As veias abertas da filosofia brasileira

janeiro 01, 2025

Não faltam arautos da negatividade absoluta de uma filosofia brasileira que se dizem filósofos e brasileiros e retomam do arco da velha antigos arautos para legitimar o que dizem reproduzindo o mantra de que não existe filosofia no Brasil, de que somente existem comentadores, de que, nós, indígenas, negros, e mesmo brancos brasileiros, e os pardos nem se fala, não filosofamos. Que neste primeiro dia do ano ponhamos abaixo esse discurso de cão vira-lata que tenta ser cão cínico e reduzamos a pó em nossas mentes todo o discurso negativo sobre nossa capacidade de pensar no momento mesmo em que pensamos. Que este discurso colonialista do eu europeu, do outro que não nós, repetido alhures por esses arautos da má fé seja destruído antropofagicamente para além de toda desconstrução dele em nosso pensamento, e que paremos de vez de pensar que não pensamos, logo, que não filosofamos quando filosofamos, deixando de dar ouvidos a estes asnos disfarçados de cães ladrentos e lazarentos.

Não é preciso nomear aqueles que repetem alhures tais discursos para combater linha por linha seus argumentos, pois se alimentam de uma negatividade absoluta. Basta ouvir seus latidos, pois ladram aos quatro cantos dizendo que não há filosofia brasileira e em cada esquina tem um se coçando para latir como cachorro europeu de raça pura "divulgando seu pensamento filosófico brasileiro dizendo que não há filosofia brasileira". São como os europeus que choravam pela vida ao serem pegos e que tupinambás se recusavam a comer por serem pessoas fracas mesmo aparentando serem fortes em batalha. Sua carne, assim como sua língua, é pútrefa, em nada alimenta a não ser os aqueles que se alimentam de bom grado de carniças, e se tornam também carniça, os que dizem sim à morte e como é boa a sua morte. A estes devemos apenas dizer: Sai pra lá, carniça! 

Se nos detemos neles, não é para argumentar contra a filosofia que dizem que não temos, e tão pouco eles pelo que dizem, reduzidos a pó em seu próprio discurso autoflagelado de cão sarnento europeu. Não é preciso ir contra eles. Uma simples palavra de nosso pensamento ressoando na língua brasileira repetindo-se alhures na escrita basta para silenciá-los e pôr-lhes o rabo entre as pernas. Mais ainda, seus discursos são tão frágeis que não suportam nem mesmo um suspiro de pensamento, uma breve respiração entre um pensamento e outro que damos em silêncio cortado pelo riso da estupidez de quem pensa que nós, brasileiros, não pensamos, logo, não filosofamos.

Talvez digam, surpresos, com olhos esbugalhados, de cara pálida: Mas você já argumentando! Deixemos estes embasbacados com o óbvio ululante e façamos o que fazemos de melhor, filosofar enquanto eles não filosofam, ou filosofam em sua negatividade absoluta de si mesmos da qual se fundamentam dizendo que nós, brasileiros, também não filosofamos, reduzindo nós à identidade deles. Paremos e pensemos um pouco mais na estupidez deles em querer pensar que não pensamos, logo não filosofamos como eles não filosofam. Filosofemos enquanto eles não filosofam e dizem que não filosofamos também.

Desde que o primeiro europeu português filho de uma égua chegou nas terras indígenas, nós, brasileiros, filosofamos enquanto europeus portugueses e indígenas, aqueles falando, estes calando e sendo silenciados, aprendendo a língua do outro, que é o que faz todo filósofo, europeu ou indígena, pois ninguém aprende a filosofar sozinho! Isso é coisa de pensador que pensa que está só com seus pensamentos, sua língua, seu eu, seu ser, em si, enfim, só! Oh, penso, logo existo! Quando já existia antes de pensar só não pensava em sua existência, muito menos no pensamento dela sozinho, preocupado que estava pensando em outras coisas, viajando pelo mundo ou sem fazer nada, só pensando em vez de pensar só. Não há espaço para truísmos filosóficos além-mar, muito menos além do oceano Atlântico, nas terras ameríndias onde se origina a filosofia brasileira a partir da qual começamos a pensar no outro em vez de pensar que pensamos sozinho, que não há nenhum outro no pensamento, nada diferente na identidade deste, em sua ipseidade e na existência além de si mesmo.

