Então, é Natal...
Então, é Natal... E a sensação é de esgotamento, de espera pelo fim do ano, uma espera angustiante para que tudo termine, de que não conseguimos aguentar mais. Não quer dizer que não temos o que comemorar, mas o quanto esta comemoração é custosa para nós por tudo que aconteceu. Ao olharmos para o passado, um peso sobressai mesmo com alegrias. A sensação é de que ainda não acabou, de que ainda vivemos sobrecarregados por tudo que assola nossa existência para além de todas as máscaras e mascaramentos dela com os enfeites natalinos.
Chegamos ao fim, mas o fim não chegou até nós ainda. Ainda é Natal, e não o Ano Novo. Em momentos de esgotamento, de escoamento de forças, o fim se torna mais desejado, o fim é o desejo, o que falta, um desejo improdutivo, um desejo tão somente consumista, solitário e não comunista de produção em comum. Deseja-se consumir aquilo que falta, possuir o objeto do desejo, realizar de modo objetivo o desejo em algo no qual o desejo se expresse, pois é o desejo que falta, como diria Platão. No momento do Natal, é este desejo que falta que se confunde com o desejo pelo que falta, o desejo de uma incompletude em nossa vida, de que falta algo em nossa existência.
Em geral, não pensamos no que nos falta senão de modo consumista. Olhamos para a geladeira, para o armário, para o guarda-roupa, para a estante, para o banheiro, para o quarto, para a sala, para o escritório e pensamos: Não tem nada! Está faltando isso, aquilo, aquilo outro. O niilismo se apodera de nós ao olharmos para as coisas que falta em nossa casa, depois em nossa vida, por fim, em nossa existência. É a partir deste niilismo que se funda e fundamenta o desejo neste sentido platônico, de que nos falta algo e que, o que nos falta, é o que desejamos, mas também se funda e fundamenta nosso consumismo cotidiano que, nesta época natalina, aflora em relação a tudo. Desejamos tudo em todos os lugares, todas as vitrines, numa loja, tudo para suprir uma ausência, o nada que assola nossa existência.
O capitalismo, economicamente, é o resultado do desejo niilista que se impõe sobre nós neste momento em que tudo nos falta, principalmente forças, em que todas as forças são retiradas de nossa existência. É o momento em que o empresário, o patrão chega para o trabalhador e diz as palavras mágicas: Eu compro sua força por esta miséria de salário. O desejo improdutivo torna-se, então, produtivo. O resto de força vale alguma coisa. O esgotamento vale algo. O desejo pelo fim é transformado pelo desejo de trabalhar para, no fim, consumir o que deseja, aquilo que lhe falta, o que faltava antes do capitalismo e que falta, com ele, ainda mais, pois tudo que produz e consome não supre o que falta à sua existência.
Tudo que se deseja diante do esgotamento de suas forças é que este esgotamento acabe. Não se deseja que as forças acabem, mas o esgotamento delas. Deseja-se viver, perseverar na vida. O trabalho é o meio para isso: fazer do desejo pelo que falta algo produtivo, produzir o que falta, o que deseja, já que não o tem. O trabalho é o meio de produzir aquilo que se deseja consumir, mas não tem, não é encontrado na natureza, não lhe é dado na sociedade. O trabalho é o que humaniza o homem, ou ainda, o dignifica, dizem, mas a humanidade que surge a partir deste trabalho pelo que falta, a partir da falta, do desejo de que algo falta em sua vida, um trabalho de luto, diria Freud, é uma humanidade consumista, em que o homem deseja consumir o que falta, pôr um fim à falta que, por outro lado, lhe consome, lhe angustia, lhe destrói por dentro.
No fim, é a própria humanidade e dignidade que falta ao homem, aquilo que o homem deseja, mas não tem, e busca suprir esta ausência com o trabalho, pois o trabalho lhe dá o que lhe falta. O quê? Tudo. O trabalho se torna tudo para o homem porque tudo falta a ele. A necessidade não é, neste caso, uma lei, o que quer dizer, uma obrigação, é uma carência. A necessidade é o desejo enquanto necessidade de algo. Trabalho, trabalho, trabalho... Trabalhe para conseguir o que deseja, diz o capitalista, aquele que não precisa trabalhar, que apenas consome o produto do trabalho dos outros retirando do trabalho sua plenitude na forma de lucro.
