E as pessoas ademais considerarem que este tipo de perda de liberdade dos estudantes seja visto como algo bom não simplesmente para eles, mas bom como uma política pública que deva ser aplicada em muitos lugares, senão em todas as escolas públicas de lá e do país. O que isto, claramente, é retomar o método de ensino na ditadura cuja única coisa importante é o conteúdo, e não o conhecimento, e o comportamento das pessoas, desde que aceitem os padrões militares, nos quais, obviamente, nenhum estudante homossexual será bem visto, considerando que ele ingresse numa escola desta tendo em vista que elas são vistas como boas escolas em termos de desenvolvimento do conhecimento. Tão pouco, professores de filosofia, por exemplo, e sociologia, se sentiriam bem em estar nela, a não ser que tenham uma postura conservadora, tendo em vista que eles poderiam ser enquadrados a qualquer momento pelo que dissessem.

Parece óbvio que em escolas como estas a liberdade não é um tema em questão, pelo contrário, a perda total dela por estudantes, professores, e a defesa mesma que eles não tenham liberdade de pensarem ou agirem, simplesmente aprendam o que têm que aprender e façam o que têm que fazer. O que esta perda de liberdade contrasta, em contrapartida, com o excesso de liberdade que os militares têm quando estão no poder e que as pessoas valorizam, mas esquecem o quanto esta liberdade pode ser destrutiva e não simplesmente construtiva, como no caso de quando eles torturam, maltratam e executam não apenas bandidos. Um excesso de liberdade que é dada a eles para matarem quem eles quiserem caso algum deles seja agredido ou morto, algo que nenhum cidadão comum pode fazer e nem tem condições de fazer a não ser que seja bandido com acesso a armas e todo um aparato para torturar, maltratar e executar alguém, mesmo que tenham o mesmo desejo de matar quem faz algo com ele.

Em todos estes casos, percebe-se nitidamente que as atitudes dos militares quando têm o poder apesar de cercearem toda a liberdade e mesmo toda a vida, ainda assim, são reverenciadas por muitos brasileiros que ainda veem neles a solução para o país e a ditadura como o melhor governo de todos. E não apenas os militares fardados seriam considerados como "bons" independente do que façam, mas militares sem farda também, que usam a política para promoverem suas ideias democraticamente, contudo, para fins não democráticos, como Bolsonaro e tantos outros, e muitas pessoas veem neles o ideal do "bom político", como eram vistos os militares na ditadura.

É preciso ter em mente que a ditadura não é simplesmente um regime de governo, é um modelo de pensamento, como a democracia, e que as ações dos militares sendo defendidas pelas pessoas nos governos, nas escolas, em salas de aula e em qualquer lugar de qualquer modo reforçam não um ideal democrático, mas ditatorial, um ideal no qual a educação e a consciência política são entraves mais do que soluções e que a liberdade de expressão somente é permitida aos militares que podem se expressar do modo que quiserem, com a força das palavras, mas, principalmente, de suas armas.


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