O pequeno milagre
O filósofo Paul Ricoeur chama o reconhecimento de "pequeno milagre da memória feliz". Este reconhecimento é, propriamente, a lembrança de algo tão comum em nossa vida cotidiana, mas que filosoficamente se torna algo bastante complicado, como tudo para os filósofos, estes seres que complicam tudo na vida, para os quais a vida é uma grande complicação, complicatio diriam alguns filósofos, buscando no latim uma melhor expressão para suas complicações, quando não as buscam nos gregos. Felizmente, há este pequeno milagre da memória feliz para lembrar que as coisas podem ser simples, muito simples na qual também os filósofos se demoram tanto, buscando uma simplicidade na vida, para a vida cotidiana, em meio a tantas complicações que eles não produziram, pelo menos não totalmente.
Ao pararmos para pensar um pouco neste pequeno milagre do qual depende a memória feliz que é o reconhecimento, podemos perceber que a vida pode se resumir nele em cada estágio dela desde seu nascimento, tanto para nós, seres humanos, quanto para todos seres vivos (incluindo as pedras? Sim, se forem vivas.). Nietzsche disse que a natureza criou o ser humano como um ser de promessa, capaz de prometer, o que quer dizer em outras palavras, de lembrar, pois, no ato de lembrar somos fiéis a algo, o que é lembrado. Pode-se ver nisso uma grande questão existencial relacionada a algo transcendente, a um deus ao qual se é fiel, mas esta capacidade de promessa, de lembrar, é algo natural, que a natureza nos dá. Por quê? Porque sem isso não sobrevivemos e, lembremos, tudo na natureza é uma questão de sobrevivência e, como nos lembra Paul Ricoeur a partir de Bergson, o reconhecimento depende da sobrevivência da lembrança pura numa imagem virtual de modo inconsciente, sem que percebamos, independente de que algo nos faça lembrar conscientemente. Em outras palavras, quando vemos algo que nos lembra algo é porque algo já se tornou uma lembrança para nós, algo externo a nós que nos afetou de algum modo. O que lembramos de modo consciente quando dizemos lembro é a repetição da afecção que se tornou uma lembrança para nós e nem mesmo sabÃamos disso, mas acabamos sabendo ao nos lembrar.
O reconhecimento é lembrar a lembrança, algo que "conheceu" por simplesmente ser afetado por algo. Quando nascemos somos afetados por pais e mães que olham constantemente para nós com aquela cara de bobo que só muito tempo depois vamos saber que é de "bobo" e que são de nossos "pais" e "mães", ou só de "pais" ou só de "mães", dependendo da situação, mas sempre de bobos, e que ficam mais bobos ainda quando reconhecemos que eles são nossos "pais" e "mães" e dizemos "papai", "mamãe", mas não quando reconhecemos que eles são "bobos". Pois, neste caso, ficam com raiva... A cara de bobo desaparece e passamos a ser afetados pela aquela cara de pai e de mãe que todos reconhecem quando olham de longe para os filhos e que são como gritos de pinguins que cada filhote reconhece e volta logo para debaixo da asa, isto é, a cara de volte para casa já!
São fatos bobos como este que constituem a memória feliz para Paul Ricoeur, mesmo que as afecções sejam de alegria ou tristeza, de amor ou de raiva. Cada fato bobo na nossa vida se torna um acontecimento para nós, mesmo que não percebamos isso, bem como para outros, quando os afetamos. O reconhecimento é o acontecimento de algo que, para ser algo, é preciso ser lembrado como tal, isto é, lembrado como um fato. É fato tudo que nos afeta, mas nem todo fato é um acontecimento, pois precisamos lembrar dele. Assim é que se diz jocosamente que se não lembro, não aconteceu.
Nem tudo é acontecimento para nós porque nem tudo é lembrado por nós, nem tudo é reconhecido. Não é todo dia, toda hora, todo instante que há o pequeno milagre da memória feliz. Não que a memória seja falha, mas porque há obstáculos para lembrarmos de algo que nos afeta e, muitas vezes, que nem sabemos que nos afeta, e só sabemos que nos afeta quando lembramos ou algo nos faz lembrar. Tudo em nossa volta nos afeta desde o nascimento, pois o corpo é uma máquina de afetos, isto é, uma máquina produzida para ser afetada e, muitas vezes, entrar em crise por não suportar tantos afetos. O corpo não é nada sem afetos, vive de afetos, e por isso, sim, as pedras podem ser consideradas seres vivos, pois, como todos os seres vivos, elas são afetadas, algo acontece a elas, mesmo sem perceber, assim como a nós, que não percebemos 99% dos que nos afeta no cotidiano, ou ainda, que o corpo não deixa que nos afete ao ponto de nos destruir. (E o 1%? É aquele vagabundo que não faz nada e, quando percebemos, lembramos que ficamos mal e reclamamos do maldito corpo que trabalha 99% para nos manter saudáveis e não reconhecemos seu trabalho.)
