Sobre o viver
Os gregos fizeram da vida uma grande tragédia. Até mesmo suas comédias são trágicas como problematizações da vida. Os judeus e cristãos fizeram da vida numa grande imolação, um sacrifÃcio do corpo e da mente a um deus, somente um, em busca de salvação. Os filósofos e cientistas modernos fizeram da vida uma grande racionalização da natureza, do homem e de deus transformando a vida numa matéria-prima sem vida, porém, muito lucrativa, principalmente para aqueles que exploram a vida dos outros ao menor custo para lucrar mais, os empresários. Em meio a estas transformações problemáticas, a vida é vista como algo extremamente complexo, motivo de horas de análises com psicólogos e psiquiatras, rezas nas igrejas, leituras de livros de auto-ajuda, busca de uma "filosofia de vida" para transformar a vida em algo simples, natural, um viver naturalmente.
Viver naturalmente é algo impossÃvel se levarmos em conta a história humana a partir das grandes mudanças produzidas por gregos, judeus e cristãos, e a filosofia cientÃfica moderna, e mesmo antes deles. Nada é simples nela em nenhum lugar da Terra, nem mesmo imaginando a vida um Estado de natureza ou descobrindo como era viver na civilização mais antiga. Viver é algo extremamente problemático historicamente. É pensar no inÃcio e no fim de tudo e buscar um motivo para viver do inÃcio ao fim, pois, sem uma motivação não se vive historicamente, não se faz da vida uma história, por menos expressiva que seja. Viver historicamente é fazer da vida uma grande narrativa de acontecimentos memoráveis e lembráveis para si e para outros, por menor que seja a vida, e não viver naturalmente.
Não faltam, portanto, explicações históricas de porque a vida é complexa e viver naturalmente é impossÃvel. Do pecado original aos inúmeros conflitos individuais e guerras por qualquer motivo ao outro à destruição total do planeta por alguma razão filosófica e cientÃfica, a vida não é nem um pouco natural. O ser humano impede a todo momento o viver naturalmente ao ponto da vida natural se tornar uma utopia da vida, algo imaginado num futuro distante, no fim da vida, exatamente no fim, na morte, pois, depois dela retornam os problemas de uma vida após a morte, como se não se pudesse pensar na vida de modo simples senão no seu esvair, na morte, no morrer como o único momento simples da vida. Para quem morre, não para quem vive a morte antes e pensa nela depois de acontecer. Morrer é visto, deste modo, como a solução para todos os problemas de uma vida vista desde o princÃpio dos tempos como algo complexo e tornada complexa a cada momento do tempo.
O pensamento da vida é vista como algo tão complexo que o melhor é morrer, uma total negação da vida natural, do viver naturalmente. O ser humano não é o único ser mortal na Terra, mas é o único ser-para-a-morte, como pensou Platão, ou o único ser capaz de pensar o ser-para-a-morte que é o Dasein como pensou Heidegger. É o único ser que pensa a morte e, ao pensá-la, torna ainda mais problemática a vida ao ponto de desejar a morte como solução dela, como algo simples enquanto solução para algo extremamente complexo. Desejar a morte não quer dizer necessariamente se matar, mas também matar o outro como solução para sua vida problemática, ou ainda, se arriscar a morrer, desejar a morte como algo que torna a complexa vida numa simples vida que pode morrer, ser morta, sem qualquer importância.
A vida é algo tão complexo para o ser humano que o menor motivo é suficiente para que pense em morrer. Não por acaso se vive a vida com ansiedade hoje em dia, pois viver naturalmente se tornou impossÃvel no capitalismo. A vida na Terra está em risco de extinção a cada momento que passa diante da transformação filosófica e cientÃfica nos últimos séculos que transformou a vida em capital. Não algo importante, mas algo sem importância, que pode ser trocada por qualquer coisa que faça dela algo simples, um viver naturalmente. A palavra vida, para um filósofo analÃtico, não tem nenhuma importância, e nada mais analÃtico do que o capitalismo informacional que faz das palavras algo sem importância, esvaziadas de toda vida, uma matéria-prima para obter lucro.
Viver naturalmente não quer dizer, por sua vez, viver pobre, na miséria, pois a vida não é simples para nenhum miserável. A vida não se torna simples esvaziada de qualquer materialidade, de qualquer meio de sobrevivência, de qualquer sentido, como uma pura sintaxe de letras. A sobrevivência no capitalismo demonstra que a vida chegou no seu limite e a morte é um lucro. A necropolÃtica é a solução e não o problema para o capitalismo. Pessoas morrerem para que o mundo se torne mais habitável é a polÃtica neoliberal mais rentável.
