Por falar em filosofia

janeiro 20, 2024


O filósofo é aquele que diz muito em muito pouco e, muitas vezes, em silêncio. É aquele que fala para si, consigo, como se falasse com um estranho, ou ainda, com um estrangeiro, porém, também familiarmente, como um conhecido. E, quando fala com outro que não a si, não sabe o que fala, nada sabe, só sabe que nada sabe.

O que o filósofo fala é somente para si, por si, e para mais ninguém. O que tem a falar não chega aos ouvidos dos outros, permanecem nos seus, zunindo como mutuca seus pensamentos, o que tem a falar e não diz, a não ser para si. Em silêncio, ele esbraveja, se acalma, ri do que fala a si mesmo em pensamento e ninguém ouve, para os quais ninguém dá ouvido. O filósofo aprende a ouvir a si mesmo, o que ninguém quer ouvir. Fala para si o que ninguém quer falar. Fala o que todos calam, e também ele, falando mais para si do que para outros.

Falar é o ofício do filósofo, não menos, nem mais do que escrever, e se escreve é menos para manter sua fala viva no espaço e tempo do que para se ouvir falar e esquecer o espaço e tempo em sua fala, falando, falando, falando, numa conversa interminável consigo mesmo e com outros que quiserem ouvi-lo falar sobre si, sobre o mundo, sobre deuses, sobre o que todo mundo fala para todo mundo, menos para si, ali, em sua existência, quando precisa falar seriamente consigo. Se o filósofo fala sério, porém, nem sempre é sério o que fala. Até mesmo mente para falar a verdade. Às vezes, nem importa o que fala, o que importa é falar aquilo que não fala, o silêncio que introduz em sua fala, recortando-a em pedaços para que seja ouvida e, ao mesmo tempo, não ouvida. Ouvida por si, não ouvida por outros. Fala para si ao mesmo tempo em que fala para os outros. Ouve-se ao mesmo tempo que não é ouvido.

Se falar é o ofício do filósofo, ouvir é o resultado de seu ofício. Ninguém ouve melhor do que o filósofo. É por tanto ouvir que se distrai, que vaga em pensamentos. Uma palavra basta para ouvir atentamente por horas a fio a fala, sua e do outro, se perder em pensamentos. Não é somente a sua fala que importa, por mais que lhe importe falar sobretudo. A fala do outro é também importante e ninguém valoriza mais a fala do outro do que o filósofo, ninguém faz mais da fala do outro a sua própria fala do que ele. E se por vezes ataca em sua fala a fala do outro parecendo não a ouvir é porque já a ouviu demais ao ponto de lhe estourar os tímpanos, por doer no mais íntimo de si a fala do outro que tanto preza, ainda que não preze o outro em si, Outrem.

De fato, não importa tanto o outro ao filósofo, nem mesmo Outrem, menos ainda a voz na fala, o tom que se fala, o que importa é o que outro e Outrem falam. Tão pouco importa se o outro ou Outrem fala em verso, metro, quilo ou em discurso, ou mesmo, se apenas ensaia em falar e pensa que não fala nada de importante, e muitas vezes nada de importante fala, se outro fala por si, como si mesmo, ou ainda, por Outrem, o que importa é que lhe fale e que escute o que fala e se escute na fala do outro, em silêncio.