Se o corpo neutraliza 99% do que nos afeta, isso não quer dizer que estamos imunes ao que nos afeta. O corpo absorve como uma esponja os afetos ou as lembranças-imagens das afecções de tudo em nossa volta. O corpo conhece tudo antes de nós, mesmo que não reconheçamos, ou somente reconheçamos depois, muito tempo depois dizendo que é por causa da alma, do espÃrito, de um espÃrito divino que conhecemos (o pequeno milagre). O conhecimento é um reconhecimento, disse Platão há muito tempo com uma vaga Ideia do que era o conhecimento, negando que o corpo conhece. Paul Ricoeur retoma a Ideia de Platão e dá a ela uma nova concepção, a de rastro psÃquico que é, de certo modo, o que Bergson chama de lembrança pura numa imagem, excluindo também o conhecimento do corpo que é propriamente o conhecimento cientÃfico. Neste sentido, uma coisa é termos ciência, este conhecimento das afecções do corpo e dos afetos nele, dos rastros corticais, neuronais, mnésicos, como chama Ricoeur os afetos no corpo, isto é, termos o conhecimento dos fatos ou do que causa algo em nós. Outra coisa é termos consciência disso, pois esta só vem com a lembrança, o reconhecimento de que algo aconteceu, algumas vezes com tristeza, outras com alegria.
Se o conhecimento é algo profundo que se faz nos confins da memória quando algo nos afeta e se torna uma lembrança-imagem que desconhecemos, é somente no reconhecimento desta lembrança-imagem, quando pensamos nela que há uma consciência do que aconteceu de fato, e isto é que é chamado propriamente de conhecimento, ou ainda, de conhecimento verdadeiro, um conhecimento da Ideia, enfim, de conhecimento filosófico, quando reconhecemos o que aconteceu não apenas de fato, como na ciência, mas de verdade. Isso não quer dizer que a ciência ou o que o conhecimento cientÃfico, do corpo, não é de verdade, ou seja, que é de mentira, um erro, um engano, um falso conhecimento, uma opinião, como dizia Platão, quer dizer que não chegamos ao fato de verdade, que o fato não foi conhecido como tal ainda, isto é, não é para nós um acontecimento, é apenas um fato. O que nos deixa alegre ou triste é um fato. Mas isso não quer dizer que seja um acontecimento para nós, algo que vamos lembrar. Só é conhecimento, diria Platão, aquilo que conseguimos lembrar, ou ainda, só é algo importante para nós aquilo que lembramos, em outras palavras, é ao lembrar que sabemos o que de fato é verdade para nós, pois o que é esquecido não importa.
O pequeno milagre da memória é nos fazer lembrar o que é importante, o que é verdadeiramente importante em nossa vida, algo que acontece nela e não conseguimos esquecer. Não que muitas coisas não importem para nós ou não são verdade de fato, como o fato de reconhecer um A na lousa para uma criança que começa a aprender a ler e fica feliz com isso, mas não importa para nós. A felicidade não é reconhecer o A, é que o A é a coisa mais importante para ela naquele momento da vida. A... Pelo menos até surgir o B, C, D... E a felicidade se tornar cada vez mais difÃcil de se conseguir, os pequenos milagres do reconhecimento não sendo suficiente para fazer uma memória feliz, e a memória se torna muitas vezes infeliz com tantas lembranças.
