O distante passado
O passado é distante, um constante distanciar. O presente é o distanciamento do passado cada vez mais distante, a se perder de vista. Perder-se de vista é visar o distante passado, o que permanece fora de nossa vista, o que já não se pode mais ver, o que passa aos olhos e se perde no tempo, este eterno presente, e para além dele, em distância, até a imemorialidade. Pensar o passado é pensar no que não vemos, no que está distante dos olhos, no que os olhos não captam em sua visão, no que não está presente, no que está fora do tempo.
O passado é feito de instantes que já não pertencem mais ao tempo, mas que fazemos voltar a ele como ele mesmo, como um tempo que passou, um passado do tempo. O passado é visto então como aquilo que retorna, mesmo que seja o que não volta mais. A contradição que há em relação ao passado é a contradição do próprio tempo em relação aos instantes que não lhe pertencem mais, mas se quer que retorne a ele e permaneçam nele, num ciclo constante de eterno retorno ou em linha reta, as duas formas do tempo em sua presença, de ser presente, de estar à vista, visado constantemente. Não se pode falar do tempo sem que esteja presente, mesmo passado.
O passado é o que está distante do tempo, fora dele, fora do eixo do tempo que é o presente, que fixa o tempo no instante e o reparte em instantes sucessivos, todos presentes em causalidade, um instante devindo a outro sem que nenhum se perca de vista, e quando um se perde logo é lembrado. Onde estava o instante que estava aqui? Para onde foi? Por que não está alinhado junto com os outros? A memória como aparelho de captura do tempo presente não tarda em fazer o instante voltar ao seu lugar no tempo, a se apresentar novamente e não sair mais da linha.
Relembrar o passado a partir da memória é fazer voltar o instante perdido do tempo. Um passado que nunca passa, que não se deixa passar, um instante que não pode ser perdido, que deve estar constantemente presente no tempo. A memória constitui um eterno retorno dos instantes ao tempo presente que podem ser lembrados a partir do lugar que ocupam na linha reta dele, um após o outro, numerados ao infinito e feito segundos, minutos, horas, dias, meses, anos, décadas, séculos, milênios, ou ainda, milésimos de cada um destes. Postos em linha reta, cada instante é um instante do tempo em sua presença, do tempo presente, presente à vista a partir de cada instante que não pode lhe faltar.
O tempo não vive sem instantes. Toda a vida do tempo depende deles como um todo e de cada um em particular. Se há um instante singular, que se destaca do tempo de certo modo, ele ainda lhe pertence mais do que qualquer outro como se fosse o próprio tempo, isto é, o tempo vivido num único instante, diferente de qualquer outro. A singularidade do tempo é a presença dele na vida, um tempo vivido, sentido, e não apenas pensado no que é, enquanto ente e em seu ser sem vida, sem qualquer traço dela, a não ser o de si mesmo numa sucessão infinita de instantes.
O tempo vivido é o tempo que escapa a si mesmo, mas logo retorna a si. O instante que vai e volta no tempo como memorável, uma lembrança do tempo de si mesmo ao se perder no tempo por um instante. Tempo fora de si, fora de série, da série infinita de instantes na qual se faz e refaz em eterno retorno de si e em continuidade. Tempo que difere de si e, em sua diferença, retorna a si como o mesmo, idêntico. Tempo cujo diferenciar é o meio a partir do qual escapa a si mesmo, por um instante, antes de voltar a si e ser novamente presente.
A singularidade é a diferença do tempo em relação a si mesmo enquanto tempo vivido, um passado memorável. No diferenciar da singularidade, o tempo passa, seus instantes se destacam brevemente de si e, por um breve momento, há um instante livre do tempo, um instante de liberdade em relação a ele, quando o passado é vivenciado. É neste instante singular, diferente do tempo, no qual passa, que o distante passado aparece como um instante de liberdade em relação ao tempo, fora do tempo, um passado que, se é ainda do tempo em sua singularidade, já não é mais dele, dá um passo fora dele, é um instante perdido no tempo, em que o tempo se perde a si mesmo por um instante, um breve instante, ainda que memorável, capturável pela memória, que faz o tempo retornar a si, lembrar de si, naquele instante.
É no passado que o tempo vive, que há uma vivência do tempo, que o instante não é mais um entre outros, mas livre dos outros, vivido em sua diferença singular, em que cada instante não é igual ao outro, idêntico ao outro, é diferente, singular e vivido por ser diferente. Neste instante, o instante não está perdido no tempo, como parte de um todo, está perdido do tempo, é uma perda de e do tempo como um passado que não volta mais, um passado que é ele mesmo fora do tempo e não mais dentro do tempo como um passatempo, um reviver da memória a partir das lembranças.
Reviver o passado é o divertimento do tempo consigo mesmo. Lembrar do que era e do que é, lembrar a diferença dele em relação a si mesmo. Fazer da singularidade de cada instante vivido uma lembrança de si como o mesmo, idêntico. É não deixar que o instante passe, seja singular, que toda a singularidade do instante em sua diferença não seja diferente da singularidade de qualquer outro instante.
O passado é a singularidade de um instante que em sua diferença em relação a outros instantes já não pertence mais ao tempo. É um instante que desalinha o tempo, que o faz fora dos eixos, não ser mais presente. Somente no passado cada instante é imemorial, isto é, não capturado pela memória, não lembrado no tempo. Era uma vez... Quando já não se sabe mais em que tempo foi, e tão pouco importa saber, pois não se trata de saber em qual tempo, mas que apenas foi, que é passado, não será mais, não voltará mais ao tempo, por mais que se busque puxá-lo pela memória, fazê-lo retornar como lembrança, em busca de um tempo perdido.
O passado é um tempo perdido que não pode ser mais buscado, "é uma roupa que não nos serve mais", uma velha roupa colorida, é o grasno do corvo ou do assum preto a dizer nunca mais. É o distante que não se quer distante, que se busca fazer próximo, se aproximar e fazê-lo rejuvenescer, voltar à viver no tempo, reviver. É só à distância que o passado pode ser vivido, vivenciado, até mesmo no tempo, como tempo que não vive mais, nunca mais.
É ao dizermos adeus que o passado pode ser vivenciado, que o distante se torna distante, por um instante, um breve instante, no qual o presente se perde à vista. É na despedida que o distante passado passa frente aos olhos e, num lance de olhos, passa para sempre. Para sempre que se é a última forma de presença do tempo em si mesmo, idêntico, dele se fazer presente, é, sobretudo, a forma do distante passado que nunca mais retorna ao tempo, que quer dizer nunca mais. É um para sempre nunca mais, o relógio espatifado sobre a mesa de estar dizendo
Que o tempo foi emboraProcurar um jeito de ser felizE agora é para sempre nunca maisNunca pára, é sempre maisMas sempre nunca iguaisPara sempre nunca mais
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