A costela de Adão
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Costela de Adão cujo nome científico é "monstera deliciosa". |
Segundo a Bíblia Sagrada dos judeus e cristãos, a mulher, Eva, foi criada por um deus a partir da costela do primeiro homem, Adão. Originada da costela do homem, sem que este engravidasse, a mulher é concebida como parte dele, como parte de um todo que é o homem e compreendida como propriedade dele, sua, algo que pertence originariamente ao homem, como a mulher de Adão, sua esposa, dada a si deus, em aliança com ela e com deus. Neste sentido, para judeus e cristãos mais ortodoxos, principalmente os cristãos evangélicos, a mulher deve se submeter ao homem, às suas ordens e à sua vontade, à razão e justiça do homem, em princípio em termos de sexualidade e procriação, devendo se submeter ao desejo de prazer e procriação do homem, ademais como castigo devido ao chamado pecado original.
Símbolo, portanto, de uma ordem, vontade e desejo, razão e justiça autoritária do homem sobre a mulher em nome de seu deus, a costela de Adão é, também, pelo contrário, o símbolo que faz do homem impotente, o que destrói toda sua tentativa de se impor como um todo e de modo totalitário sobre a mulher. É o que faz dele um ser deficiente por lhe faltar uma parte, ser retirada uma parte dele, mesmo que não o torne inválido, alguém menor, inferior e diante disso se justifica seu querer se vingar, ser violento e se justifica sua violência em poder, por lhe terem retirado algo, por ter sido castrado e por não aceitar sua castração, não aceitar que tenha sido tirado ou retirado o que é seu por natureza, que lhe pertence desde que foi criado, desde a sua criação, isto é, sua costela. No caso, vingança, violência e poder justificado em relação à mulher, por ela ser aquilo que lhe falta, por ser o símbolo de sua impotência, deficiência, castração como ser pleno, completo, total, puro tal como deus o criou. Neste sentido, justifica-se o pensamento de Aristóteles de que a mulher é o homem castrado, mas não no sentido de que falte à mulher aquilo que o homem tem, como se ela fosse inferior a ele biológica e psicanaliticamente pela ausência de um pênis ou falo. E sim, porque a mulher é vista como o outro primordial no qual o homem percebe uma primeira violência a si, por ser lhe tirado ou retirado algo, e, diante de impotência em relação a isso e diante de sua deficiência por causa disso, ele busca vingança, violência, poder e justiça.
A costela de Adão, porém, não é de Adão no momento em que é retirada dele por deus, nem mesmo dele em princípio, isto é, na sua criação. Se, em princípio, deus deu a vida à Adão, o fez como um todo criado à imagem e semelhança de si enquanto signo de totalidade, e uma totalidade em particular, ao criar Eva a partir da costela de Adão, deus fez deste não mais um todo, não mais semelhante à totalidade, semelhante a deus. Que Adão se sentisse só antes disso, isto é, sentisse falta de algo mesmo sendo ele um todo, completo como obra divina, e mesmo estando diante de tudo que existe, diante da totalidade de si e do mundo; que Adão sentisse um incômodo, uma angústia, quiçá um desespero para além da totalidade era e via com seus próprios olhos, do mundo ao seu redor, mesmo que nada lhe fosse estranho no paraíso e falasse a língua da natureza e dos animais; que Adão desejasse apesar de tudo que era e estava presente aos seus olhos de modo completo e total talvez fosse um pressentimento do que estava por vir, uma intuição do que deus estava por criar para ele, de algo que até mesmo deus talvez não sabia que faltava e só percebeu depois da criação de Adão. Somente depois, portanto, de criar o homem que deus pensou em criar a mulher, até porque enquanto deus e não homem, não tem necessidade de mulher, e visto como homem, e deve ser visto deste modo senão não é deus, é deusa, tão pouco poderia criar um ser à sua imagem e semelhança que fosse diferente dele, uma deusa, pois nem no Antigo e Novo Testamento deus é descrito como mulher, nem em absoluto e nem em pessoa, mas como Iavé, como Jesus, que não são afeminados até onde se sabe nas Escrituras.
A "mulher" ou o que viria a ser a "mulher", portanto, é vista como um desejo do homem de algo que lhe falta antes mesmo de lhe ser tirado a costela e acaba por ser visto nela e na mulher como sua costela, isto é, um desejo de posse que é um prazer sexual e de procriação, de sentir o que era seu e que foi criado a partir de si, como sua pro-criação, algo que até não sentia na medida em que foi criado no paraíso como um todo a semelhança do todo-poderoso deus. Nem podia sentir antes de uma mulher que signifique especificamente isto fosse criada para si como o signo deste desejo que, até então, era apenas um sonho de algo que lhe faltava. Não havia desejo de prazer sexual e de procriação do homem antes da mulher, a não ser que se pense em zoofilia, algo impossível obviamente no paraíso e mesmo na realidade na medida em que o homem em termos de espécie não pode procriar com outra espécie. E talvez tenha sido senão o fato de ver as outras espécies de animais em pares como na futura Arca de Noé o que fez o homem desejar e sonhar com algo que somente ele não tinha, um par para chamar de seu, um ser semelhante a si tal como era semelhante a deus, mas diferente de si, que não é, portanto, um homem.