O pequeno milagre do reconhecimento é, na profundeza do nosso ser, o que torna uma memória feliz, mas a felicidade de uma memória não depende apenas do reconhecimento. Lembrar algo nos deixa infeliz e é preciso que lembremos disso também. O esquecimento não é uma disfunção como pensam os cientistas, quando os fatos não são lembrados, quando o "pai" e a "mãe" não são reconhecidos por um filho autista ou quando os "filhos" não são reconhecidos por um pai e mãe com Alzheimer. Tão pouco é é o que torna possÃvel uma memória feliz histórica como um reservatório de lembranças que a memória disponibiliza quando há uma desatenção com a vida, em geral, na velhice à s vésperas da morte, ou algo problemático de modo polÃtico quando há uma anistia e crimes são esquecidos. O esquecimento é a lembrança de que o pequeno milagre do reconhecimento é algo problemático e que não podemos esquecer de esquecer...
Se há uma memória feliz é porque o esquecimento faz esquecer o que a deixa infeliz. É o esquecimento que dá felicidade à memória quando os fatos são esquecidos por nos trazerem tristeza e não alegria. Se o esquecimento é um tornar distante os fatos ao ponto de serem esquecidos é porque não devemos lembrar deles, porque lembrar nos deixa triste, a memória feliz do pequeno milagre do reconhecimento nos faz infelizes. Se, na velhice, às vésperas da morte, há uma melancolia quando lembramos de tudo que aconteceu em nossa vida, não de todos os fatos que aconteceu nela, acontecimentos que muitas vezes criamos juntando fatos novos a antigos, ou mesmo criando fatos que nunca existiram, e ficamos alegres mesmo que estes acontecimentos sejam tristes, choramos de alegria, a felicidade não está na lembrança, mas no quão distante estamos dos fatos que lembramos, do que nos afeta, e já não nos atinge mais do que antes, porque o esquecimento produziu esta distância, nos distanciou dos afetos tristes, assim como o corpo de tudo que nos quer destruir. O esquecimento é esta parte do corpo que age para ficarmos alegres, mesmo com toda a tristeza que nos envolve, nos afeta, quer nos destruir. Não é uma erva daninha, é uma erva medicinal que nos faz saudável para sobrevivermos mais um pouco na vida.
Se a natureza nos fez seres dotados de promessas, seres que fazem promessa por tudo e qualquer coisa, e para todos, principalmente a deuses, buscando um pequeno milagre, buscando um reconhecimento na vida, da sua vida, lembrar de tudo e de todos para se sentir bem, a natureza nos fez também dotados do esquecimento de promessas para que não sejamos infelizes com tantas promessas que fazemos e as preocupações que geram em nós. Prometa!, dizem pais e mães a filhos e estes aqueles futuramente, fazendo da promessa tudo em suas vidas, sua cultura, uma vida de fidelidades, e quando dizem Esqueça! já não é mais possÃvel esquecer, a tristeza por sempre lembrar já tomou de conta, a cultura da lembrança invadiu sua vida e já não é mais possÃvel ficar indiferente ao som e luz do celular lembrando que deve lembrar de mais uma coisa que não pode esquecer.
Se o esquecimento é um problema para o pequeno milagre da memória feliz, se reconhecer é de fato importante em nossa vida, e estamos condicionados a isto neurologicamente, se o dever de memória é a lei da sobrevivência sem o qual toda a vida deixa de existir, por sermos incapazes de viver sem lembrar minimamente de algo, o esquecimento deixa de ser um problema quando a sobrevivência se torna complicada demais, quando só pensamos em sobreviver, quando tudo que fazemos em nosso pensamento é lembrar, quando nada é esquecido. Se o esquecimento é este momento em que as lembranças dão uma pausa, paramos de lembrar, em que a atenção à vida é deixada de lado, e, por um lado, nos perdemos na memória, nas lembranças, não é porque devemos lembrar de uma vida passada, como se o esquecimento só existisse para podermos lembrar, é porque devemos já não lembrar, mas mesmo assim lembramos...
Não é o passado em geral que retorna com as lembranças da memória, mas o presente em seu cÃrculo ininterrupto de atenção à vida, de preocupação, de uma consciência de tudo que está em volta vigilante. Só há passado no esquecimento. O passado que não é esquecido, que é lembrado, é já presente. Mesmo que seja passado, não passou, ainda está presente. Bergson e Paul Ricoeur estão certos nesta existência do passado no presente, mas não que a lembrança pura, o pequeno milagre de uma memória feliz seja o passado propriamente dito, pois este só é passado se for esquecido. O passado é o esquecimento. O que não conseguimos esquecer é a lembrança do passado, daquilo que foi esquecido e não queremos que seja esquecido, não seja realmente passado, queremos que seja presente, nem que seja por um pequeno milagre da memória feliz.
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