Além-oceano, que é mais distante do que além-mar, aprendemos a pensar na diferença e não na identidade do pensamento em si mesmo. Aprendemos que o pensamento branco tem alma e o indígena não tem, que o branco fala o pensamento da alma e o indígena fala disforme ao pensamento dela, pois não a tem. Aprendemos a dialética dos opostos do eu e do tu, ou ainda, a identidade do mim, a identidade da língua do eu e do ego em si mesmo, mas também a diferença nela do mim ao ser dito pelo indígena: Mim, indígena. Aprendemos que o português fala eu e o indígena fala mim que não quer dizer eu em si mesmo enquanto ego, mas nós, e que este nós tão pouco rima com o vós de uma Vossa Majestade, que o ego se dá soberanamente.

Aprendemos que há uma diferença entre o nós branco e o nós indígena mesmo que pareça o mesmo nós. Aprendemos que a língua dá nós quando pensamos na língua do outro e aprendemos a duvidar dela para além do pensamento que expressa, pois não somos nenhum pouco pragmáticos, somos práticos, damos e desfazemos nós. Assim é que percebemos que o nós branco é opressor, é uma generalidade abstrata espiritual conceitual que se impõe sobre cada um de nós indígena, e brasileiro. O nós indígena é oprimido, é o nós de cada um sobre o qual o nós branco se impõe como cada um dos negros escravizados que o nós branco trouxe para as terras indígenas. O nós indígena e negro é um nós submetido ao nós branco que não é percebido na língua branca e sua mitologia branca a partir da qual falamos, escrevemos, a língua do outro, do nós branco.

O indígena não diz eu, não há sujeito e subjetividade indígena, a não ser quando se diz indígena, quando fala a língua do branco. Nós, no sentido indígena, não quer dizer vários eus indígenas idênticos. Quando o indígena diz mim, nós, indígena, não é a si mesmo em identidade única que se refere, é ao ser único que dizem que é, mas não é, o ser indígena. O ser indígena é o autóctone das terras às quais os brancos europeus portugueses, franceses, ingleses e todos os eses deram o nome indígena pensando nas Índias, as terras à margem do continente europeu a serem colonizadas, expropriadas e comercializadas em suas riquezas. Mas ao se dizer indígena se torna estrangeiro em sua própria terra, ainda que seja dito autóctone dela, pois nunca lhe foi dado o direito de ser dela, mesmo vivendo nela de fato há milhares de anos. O mim, indígena é a demarcação desta fronteira entre o fato e o direito, o que de fato o indígena é, autóctone, ser desta terra, mas que de direito não é, pois é um estrangeiro nela, colonizado desde o momento em que foi chamado de índio, hoje, indígena. Assim é que dizer-se indígena é ao mesmo tempo se dizer desta terra, mas também não se dizer dela, em outras palavras, dizer-se brasileiro.

O mesmo pode ser dito do branco europeu e seu nós, mas de modo inverso. Se o europeu é estrangeiro desde o momento em que chega às terras indígenas, desde o primeiro momento em que a avista de longe pensando em suas Índias, estas terras são para si, suas, por nascimento na Europa, mas também por natureza e por seu deus cristão e deuses pagãos aos quais se pagam dívidas e se fazem promessas até hoje pelo descobrimento. O nós branco europeu é o verdadeiro indígena destas terras, se por verdade se entende o que eles entendem, o que é de direito, não de fato, se se pensa que a verdade é a justiça deles, e não o que é justo, aquilo que justamente é, o que não pode ser contestado de fato, quando se pensa que o de fato é apenas uma extensão do pensamento de direito que, de fato, não existe, é metafísico, ou ainda, transcendental, empirismo transcendental, quando se nega e/ou se afirma o que é de fato por direito. Isto porque, na fé na justiça judaico-cristã-muçulmano ou abraâmica europeia, o justo é o pecador de fato por direito, portanto, não o justo não tem direito algum na justiça, e assim, justamente, indígenas foram convertidos em pecadores estrangeiros em suas próprias terras, antes mesmo de avistarem os primeiros brancos europeus, e depois mais ainda, ao falaram a língua metafísica transcendental e do empirismo transcendental, e serem submetidos à justiça humana e divina do deus abraâmico, o Teosi, e também pagã dos divinos humanos europeus.