O lucro, o desejo do capitalista, não do trabalhador, é a carência produzida no próprio trabalho para que o trabalho nunca falte para o capitalista, para que o trabalho nunca humanize ou dignifique o homem verdadeiramente, para que o trabalho nunca dê ao homem o que ele deseja, para que sempre lhe falte algo, mesmo trabalhando para não lhe faltar nada. O lucro não é um acréscimo ao valor do trabalho, uma mais-valia, e, sim, uma menos-valia, pois, com ele, o trabalho e o resultado do trabalho valem menos para o homem que trabalha, pois o que é pago a mais com o lucro pelo produto consumido foi retirado do seu trabalho, o valor real dele. O preço do produto não é o preço do trabalho para produzi-lo. Há um acréscimo, mas este acréscimo não é produzido pelo trabalho, tão pouco pelos meios de produção, muito menos em alguns casos, em relação à matéria-prima que, no agronegócio, muitas vezes é roubada por meio de latrocínio de terras indígenas e do roubo do futuro da existência humana com o roubo de florestas inteiras para pasto, para mineração, e destruição do planeta.
O acréscimo ao valor do trabalho, o lucro, é o valor da humanidade e da dignidade do trabalho que o homem teria pelo trabalho, ao consumir o produto que produziu, mas que lhe é retirado no momento em que o empresário define o seu lucro, a sua parte, o que lhe falta, o seu desejo. O trabalhador não consome deste modo aquilo que lhe falta sem este acréscimo, o que quer dizer que ele deve trabalhar mais e mais para ter o que deseja, o que lhe falta, que é desviado, roubado mesmo de si pelo empresário, o patrão capitalista. O trabalho que deveria suprir a sua falta, seu desejo, não supre. Sua existência continua vazia e esvaziando, esgotando-se em força, pois todo trabalho que lhe é dado com uma mão é retirado com a outra mão, a mão invisível do empresário que lhe tira o que produz e só o dá em troca de um valor a mais por ele, o que quer dizer, um valor a menos pelo trabalho que pagou ao trabalhador. O valor que o trabalhador recebe pelo seu trabalho nunca é o que deveria receber a levar em conta o preço pelo qual o produto foi vendido e o trabalhador que deveria ganhar mais pelo que produziu ganha menos pelo que produziu, pois há uma margem de lucro que retira de si a plenitude do trabalho, o a mais que ele buscou nele, o desejo de vida lhe falta e pensava suprir com o trabalho.
No fim, o trabalho que se tem para suprir o que falta, para ter o que deseja, para suprir o esgotamento da vida e de todas as suas forças, para adiar o fim delas, é o que leva ainda mais a este esgotamento, por se ver que apesar de todo o trabalho não se tem o que se deseja, o que falta. O que resta é a dívida, a carência produzida pelo empresário no momento em que paga pelo trabalho do homem. A dívida é o lucro acrescido ao trabalho, pois é ele que endivida o trabalhador, que retira do seu trabalho a equivalência entre o que produz e o que consome. O trabalho que se tem para produzir não é equivalente ao valor do que se deseja consumir, logo, para se ter o que deseja, é preciso trabalhar mais, ou seja, há uma dívida de trabalho, não se trabalhou o suficiente para ter o que deseja, diz o empresário do alto de sua meritocracia. Está faltando algo para chegar ao valor do que deseja consumir.