Se deus retirou a costela de Adão enquanto ele dormia talvez seja porque esta significasse já o incômodo que sentia, o desejo de algo que não tinha assim como os outros animais tinham, algo que deus não pudesse ele mesmo compreender em sua criação do homem e que não pudesse fazer à sua semelhança como homem, um desejo, ademais, propriamente humano, algo que não tinha nenhuma relação com a totalidade divina, e, mais ainda, que talvez a totalidade mesma fosse a causa de sua angústia, toda aquela perfeição paradisíaca fosse a causa do desespero humano, que não fosse realmente o que o homem queria, que a companhia dos animais não fossem suficiente, pois eram animais, não eram humanos, nem a de deus também, porque era deus, não dava para o ser humano compartilhar tudo com ele. A costela de Adão é o desejo de Adão por um ser que fosse à sua imagem e semelhança, um sonho que deus interpreta e transforma em realidade ao tirar ela dele, sem qualquer violência perceptível, isto é, sem que Adão perceba que lhe falta algo, que foi retirado de si uma parte, o que lhe pertencia, sua propriedade e, com ela, sua totalidade.
Deus dá, deus tira. Deus deu a totalidade a Adão, mas esta não foi suficiente para ele. O homem queria mais, mas deus deu menos. O homem era um todo, tinha tudo que lhe era suficiente, mas ele queria mais do que era suficiente, deus deu então a deficiência. Não obstante, foi no momento em que o homem passou a ser deficiente, a não ser mais a imagem e semelhança de um todo, de uma totalidade, de deus, que ele se sentiu como um todo, como tendo o que desejava, o que sonhou ter e foi realizado por deus, dado por seu pai. Já não faltava mais nada no paraíso.
Que a mulher viesse a ser o desejo de prazer sexual e procriação do homem como um pecado original era apenas a consequência do desejo do homem por ela antes mesmo dela existir, desejo de uma companhia, uma acompanhante, como o desejo de qualquer outro animal pela fêmea de sua espécie. E talvez seja o desejo mesmo de Adão por uma mulher o pecado original dele, de ser como os animais, à imagem e semelhança deles em deficiência ao desejar uma fêmea para ter prazer sexual e procriar com ela tendo filhos à sua imagem e semelhança e não ser mais à imagem e semelhança de deus, o que todo o moralismo judaico-cristão, e quiçá islâmico em sua ascendência abraâmica, dá um sentido totalmente.
Se deus, porém, realizou, por um lado, o desejo de Adão, o sonho de Adão ao dormir, criando uma mulher, uma fêmea para si, Eva, esta não é o que Adão desejava, isto é, um ser à sua imagem e semelhança. É diferente de si, absolutamente diferente, ainda que pareça uma imagem e semelhança de si. Mais ainda, como parte exteriorizada de si, ela é o que não mais lhe pertence. Por mais que tenha sido criada a partir de sua costela, não é uma costela, por mais que tenha sido parte dele, de um todo, não é mais parte dele, de um todo que é ele, nem ele é mais um todo com a existência dela. A mulher é o que é exterior ao homem e não mais interior a ele, seu. É aquilo que não é mais compreendido por ele e se é compreendida é apenas em parte, como uma parte de si no passado, reduzida a um pertence seu, sua propriedade, algo que a mulher absolutamente não é, não é mais, nunca foi desde que foi criada por deus.
Dizer que o homem foi criado perfeito como um todo por deus à sua imagem e semelhança e mesmo assim lhe faltava uma mulher é uma contradição que somente a fé pode resolver. Dizer que a mulher pertence ao homem mesmo sendo retirada dele por deus como uma costela, considerá-la parte de si como um todo, como uma parte que falta para sua completude, uma peça para o quebra-cabeça que é ele como se quisesse colocar em si novamente a costela, desfazer o que deus criou, é também algo apenas digno de fé. Nem o homem é mais um todo depois que deus lhe retirou a costela e fez dela uma mulher e nem esta é mais uma parte do homem, uma propriedade dele como sua costela depois que deus a criou a partir da costela de Adão, a levar em conta o Gênesis.