É a partir do encontro de olhares, de corpos, de línguas e de trocas simbólicas que se origina a filosofia brasileira no momento mesmo em que o europeu estrangeiro pensou que o que via era o que via por direito sem ver o que de fato via, descobrindo assim uma realidade que via de fato, mas não conhecia, ainda, por direito como sua, a indígena, mas por direito se tornou sua logo assim que viu. Por outro lado, no mesmo momento, quando o indígena pensou o que de fato via, mas por direito não via, que a realidade que conhecia não era sua, era do europeu a partir do qual, de fato e de direito, passaria a ser sua. Desde o primeiro momento em que indígenas, de um lado, e europeus de outro, se olharam pela primeira vez e entre seus olhos e corpos trocas simbólicas se produziram, a filosofia brasileira veio a lume, relampeando na luz dos alegres trópicos a fazer ver e pensar no outro, para além do eu e do tu, a ver e pensar neste outro inominado e inominável que, por falta de nome, é chamado diferente, brasileiro, nome que quer dizer tanto o indígena quanto o europeu, nome pardo. É a partir do encontro dos diferentes nomes e de uma diferença indígena e europeia que a filosofia brasileira se origina e nenhuma filosofia da identidade brasileira forjada a partir da negatividade absoluta a pode apagar, só a expressa contraditoriamente.

A filosofia brasileira é a filosofia da diferença, do outro, do desconhecido que se descobre e se conhece a partir de uma filosofia da identidade que não é a sua. É a partir do indígena que o europeu se pensa, pensa em si contraditoriamente, na sua identidade e ipseidade apesar e para além de toda diferença em relação à ela. É a partir do europeu que o indígena pensa em si como indígena e europeu, é europeizado como indígena, diz a si mesmo indígena, se metaforiza indígena, se torna aquilo que o europeu pensa e deseja que seja, indígena, depois europeu, português, brasileiro. Ser enquanto indígena, portanto, uma projeção do europeu e uma introjeção dele dizendo-se indígena e europeu, português, brasileiro, apesar e para além das mais de duzentas etnias diferentes das quais diferentemente descende sem ser indígena. (a saber).

É a diferença dos indígenas e do indígena e europeu, e não a identidade europeia, a origem da filosofia brasileira. Origem que não é a identidade do um, tão pouco a dialética do dois em um, muito menos a crítica cristã da trindade no um, nem mesmo a multiplicidade do um e toda sua diversidade e pluralidade de diferenças num um-todo. Não há nem um nem todo na origem da filosofia brasileira, há tão somente a origem dela no momento mesmo em que pensa sua origem. A filosofia brasileira se origina do encontro originário das diferenças a partir das quais a origem é pensada em sua origem. É a partir da origem, partindo de uma origem que não é (mais) a sua, indígena e europeia, que a filosofia brasileira se pensa em sua identidade enquanto indígena e europeia.

É a partir do encontro originário do europeu com o diferente de si, o indígena, e deste em sua diferença com o que é em suas várias etnias em relação ao europeu, que a filosofia brasileira se origina. Uma filosofia que é tanto indígena quanto europeia, que não pode se dizer uma sem a outra, mas que não é nem um nem outra, tão pouco uma oposição entre elas, muito menos a identidade delas em oposição, nem a multiplicidade de um-todo delas, tão somente se podendo dizer que é a filosofia da diferença dos diferentes, pois somente assim se diz, desdizendo toda e qualquer identidade das diferenças dos diferentes. A filosofia brasileira é a filosofia da diferença não reduzida e simplificada metaforicamente pela identidade europeia submetendo a si a identidade indígena, apagando e silenciando toda e qualquer diferença indígena em relação ao europeu e, sobretudo, todas as diferenças indígenas. E se nos limitamos aqui a falar de indígenas, e não das diferentes etnias e suas diferenças, é por falarmos ainda como europeu, a língua europeia, esta língua que nos oprime enquanto brasileiros em cada palavra que falamos e sob a qual apagamos nossa origem nos fazendo quadro em branco quanto ao nosso pensamento e existência, mas uma língua que não é branca, é parda, pois é feita de pau-brasil indígena, uma língua machadiana, da machadinha indígena e negra que não martela, corta o mal pela raiz, a língua do escreveu, não leu, o pau comeu.

Que o vira-latismo filosófico comece a ser cortado pela raiz e que o falso cinismo que ele representa enquanto erva daninha seja transformado em chá para nossa boca que não apenas fala palavras, também come palavras, as suas e as dos outros, as devora com voracidade antropofágica alimentando o corpo para lhes dar a força que precisa para sobreviver à negatividade absoluta dos inimigos e para festejar com os amigos do saber brasileiro. Que toda a crítica dialética do um, do eu penso, eu sou europeu, seja posta goela abaixo e se torne merda pura, expelida por nossas entranhas como algo desprezível depois do nosso corpo extrair dela o necessário para nos dar a força para viver e dizer, palitando os dentes, como é gostoso o meu português, francês, inglês, japonês, javanês, brasileiro fazendo filosofia brasileira!

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