Na fala, o filósofo se sente em casa, silencia, e ouve o canto dos pássaros: de Minerva, de Shakespeare, de Edgar Allan Poe, de Patativa do Assaré. Ouve o canto de Apolo e também de Dionísio, dança e ri na fala com numa sala com passos alegres e compassados, medindo seus próprios passos na fala que é para si seu enlevo, o que o faz falar, e calar. Falar e calar é o que melhor faz o filósofo, também mais do que qualquer outro. Sua fala e seu silêncio são absolutos, isto é, exagerados. A fala é a terra em que pisa e da qual tira a força para se manter vivo, é seu alimento. O filósofo fala comendo cada fala como se fosse sua última refeição, azeitando o que fala para descer melhor à boca e ao ouvido, ruminando em silêncio o que fala para melhor se banquetear. E tanto fala que esquece mesmo de comer, saciando-se com sua própria fala. O banquete filosófico é menos o que se come e se bebe à mesa do que o que se fala e se ouve enquanto come. A comida é apenas um aperitivo para o prato principal, a fala. A boca do filósofo é menos para comer do que para falar e, se come, é para parar de falar e ouvir a fala do outro, de Outrem. O banquete é apenas um meio para falar e ouvir o que outros e Outrem fala.

O filósofo fala demais e se censura mulheres na filosofia é porque sabe que elas falam e gostam de falar e também de ouvir tanto quanto eles, até mais, já que as ouvem falar desde criança. Não querem que elas falem e tão pouco as querem ouvir, pois ouvi-las é ouvir a si mesmos, que falam demais, e já se ouvem bastante. A filósofa é o filósofo em dose dupla, e nenhum filósofo aguenta outro filósofo zunindo em seu ouvido, menos ainda uma filósofa, que fala tanto quanto e mais do que ele com a mesma razão desmedida. Se o filósofo não consegue ouvir outro, outra ou Outrem em sua fala, muito menos outro filósofo e filósofa, é porque sua fala é o bastante, há um limite em sua fala. Sua fala lhe basta. A fala impõe a si um limite intransponível, o de si mesmo, que muitas vezes o outro, outra, Outrem não percebem. A fala do outro, outra, Outrem, é o transbordar de sua fala, o momento em que já não fala e tão pouco ouve a si mesmo. É o canto do cisne, sua última fala. Na fala do outro, outra, Outrem, o filósofo antevê a morte de sua fala, seu não se ouvir mais, um silêncio absorto, um abismo que se abre entre si e sua fala, sem que ela retorne para si, sem que a possa mais ouvir. 

Nada angustia mais o filósofo do que não poder falar e ouvir a si mesmo, ao outro, outra, Outrem. A censura é a morte para o filósofo, a morte da filosofia. Não que o filósofo não conheça o limite de sua própria fala, que sua fala não tenha ou deva ter um limite, e que não saiba calar quando deve, mas ser calado, ser silenciado é a ultrapassagem de todos os limites da fala, sua, de outro, outra e Outrem, a destruição do falar e ouvir, principalmente, a si mesmo. É o abismo em si no qual ninguém fala e ninguém escuta a si mesmo, onde o silêncio nada diz. Não por acaso padres, pastores e deuses são tão desprezíveis para filósofos, pois tudo que sabem fazer é mandar não falar, e somente aqueles que sabem falar e ouvir a quem dão ouvidos. Somente aqueles que desafiam os deuses com sua fala que são merecedores da fala e ouvidos de filósofos, os filhos de Adão, que buscam falar em nome de si e não dos deuses, mesmo que desagrade aos deuses, mesmo que deuses lhes expulsem do paraíso, pois se deuses não são capazes de ouvir o que o homem fala e tolerar o que falam, deuses não são melhores do que muitos humanos intolerantes à fala de outros e mesmo à sua fala, calando sua própria boca quando falam quando ninguém os pede para se calar. Nada mais divino e mais autoritário do que ser obrigado a se calar, ser calado por outro, outra, Outrem, o que filósofo algum aceita, pois é sua própria morte, e se aceita a morte de sua fala é porque já não tem mais nada a falar, o que lhe resta é calar.

É a fala, o ouvir, que faz o filósofo viver, se manter vivo, perseverar na vida e fazer outros viverem, se manterem vivos e perseverarem na vida. A fala é o que o filósofo é em si e sem a qual nada é, não consegue se ouvir, existir. Sem a fala, o que escreve não se diz. E sem escrever não diz o que fala em silêncio, quando todos silenciam, e pode se ouvir.

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