Feitos um para o outro
É emblemático que tenha sido o comediante Aristófanes no diálogo Banquete, de Platão, a dar a definição mais repetida de todos os tempos para o amor, a de duas pessoas que foram feitas uma para a outra, pois são, segundo ele, a metade de um único ser dividido ao meio, assim como supõe o subtÃtulo do filme Harry & Sally: feitos um para o outro (1989), de Rob Reiner, um clássico filme de comédia romântica. Emblemático porque foi senão ele que criou com esta fala o gênero "comédia romântica", a pensar que não importa onde estejam as duas metades deste único ser, ela existe, em algum lugar, ainda que nunca seja encontrada, mas esperamos ansiosamente que se encontrem.
Comédia e amor andam juntas desde então e não poderia ser de outro modo. Afinal, é impossÃvel conter o riso e o sorriso ao mais breve olhar, não conseguir desviar os olhos e continuar rindo e sorrindo diante de quem ama. Obviamente, um relacionamento amoroso não quer dizer apenas alegria, risos e sorrisos, há também muita raiva, tristeza, decepção, mágoa, ressentimentos que duram horas, dias, semanas que acabam com a alegria do relacionamento e, com ela, o amor. Em outras palavras, ou o amor é uma comédia, ou ele deixa de existir.
Há muito tempo os filósofos se perguntam o que é o amor? E as respostas variam ao longo do tempo assim como também variam os amores. Desde a Ideia platônica de um amor de duas metades de um ser que não importa o quão distante estejam e quanto tempo passe ainda vão se amar até o Ideal romântico alemão de um amor excessivo, que é tóxico hoje em dia, busca-se definir o amor. Não é uma pergunta fácil de ser respondida haja vista que o amor é algo que varia não apenas no espaço e tempo, mas também em cada cultura, gênero, sexualidade e individualidade. Além disso, cada pessoa tem o seu próprio tempo, por assim dizer, aquele tempo subjetivo em que se questiona se ama ou não ama alguém que pode levar horas, dias, semanas, meses, anos ou apenas alguns segundos, num amor à primeira vista.
A questão filosófica sobre o amor, porém, parece mal colocada, pois não é o que é o amor o que importa, mas quem amamos, ou ainda, quando, onde, por que amamos alguém. Ao nos pensarmos segundo o Aristófanes que um ser foi dividido em dois necessariamente para que surgisse o amor, não é possÃvel pensar no que é amor sem pensar naqueles que se amam. Não é, em outras palavras, de um amor que se trata, mas de dois, no mÃnimo, no caso, de duas pessoas que amam uma a outra e não sabem por que e buscam saber isso, isto é, que foram feitas uma para outra.
Partindo, então, das perguntas que reformulam a questão do amor, interessa menos saber o que é o amor, do que saber por que amamos alguém em determinado espaço e tempo do jeito que é de tal modo que pensamos que fomos feitos um para o outro. Não qualquer alguém, mas alguém determinado, pois nunca se ama genericamente, somente particularmente, ainda que se possa dizer que ama os animais ou a humanidade. Tal amor pela humanidade e por animais, por mais que existente, não é o amor que cada um busca no seu quarto solitário, não importa que animal esteja ao seu lado ou o quanto ame a humanidade. Se não há alguém que o ame, pouco importam os animais ou a humanidade, o que não quer dizer que não se possa ser feliz sozinho com seu animal de estimação e sua amada humanidade, contrariando o que o romântico João Gilberto diz.
Em cada filme de comédia romântica como Harry & Sally, sabemos que há o amor de uma pessoa por outra que se manifesta em determinados momentos e lugares, em olhares, conversas e, quando os personagens parecem refletir se amam ou não um ao outro, são as diversas situações juntos que os fazem se decidirem que amam. Não estão preocupados em dizer o que é o amor para si ou para o outro, mas por que amam um ao outro, dirimir todas as dúvidas que os impedem de chegar à decisão e, por mais que idealizem um amor, aqueles a quem amam não são o que idealizam. E muitas vezes são totalmente diferentes de si, o que leva a se pensa que é oposto o que amam que, no caso, não é oposto realmente, é apenas a metade que combina consigo segundo a divisão do ser pensada por Aristófanes.
