O Gato de Botas de Bergson


Um gato tem 7 vidas, assim se diz, ou 9, segundo o filme Gato de Botas 2: O último pedido (2022, de Joel Crawford), ou ainda, 4 segundo a contagem do próprio Gato de Botas. Ou ainda, talvez nunca saibamos dizer quantas vidas têm, segundo o Gato de Schrödinger, que não sabemos se está vivo ou morto, a não ser que abramos a caixa. Do senso comum mais infantil num filme de desenho animado ao mais elevado conhecimento científico atual, no caso, a mecânica quântica, passando pela incapacidade do fictício Gato de Botas em dizer quantas vidas têm atualmente, e tão pouco se importar com isso, apenas em usufruí-la em excesso com suas aventuras, a questão das vidas de uma vida no filme Gato de Botas 2 Ã© uma importante questão filosófica, pelo menos se levarmos em questão o filósofo francês Henri Bergson.

Que gatos são animais fofos, os vídeos do YouTube estão aí para mostrar. Que são pouco amáveis com os outros e pouco se importam com o que os outros dizem ou pensam sobre si também, como mostra o gato Garfield, de Jim Davis.  Que são seres com relações com o sobrenatural, os egípcios já dizem isso há muito tempo, e que filósofos também gostam muito de gatos, Foucault, Deleuze e Derrida demonstram isso em várias fotos, Derrida dedicando seu livro O animal que logo sou ao pensamento do olhar de seu gato como olhar de um outro e Deleuze se detendo-se em seu livro Lógica do sentido a uma longa análise do sorriso do gato de Alice no país das maravilhas. Há até mesmo O Gato Filósofo chinês da artista Kwong Kuen Shan que reflete sobre Confúcio e Lao-Tsé e outros pensadores. Há os que, obviamente, gostam de cachorros, como Schopenhauer, ou que gostam de todos os animais como ele e Jeremy Bentham que não aceitam o sofrimento dos animais em geral, apesar deste último não ver problema no sofrimento dos animais humanos serem aprisionados em cativeiro por seus crimes, mas isso é uma outra história.

São muitos os gatos na história, incontáveis suas vidas, mas o Gato de Botas é único apesar de suas 7, 9 ou 4 vidas. É o mais popular desde que Charles Perrault contou sua história em 1697, e mais famosos desde sua participação nos filmes de Shrek (2011, de William Steig) e estrelar seu próprio, Gato de Botas (2011, de Chris Miller) e, mais recentemente, Gato de Botas 2: O último pedido, mas não último segundo o que se anuncia no final deste. Mas o que torna o Gato de Botas Ãºnico, e tão famoso, diante de tantos gatos? São muitas as respostas dependendo da história que contam dele e o que ele próprio conta narrando suas proezas aventureiras e habilidades como músico. As botas seria talvez a principal resposta, ou a capa, espada e chapéu de mosqueteiro, se não fosse o fato de que hoje está na moda gatos vestidos de qualquer modo, uma tendência criada senão pelo Gato de Botas.

A questão do que torna único o Gato de Botas não deve ser confundida com a questão das diferenças superficiais entre ele e outros tantos gatos existentes, reais ou fictícios, nem mesmo com as outras vidas que ainda tenha ou viria ter, nos lembraria Bergson. Uma vida não pode ser confundida com várias vidas percebe o Gato de Botas em seu mais recente filme, ou ainda, Deleuze em seu último texto em vida à espera da morte. Há uma diferença fundamental em sua vida, neste caso, que não é ou não são as várias diferenças superficiais entre os gatos em suas vidas, algo que o Gato de Botas começa a pensar em sua nona e última vida quando a morte aparece em cara e focinho à sua frente como cão raivoso fazendo eriçar seu pelo com medo pela primeira, ou melhor, segunda vez na história.

