Pássaros e serpentes e o espetáculo da vida nos Jogos Vorazes
Toda vida importa. O lema repetido como mantra recentemente para defender a vida das pessoas é algo que nos faz pensar o filme Jogos Vorazes: O cantiga dos pássaros e serpentes (2013, de Francis Lawrence), baseado no livro homônimo de Suzanne Collins (2020), ainda mais que é a vida que está em jogo neles. Fim e início dos Jogos Vorazes em sua espetacularidade, não dos jogos propriamente dito, que começaram bem antes, o filme é um alerta premente à utilização da guerra como espetáculo para uma violência sem limites, uma ultraviolência como diria o personagem do filme Laranja Mecânica (1971, de Stanley Kubrick) baseado no livro homônimo de de Anthony Burgess (1962). É a vida em sua ultraviolência que vemos na tela e como sua importância pode ser o fundamento dos jogos mais vorazes pela sobrevivência.
Pôr a vida em jogo se faz há muito tempo, desde que o ser humano se conhece como ser humano, uma animal dotado de habilidades, ou ainda, desde que existe, pois existir é já colocar a vida em jogo, é se arriscar perdê-la. Não perdemos a vida sem tê-la por algum momento, o mais breve possível, a vida em um sopro de vida. O menor sopro de vida é já uma vida, e também a perda dela quando se sopra sem se poder conter o sopro de vida, sem deixar que ela se perca num sopro.
Pôr a vida em jogo não é uma escolha, somos todos tributos em nossa existência, uns mais que outros em jogo, mas todos tributos, elegíveis para os jogos, mais ou menos vorazes. Antes mesmo de nascermos, nossa vida está em jogo e jogamos com a nossa própria vida, pondo-a cada vez mais em jogo em nossa existência pós-parto. Não importa a vida, o que importa é o que se faz dela. Este outro lema demonstra como a importância da vida não está em si mesma, mas em seu uso desde antes do nascimento e que, com a possibilidade desse, se torna cada vez mais importante em seu uso e não em si mesma. O que importa é utilizar a vida para alcançar seus objetivos ideológicos colocando-a em jogo cada vez mais voraz para defendê-la, não deixar morrer aquele que vive, não por que importe como ser vivo, mas porque sua vida importa para os jogos, para a espetaculização da vida neles.
É a vida, e não é a morte, que é espetacularizada nos Jogos Vorazes, percebemos isso principalmente em Jogos Vorazes: O cantiga dos pássaros e serpentes, e não apenas a vida dos que estão dentro da arena estão em jogo, a de todos estão: idealizadores, mentores, financiadores e telespectadores de toda Panem e também nós, telespectadores do espetáculo da vida na tela para além das telas de Panem, pois todos espectadores dos jogos vorazes e parte dele também torcendo para os tributos com os quais nos identificamos. É esta identificação com a vida que é o atrativo dos Jogos Vorazes, percebemos mais do que antes, do que nunca, diríamos, no último filme da série que desnuda toda a criação da espetacularização dos jogos, a violência nos seus mínimos detalhes, isto é, a ultraviolência, uma violência metodicamente pensada, uma tortura que não deixa o menor espaço para o seu fim. A violência sem fim não é uma violência que aumenta em sangue jorrado na tela, mas em detalhes que fazem da violência imperceptível, se alastrando por todo lado sem ser percebida, num crescente sinfônico, como a Bolero, de Ravel, suavemente como uma dança de salão aos pouco se tornando uma dança contemporânea, ampliando-se em ritmo, som, destruição, até vermos corpos desconstruídos em cena com movimentos que já não se consegue entender o motivo, se é que há um, como na vida, fazendo-nos olhar com mais atenção para eles.