Sem desejar em hipótese alguma reduzir a exploração da vida, é muito melhor economicamente para o capitalismo a morte de pessoas, animais e plantas para que haja um futuro para Terra do que buscar sustentar a vida nela. Não por acaso se busca a vida em outra planeta, que é menos o anseio por encontrar seres humanos extra-terrestres do que o anseio por viver fora da Terra diante de todos os problemas da vida nela. Filmes como Interestelar e Não olhe para o céu não são uma visão fictÃcia da realidade neste ponto, é o que busca o capitalismo como solução para os problemas econômicos da vida, a ideologia de que está na hora de abandonar o planeta, pois sabe que se a necropolÃtica é uma solução, ela é problemática, pois é o fascismo sem Estado, o fascismo globalizado e não é fácil vender o fascismo, ainda que ele seja vendido como solução para os males do capitalismo e matar pessoas de fome e com bombas livremente como faz Israel com os palestinos ser um bom negócio para judeus obterem terras fáceis para morarem e fazerem a sua economia funcionar.
Diante disso é mais fácil problematizar a vida com guerras intermináveis do que viver naturalmente sem guerra, do que tornar a vida algo simples, natural, cotidiano. Cada ação cotidiana na vida é vista como problemática. O trabalho, esta concepção judaico-cristão que é uma das formas de sacrÃfico da vida, ao se tornar o conceito econômico polÃtico moderno com o capitalismo fez das ações da vida no cotidiano um grande problema. Não se faz nada sem pensar que é um trabalho e sem pensar na sujeição e liberação em relação a ele no capitalismo. É quando todo agir humano se torna um trabalho, um sacrifÃcio, uma tragédia, uma racionalização da vida que se deixa de viver naturalmente para viver de modo complexo socialmente.
Da vida doméstica e privada à vida fora de casa e pública, tudo na vida é trabalho. Não se vive a vida naturalmente, se trabalha a vida, se dá trabalho à vida e se busca fugir do trabalho para viver a vida naturalmente, mas as linhas de fuga estão cada vez mais difÃceis, pois o trabalho também se tornou subjetivo, pois a mente não para de trabalhar, de pensar em trabalho, em sobreviver pelo trabalho no capitalismo. Se o pensamento, com Descartes, define a existência humana no inÃcio da modernidade, é o pensamento do trabalho no capitalismo atual que define a existência humana que não vive sem trabalhar. O livro O direito à preguiça de Paul Lafargue não é hoje em dia um texto cômico e satÃrico sobre o capitalismo, mas um direito extremamente necessário ao corpo e mente humano como um dos Direitos Humanos mais fundamentais no Estado capitalista atual.
Obviamente, todos os problemas de saúde humana e animal são extremamente rentáveis para o capitalismo hoje que, quando não mata com sua necropolÃtica, adoece todos, pois aumenta o lucro de farmácias que abrem em cada esquina nas grandes cidades, ao lado de igrejas, consultórios médicos e academias, os comerciantes da boa vida. Viver simplesmente ou naturalmente, porém, não é o desprendimento disso tudo, voltar a viver na natureza como os animais ou os seres humanos mais antigos, não é uma sublimação de todos os problemas da vida com um cigarro de maconha ou qualquer outra droga buscando o Nirvana na Terra para se sentir bem, por mais que drogas façam bem à vida e sejam lucrativas, tão medicinal e fuga para o mal quanto os remédios na farmácia, as orações nas igrejas, as idas a consultórios do corpo e da mente e puxar ferro na academia.
Não há vida simples para o ser humano, pois ele transforma vida em algo complexo a cada instante, mas não se pode deixar que a complexidade da vida destrua a própria vida. É preciso aprender a viver naturalmente, resolvendo e buscando resolver os problemas da vida, e não buscando aumentá-los. Viver naturalmente é viver a vida em toda sua complexidade lembrando que, para além de todos os problemas da vida, do quão problemático é a vida, a vida é a solução. Não uma vida imaginária, a nascer, outra vida, mas a vida vivida aqui e agora. Viver naturalmente não é buscar uma solução para a vida ser mais simples, é viver a vida como algo simples no meio de tudo que a destrói atualmente. Acolher a vida cotidianamente com todos os seus problemas, pensar sobre o viver naturalmente para sobreviver no capitalismo que explora a vida a cada dia que passa e cada vez mais rapidamente.
Viver naturalmente é acolher a vida em toda sua problemática sem deixar que os problemas da vida impeçam de viver. Acolher a vida na sua problematicidade, que é a problematicidade da própria vida humana, acolher a si em meio à destruição de si advinda de todos os lados no capitalismo e transformar a complexidade da vida numa vida simples, num viver naturalmente. Não há fórmulas mágicas para viver, nem uma vida autêntica a ser vivida, ainda que haja palavras da salvação por todos os lados para todos os problemas da vida no capitalismo, deus e o demônio, as principais delas, e a um preço bem barato, dependendo da igreja que se busque. E, na falta de um e de outro, a filosofia é também uma palavra da salvação hoje em dia, que ajuda a resolver os problemas da vida e se encontra de graça por aÃ, se bem que o filósofo é um sofista hoje em dia, pois nada é de graça no capitalismo.
Ao se pensar sobre o viver, a vida não deixa de ser problemática, contudo, pensando sobre o viver vivemos a vida naturalmente em vez de morrer diante de todos os problemas dela.
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