A dívida é a escravidão pelo trabalho instituída pelo empresário capitalista no momento em que ele dá trabalho para aquele que não encontra trabalho em lugar algum. O trabalho endivida o trabalhador economicamente, tendo que trabalhar sempre mais para ter o que deseja, mas também socialmente, por fazer do trabalhador ficar em dívida pelo trabalho que, para o trabalhador, foi dado, e não trocado como realmente é de fato. O trabalhador pensa que o trabalho não é seu no momento em que o empresário diz que está lhe dando um trabalho, mesmo que seja o trabalhador que realiza o trabalho pelo qual o empresário está pagando. Para o trabalhador, não há venda do trabalho, pois o trabalho foi dado a ele pelo empresário, é o trabalhador que está pagando pelo trabalho, isto é, dando em troca o que foi recebido, o trabalho. Ele me deu trabalho, então, vou trabalhar para ele. - Pensa o trabalhador tornando-se deste modo escravo do trabalho, escravo por obrigação de trabalhar pelo preço que for, pois o empresário, seu patrão, lhe deu o trabalho e não pode deixar de retribuir o que lhe foi dado, deve trabalhar com todas as suas forças até seu esgotamento de forças, até o fim da vida...
Trabalhar mais para ter um Feliz Natal! é o que o trabalhador faz todos os anos, esgotando sua vida, muitas vezes passando semanas, meses, longe de quem ama, mesmo morando junto, chegando esgotado em casa querendo apenas dormir. O trabalho não dignifica o homem, não lhe dá humanidade, retira dele toda dignidade e humanidade, pois afasta da convivência com quem ama e que lhe faz feliz. Em troca desta felicidade de estar junto de quem ama mais tempos durante o ano, os presentes de Natal para suprir a ausência em relação a quem ama, por estar distante, trabalhando, por não ter tempo para sair, senão correndo para descansar e ir trabalhar novamente, quando não faz da própria diversão um trabalho, um ócio produtivo, e se divertir se torna se cansar até a exaustão de todas as suas forças. Diversão, no fim, que é só trabalho, ou mais trabalho.
Então, é Natal... Este desejo de comunhão que temos nesta época do ano é por não a termos durante todo o ano de trabalho em que esgotamos nossa vida pouco a pouco pelo que desejamos, o desejo da própria vida, não uma vida sem trabalho, mas uma vida em que o trabalho nos dê de fato o que desejamos, e não apenas parte do que desejamos, em parcelamentos que nos endividam mais ainda, que é mais uma forma dos empresários nos endividarem para que trabalhemos mais para eles, estarmos em dívida com eles por toda a vida. Não é o trabalho que nos dignifica ou nos torna humano, pois nunca temos realmente este trabalho, ele está sempre em falta, não é nosso, trabalhamos pelo trabalho, para ter trabalho, um trabalho que nos foi dado e pode ser retirado, como diz o empresário, querendo fazer crer que o trabalho foi realmente dado a nós, que pertence a ele, ao empresário, que é o empresário que tem o trabalho, que é ele que trabalha e não o trabalhador. O empresário tira do homem até mesmo a sua definição como trabalhador. Mesmo trabalhando o homem não é trabalhador, não é quem trabalha, é o empresário. O homem que trabalha é um mendigo ao qual o empresário dá uma esmola, isto é, uma miséria, como resultado do trabalho do empresário, que o realiza com sua mão invisível. Não é a mão visivelmente calejada ou visivelmente hábil do trabalhador que realiza o trabalho, é a mão invisível do empresário que realiza o trabalho impondo um lucro, uma menos valia ao valor do trabalho, ao valor do que é produzido pelo trabalho, e também do trabalhador, dando menos valor ao trabalhador até que não tenha nada como antes de lhe ser dado um trabalho.