É assim, com mais atenção, que olhamos para os Jogos Vorazes, quando a vida ganha importância e não a morte, quando a vida se coloca realmente em jogo tentando se livrar da morte. A morte não se espetaculariza, ela mesma não tem importância, é sempre banal. Morre-se todos os dias um pouco, mas não se vive do mesmo modo. Viver é escapar da morte todos os dias. É ao se perceber isso que os Jogos Vorazes ganham as telas e as pessoas se identificam com eles, pois sabem que a vida delas está em jogo, buscando escapar da morte também e o tributo que escapa é a ilusão de que também escapa, por um breve momento, do jogo de vida e morte em que também está cada um que assisti aos jogos. O jogo que vemos na tela é o da nossa própria vida e não queremos que pare até sairmos vencedores dele.
Se é a vida o espetáculo e não a morte é porque há uma luta pela vida, há uma violência necessária à sobrevivência. É esta violência que é o espetáculo propriamente dito da vida que motiva a audiência. A vida não tem significado algum sem a violência, sem uma luta por ela contra morte que também não tem significado algum sem a violência. A violência é o jogo de vida e morte do qual ninguém escapa, a começar pelos olhos atentos a menor violência, mesmo quando tudo está tranquilo, uma violência que salta aos olhos mesmo quando não se consegue vê-la esgueirando-se como uma serpente ou voando como um pássaro, não necessariamente uma águia, como a de Nietzsche, podendo ser um pequeno tordo a repetir tudo que lhe é dito.
O espetáculo da vida é a importância que damos a ela, uma importância que é utilizada contra a própria vida. É porque a vida é importante que é retirada de si em violência. Se a violência é um ato de penetrar o corpo do outro fazendo-o sofrer, sangrando ou não, é também um ato de retirar, no caso, a própria vida do outro, de qualquer modo fazendo a vida se esvair de si, seja fazendo-o sangrar, chorar ou vegetar, perder a consciência de si, isto é, de sua vida, de tal modo que o sacrifício de tirar o coração de outro é ato mais representativo disso. O que se quer, neste caso, não é matar o outro, é retirar do outro sua vida, de tal modo que a morte não importa, apenas a vida. O corpo morto no chão não tem importância, o que importa é como ele morreu, a violência não vista, o espetáculo dela, o jogo entre a vida e a morte como o mais importante de se ver, a luta da vida pela vida.
É a vida que luta pela vida nos Jogos Vorazes. Uma vida que luta para não ser tirada de si, para que a violência não se realize em si, mas que para que isso não aconteça é preciso que a vida violente outro. A luta da vida pela vida sem violência é impossível neste sentido, não importa o quanto se fuja dela. Os espectadores não estão livres da violência mesmo protegidos por grades ou telas, eles são parte dela, pois a violência dos Jogos Vorazes salta aos olhos em chamas, não há esperança. A cantiga dos pássaros e serpentes é a da violência. Ser pássaro ou serpente pouco importa, isso apenas quer dizer que a violência tanto está sob nós como acima de nós, não podemos escapar dela.
Longe de ser uma análise pessimista da vida, no caso, de uma vida sem graça sem qualquer possibilidade de beatificação, ao contrário da vida em beatitude e graça que muitos esperam, os Jogos Vorazes demonstram como uma luta da vida pela vida é uma luta pela morte do outro, uma violência ao outro que se justifica pela violência a si, o legítimo direito de violentar. É este direito que até então não havia sido conseguido pelos idealizadores dos Jogos Vorazes, pois a morte por si só de tributos como punição pela guerra não é suficiente para legitimar a violência, algo que Hobbes pensou a partir de um Estado absolutista, mas que somente se realiza num Estado propriamente democrático. É na democracia e não num Estado absolutista, fascista ou mesmo ditatorial que a violência mais se expressa, cotidianamente, quando se faz com que a violência numa arena se torne um espetáculo. Obviamente, a violência num Estado absolutista, fascista, ditatorial é maior, mas apenas para algumas pessoas, não para todo um povo ou vários povos, e é justamente a violência a todos que num Estado democrático que a violência se expressa, particularmente naqueles que dizem defendê-las, os policiais.