Isso não quer dizer que os opostos se atraem, como se somente fosse possÃvel amar o diferente de nós, inclusive no gênero e sexualidade, pois, segundo Aristófanes, ainda no Banquete, de Platão, há três combinações possÃveis para o amor a partir da divisão dos seres originários: o masculino, o feminino e o/a "hermafrodita", uma condição natural que os antigos gregos estendiam à humana, hoje, melhor compreendida como intersexual, pois diferente dos seres hermafroditas que são dotados dos dois sexos e podem se reproduzir, portanto, com qualquer outro parceiro, não é este o caso do ser humano que, apesar de possuir também dois sexos, não pode se reproduzir da mesma forma. Segundo a divisão de cada um dos seres originários de Aristófanes em duas partes, os primeiros geram uma relação amorosa homossexual e o último uma relação amorosa heterossexual. Em outras palavras, o problema para os gregos nunca foi amar alguém do mesmo gênero e sexualidade e, sim, como amamos, ou ainda, como chegamos a encontrar este a quem estamos destinados pelos deuses a amar. Amar alguém oposto a si em gênero e sexualidade pode até ser o padrão em muitas sociedades, mas é inegável que o amor não se resume a heterossexualidade há muito tempo. O um ao se dividir em dois pressupõe tanto uma divisão em partes iguais como em diferentes e, talvez, opostas.
Isso demonstra que a questão não é o que é o amor, mas quem amamos, onde está e quando vamos encontrar este que foi feito para nós, se é que encontraremos. Harry e Sally demoraram 12 anos e 3 meses para perceberem isso, mesmo que o amor entre eles já estivesse presente e se manifestasse a olhos vistos por seus amigos e por nós assistindo ao filme ansiosos para que fiquem juntos. Todos sabiam que amavam um ao outro ou foram feitos um para o outro, mas não eles. Possivelmente sabiam o que é o amor, mas não sabiam que amavam um ao outro, e, se sabiam, deixavam de lado como se não fosse amor. Foram necessárias diversas situações para que, enfim, soubessem que se amavam.
O que gerou dúvidas durante tanto tempo entre eles para impedir que amassem um ao outro e isso somente acontecesse no final do filme, como em muitos filmes de comédia romântica, por mais que desde o inÃcio o amor entre eles já se manifestasse? De certo modo, uma certa incompatibilidade entre amor, sexo e amizade colocada por Harry num dos primeiros diálogos com Sally ao dizer que é impossÃvel um homem ser amigo de uma mulher bonita, pois ele sempre vai querer transar com ela, mesmo que ela pense que não, que somente são amigos e não há nenhum interesse sexual dele por ela. Se há sexo, não há amor, nem tão pouco amizade. Se há amizade, por outro lado, não há amor e tão pouco sexo e se há amor este não quer dizer sexo e nem amizade.
Porém, não seria o amor justamente sexo e amizade? O um que se torna deste modo em dois? Na mitologia grega, o amor é tanto Eros quando Afrodite, o primeiro representando um amor sexual e o segundo um amor fraterno. Não se pode, como muitos fazem, excluir o sexo e a amizade do amor. É justamente o complemento de ambos que torna possÃvel o amor. Harry e Sally descobrem que se amam porque se alegram em estar juntos um com o outro como amigos, mas é só quando se desejam também sexualmente que isso se confirma, ainda que não admitam por um bom tempo. Apesar das investidas de Harry, primeiro se tornam amigos, depois descobrem o desejo sexual um pelo outro, mas não importa o que vem primeiro, o sexo ou a amizade, pois é união de ambos que faz amarem um ao outro. São as diversas situações que fazem a amizade e o desejo sexual de um pelo outro se manifestar para descobrirem isso e isso somente é possÃvel quando se busca estar com o outro, se preocupando com ele todos os dias, ligando para saber como está, saindo para conversar, festejar, estar presente ao seu lado a cada momento possÃvel, desejando a tal ponto estar com outro Ãntima e sexualmente que seja impossÃvel negar o amor entre ambos, pois é impossÃvel negar o desejo sexual e a amizade um pelo outro.
Ao assistirmos Harry & Sally: feitos um para o outro, ou outros filmes de comédia romântica, percebemos como o que menos importa é saber o que é amor, mas como, quando, onde começamos a amar sexual e amigavelmente alguém ao ponto de não conseguirmos impedir isso, nem mesmo querer impedir, já não conseguir evitar as palavras comediantes e românticas do eu te amo e fomos feitos um para o outro. Amar não é um verbo, assim como amor não é um substantivo, são a relação de um com outro em determinado lugar e momento em determinadas circunstâncias que variam conforme as épocas e indivÃduos. Não podemos determinar o que é o amar e o que é o amor, somente quem amamos, como, onde e quando começamos a amar que nos fazem saber por que amamos. Os depoimentos de casais que entrecortam o filme demonstram isso, incluindo o de Harry e Sally, bem como o de muitos outros casais com suas comédias românticas particulares.
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