O trabalho não humaniza e não dignifica o homem, muito menos a mulher, que desde o princípio dos tempos cristãos, mas também não cristãos, é alienada do trabalho, não trabalha, não deve trabalhar, não nasceu para o trabalho, e, deste modo, foi desumanizada, retirada de si toda dignidade do trabalho desde o princípio dos tempos cristãos e não cristãos. O homem empresário cristão, aquele que dá trabalho aos sem-trabalho, isto é, aos pobres com sua benevolência, princialmente na época do Natal quando falta trabalho para o empresário, diz então à mulher: Você não trabalha!, retirando dela qualquer possibilidade de humanidade e dignidade pelo trabalho. E se trabalhar, isto é, quiser ter alguma humanidade e dignidade, deve trabalhar por menos do que um homem ganha. Em outras, palavras, se o homem ganha uma miséria, a mulher deve ganhar menos ainda, o que quer dizer, ser ainda mais miserável do que ele, ter menos ainda o que deseja a partir do trabalho. Para a mulher, o trabalho é sempre em dobro, bem como a dívida, a obrigação, o desejo que se duplica numa falta abissal, numa profunda ausência de existência. A mulher não existe para o trabalho e, deste modo, não existe uma mulheridade assim como uma humanidade, e mesmo que esta mulheridade exista a partir do trabalho é a ausência de uma humanidade dada ao homem pelo trabalho, é uma humanidade a menos pelo trabalho, a menos por desejar ter filhos, ficar em casa para ter filhos ou por não os ter sentindo dores menstruais, por ter uma existência menor do que a do homem. Se o trabalho não humaniza e dignifica o homem, há menos humanidade e dignidade para a mulher a partir dele.
Pensar uma humanidade e dignidade do homem ou mulheridade e dignidade da mulher a partir do trabalho é o que leva ao esgotamento de suas forças. É dizer que homens e mulheres se resumem ao trabalho, mais ainda, a um gênero de trabalho, dizer que somente são o que são, isto é, homem e mulher pelo trabalho que podem realizar. Que suas existências são apenas pelo trabalho e para o trabalho, e, consequentemente, para o consumo do trabalho, com todo o desvalor produzido em relação ao trabalho deles pelo lucro capitalista. Homens e mulheres deixam de existir para si, individualmente, e entre si, homens para homens, homens para mulheres, mulheres para homens, mulheres para mulheres, e mesmo sem se definirem como homens ou mulheres pelo trabalho, por um natureza ou por uma divindade.
Homens e mulheres já não suportam mais sua existência para e pelo trabalho. Não aguentam mais existir pelo e para o trabalho. O trabalho retira de si o que são, o que desejam ser. É um desejo de ser que falta, que um ser homem ou mulher não realizam mais. O desejo de ser é o desejo de um ser que falta e não pode ser consumido pelo trabalho, apenas se ter em companhia, o desejo de um ser que não é si mesmo e, sim, outro. Outro ser que não é si mesmo, nunca será si mesmo. No fim, desejo de não ser quem é, desejo de ser outro que quer dizer de estar com outro, pois não se pode ser outro realmente, apenas estar com outro, temporariamente.
Estar com outro, este outro que se deseja ser, se deseja em companhia, é o que faz existir, continuar existindo, perseverar na existência. É para o outro, pelo outro que existimos, mesmo que este outro não exista, não exista ainda, não exista mais, isto é, não exista no tempo e pelo tempo de nossa existência, que o outro nos falte, mas não seu desejo. O desejo deste ser outro nunca falta, nunca se confunde com a falta, pois nunca está ausente. O desejo de ser outro, de estar com outro, é o que nunca nos falta, que não é produzido nem consumido pelo trabalho, realizado por ele, é o que ninguém pode nos dar, nem nos tirar, nem tão pouco temos de retribuir, pois é nosso, nosso desejo mesmo de ser, de existir, com outro, ser outro com outro.
É com outro que nos tornamos outro. É com outro que podemos ser outro, o que não podemos ser por nós mesmos, nem por todo trabalho do mundo. É com outro que somos felizes por sermos outro. Não ser mais o que somos em todo nosso esgotamento de existência que já não suportamos mais e que buscamos comprar nos shoppings e não encontramos, nunca encontraremos. O presente de Natal é o nosso desejo de estar com outro, de ser outro nesta época em que não aguentamos mais ser o que somos, em que todas as forças de nossa existência se exaurem, mas não para o outro, pelo outro. É ser presente ao outro, estar em presença do outro, em presença para o outro, que faz um Feliz Natal!
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