O Estado democrático não é um Estado violento como o absolutista, fascista e ditatorial, a violência não se expressa nele à luz do dia, mas na tela, amenizada como espetáculo cotidiano. A luta da vida pela vida nele é legítima, legalizada, defendida, como nos Jogos Vorazes. Se há ainda uma esperança de que a luta da vida pela vida é a luta contra um Estado absolutista, fascista e ditatorial, como dá a entender Jogos Vorazes: a Esperança, isso é senão uma ilusão da qual Katniss já nos adverte no fim deste. A luta da vida pela vida não é porque o Estado a quer lhe tirar de si como um tributo que tira de um dos distritos. O tributo é apenas um exemplo do que o Estado pode fazer com todo o povo, um medo incutido pelo Estado absolutista, fascista e ditatorial em busca da legitimação de sua violência, mas que ele não consegue a não ser espetacularizando a violência, fazendo-a atrativa para as pessoas, atraindo as pessoas para a violência, queimando pessoas em praça pública ou fazendo-as degladiar-se em arenas. A violência legítima não está, porém, no espetáculo da violência da tela, mas na própria vida e a violência na tela é aqui apenas o meio para se chegar a uma violência maior, uma violência democrática, a violência de todos contra todos que Hobbes imaginou e contra a qual defendeu seu Estado absolutista, acreditando que este seria a solução, fazendo da violência de todos contra todos a violência de um só contra todos, a violência de um golpe só, uma violência divina contra uma violência humana, como Walter Benjamin pensa muito tempo depois em seu texto Crítica da violência/poder.
Se a solução de Hobbes não foi aceita politicamente não foi porque estivesse errado totalmente, mas por ter pensado que o rei devia ser este um só, o Estado, e não o povo, democraticamente. Sua solução se tornou acertada, porém, quando houve a mudança naquele que diz "O Estado sou eu", no caso, do rei para o povo, particularmente na França, e não na Europa, quando o Terror, a violência não legítima do rei contra o povo matando pessoas em praça pública passou a ser legítima com o Estado democrático fazendo exatamente o mesmo, mas não sob a vontade um, mas de muitos que dizem "bandido bom é bandido morto", e já não se pode mais evitar a violência na sociedade, pois é a própria sociedade que é violenta, todos e não um só, o rei.
Pensar que a democracia é o melhor governo e, por este pensamento, a violência não é mais permitida nela, é acreditar na cantiga dos pássaros, acreditando que não violentam ninguém com ela. A cantiga dos pássaros é tão sinuosa como o esgueirar da serpente escondendo a violência por vir. Se é na democracia que toda vida importa é por ser tão importante a vida nela que a vida é utilizada para legitimar a própria violência contra a vida, em que a violência de uma luta pela vida se torna legítima, em que qualquer um matar o outro é legítimo, que a violência de uma vida lutando pela vida se torna desejável de ser vista como um espetáculo.
Já não há mais limite para a violência na democracia quando o Estado espetaculariza a violência em seu cacetete e na arma do policial apontando-os para cada cidadão, quando o Estado mata todo um povo em legítima defesa de si e esta legítima defesa de si não é a defesa de alguém que o representa, um rei ou um führer, mas todo um povo que defende a violência contra si mesmo. Engana-se quem pensa que os Jogos Vorazes são para por fim a uma guerra, punindo quem participou dela, pois eles são realizados para uma continuação da guerra, para que a guerra se mantenha viva, para que a vida se mantenha em luta pela vida, para que a vida continue lutando pela vida, para que legitime a luta pela vida, faça da violência do cacetete ou de uma arma algo legítimo, para que a violência, enfim, não tenha fim, que os jogos nunca terminem, que a vida nunca deixe de se colocar em jogo, que os jogos vorazes seja a própria vida em luta por si mesma, todos os dias.
O espetáculo da vida nos Jogos Vorazes é a morte do outro por uma violência legitimada por todos, pois se toda vida importa na democracia, nenhuma importa mais que a sua. É por amor à vida, a nossa própria vida, que nos destruímos, que o que mais amamos que nos destrói.
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