Se, como disse Aristóteles, a mulher é um homem castrado, sem qualquer relação com a tradição abraâmica judaico-cristã-islâmica, ela é senão a expressão da impotência do homem, o reflexo de que o homem não tem poder, da ausência de poder do homem e, não obstante, desejar ter poder por meio da mulher, de ter potência e poder, de se erigir, se por em riste, de ficar ereto, de ser viril e corajoso. É por causa da mulher que o homem busca ser potente, potência, poder, vendo nela sua própria ausência de poder e potência. A mulher é o poder e a potência que o homem não tem mais em si, o que busca para si como não sendo mais seu, nem desejando ser, o que ele deseja ter não mais em sonho, mas em violência, pois é somente em violência que a mulher, o que foi retirado do homem por deus, pode ser devolvida a ele como um parte que lhe falta.
Se deus retirou do homem a costela de Adão sem violência, todavia, é por violência que ele a quer introduzir de novo reduzindo-a a um objeto de seu desejo de prazer e procriação. A ereção do homem, sua virilidade, é a expressão da violência do homem ao desejar ter o poder que lhe foi tirado, o poder de ser todo, a totalidade, antes mesmo de ter sido expulso do paraíso pelo pecado original. Deseja em violência a mulher para ter o poder e a potência que ela representa para si, para esconder a verdade de sua própria impotência, a sua incapacidade de se ver impotente, sem poder ser todo. Por ser a mulher a verdade que muitos filósofos, segundo Nietzsche, não sabem cortejar sem violência, pois a violentam com a ereção de suas línguas e retóricas de escravo e de senhores dela.
O homem, em sua impotência, não consegue compreender que se a mulher expressa a sua castração, foi deus que o castrou, não ela. Age com violência sobre o outro que é inocente, não tem nenhuma culpa por sua castração, por sua falta de ereção, por não se pôr ereto, por agir como animal. Deus retirou do homem o que tinha, furtou-lhe o que pertencia, tirou-lhe sua propriedade, o seu desejo e seu sonho e deu em retribuição a mulher, mas o homem não quer uma mulher, ele quer uma costela, a sua costela de volta, quer um objeto de prazer e procriação mesmo que a mulher não seja e deseje isso.
A costela de Adão é o símbolo de toda a redução fenomenológica da mulher ao homem, da fêmea ao macho, do ser feminino ao ser masculino na tradição abraâmica, isto é, judaico-cristã, quiçá islâmica e em outras tradições. É a redução dela a um objeto de prazer e procriação, mas também como instrumento de poder, como um osso ao esse animal, que o homem-macaco impõe como cajado e como arma aos outros animais, em gritos que anunciam a violência por vir, mas que, porém, está já no seu desejo de poder sobre a mulher, sobre um objeto, sobre um instrumento, sobre o que é, para si, outro, absolutamente outro, qualquer outro. É transformando a mulher numa costela que o homem tem poder sobre o absolutamente outro e qualquer outro que ela é, que o macho homem tem sobre a fêmea, que o ser masculino tem sobre o ser feminino, não importa a raça ou etnia, e a branquitude abraâmica não tem nada de raça pura nisso.
Se é preciso escutar a fala de outrem mais do que desejar o outro que se vê, pois na escuta da fala se escuta o "discurso" de outrem na filosofia, e, para além desta, escuta-se a palavra de outrem que é deus no judaísmo-cristianismo, a mulher é a palavra de outrem, de deus ao homem, o que deus deu a ele além de sua própria vida, um sopro de vida que não é seu segundo o judaísmo-cristão. A presença da mulher é o "ensinamento" do "mestre", do "pai", de "deus" que há outrem para além do homem, do seu egoísmo, de sua origem divina primeira. A violência do homem à mulher reduzindo-a à sua costela, sua posse, propriedade, é uma violência contra deus que fez da costela de Adão uma mulher, é querer reverter a ordem divina fazendo seu o que não é mais seu, nem tão pouco foi absolutamente seu, foi dado a si por deus e de si pode tirar. Ao violentar a mulher, outro ser humano que é ela, o homem nega a própria criação da mulher por deus como algo exterior a si, que não é ele, nem parte dele e tão pouco dele como sua propriedade.
Se a fé judaico-cristã, quiçá islâmica, e de outras tradições, justifica a redução da mulher a um objeto e instrumento de prazer sexual e de procriação em nome de deus, e a razão filosófica muitas vezes segue a fé justificando o que foi dito e escrito sem questionamento, tão pouco podemos dar fé e razão a isso. É preciso acabar com o luto de Adão por sua costela perdida. O homem deve aprender a viver sem desejar o poder de ser todo, isto é, de ser à imagem e semelhança de deus violentando mulheres. Que a mulher em toda a história desta fé e razão tenha sido emudecida, em seu silêncio ela resiste ao desejo de poder e à violência do homem macho e ao ser masculino e ressoa a palavra de deus que a criou não como sua imagem e semelhança rompendo toda e qualquer tradição patriarcal que coloca o homem acima de tudo, mas não deus, pois criou a mulher para deixar bem clara que o homem não está acima de tudo, nunca esteve, nunca estará, por mais que pretenda isso em sua tradição patriarcal.
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