O que difere uma vida de várias vidas Ã© o medo da morte, pode-se dizer, como percebe o Gato de Botas em seu recente filme. A reação mais comum em relação a esse medo é traçar uma linha de fuga, a mais desviante e emaranhada possível em relação à linha reta que, como pior labirinto segundo Jorge Luis Borges, nos leva inescapavelmente à morte. Fugir pode ser moralmente reprovável, um sinal de covardia como acredita o Gato de Botas, mas nenhuma moral se sustenta diante da ameaça da morte e as piores ignomínias são realizadas para fugir dela. Deve-se abandonar, de fato, qualquer imagem moral que se tenha de si mesmo diante de uma ameaça de morte. É preciso abandonar o eu superficial criado por um pensamento moral quando é a vida, e não a morte, o que mais importa, no caso, uma vida.

Fugir da morte é uma ação necessária à vida. Não colocá-la em risco de morte o meio para isso. Buscar um abrigo um desses meios. Uma casa tranquila, seguir o curso natural da vida, comer, beber, defecar, mijar, dormir e acordar repetindo esse processo indefinidamente numa rotina sedentária de modo que a morte nunca se lembre de si. Deixar de lado qualquer aventura possível na qual se possa perder a única vida. Tudo muda na vida quando sabemos que temos apenas uma vida e não várias ou, no mínimo, mais uma vida, segundo a moral cristã dominante no pensamento, ou várias vidas com a transmigração da alma, segundo outras religiões, como a pitagórica dos gregos e de Platão na antiguidade, ainda que estas várias vidas sejam depois de morrermos e termos que sofrer para tê-la de volta.

A rotina é uma fuga da morte. Fazer as mesmas coisas todos os dias para não pensar nela. Seguir o curso da natureza em seu ciclo de estações, fases e desenvolvimento programático ou o curso da sociedade em seu ciclo de trabalho econômico fazendo as mesmas ações todos os dias, ainda que o efeito delas varie no tempo como uma caneta que cai várias vezes de diferentes modos numa mesa ao ser soltada no espaço gravitacional da terra. Trata-se, de qualquer modo, de tentar prolongar cada vez mais a vida sem fazer nada que a ponha em risco de morte, uma reação comum, mas não a única para fugir da morte, pois se pode ter mais vidas com as religiões como último pedido no leito de morte ou fazendo um pedido a uma estrela cadente, como pretende o Gato de Botas, em seu último pedido.

Em qualquer um desses casos trata-se de viver mais ou menos ao fugir da morte. É uma questão de sobrevivência ao se buscar prolongar a vida. Trata-se de pensar a vida no que a faz viver ou morrer, natural ou socialmente, ou ainda, religiosamente. Trata-se de dar outra vida Ã  vida, ou várias outras, somar uma vida a outra e várias outras para evitar a inevitável morte. Um acréscimo, enfim, de tempo Ã  vida que se vive natural, social e religiosamente e se quer viver num movimento retilíneo uniforme ou variável no espaço. Não importa se é um tempo breve ou longo de vida, ou ainda, o tempo de outra vida repetidamente. A questão é que a vida é pensada como um tempo e se requer mais tempo para si a cada instante para fugir da morte, isto é, uma sobrevida.

É o tempo de vida a questão no filme Gato de Botas 2 e o último pedido que o Gato de Botas quer é o mais comum de todos os pedidos humanos, o de mais vidas, depois de saúde, alegria e dinheiro e outras tantas outras coisas triviais que as pessoas pensam ter com mais vida. Durante toda a vida, a fuga da morte é a busca de mais tempo para viver não importa o que seja, e como seja, até se chegar ao paradoxo da imortalidade, qual seja, o de que uma vida imortal acaba por não ser uma vida, enfim, já diria Highlander - O Guerreiro Imortal (1986, de Russell Mulcahy). A questão é que o desejo de uma imortalidade num sentido comum, científico, fictício, religioso ou místico torna a vida tão repetitiva quanto à vida vivida uma única vez no seu cotidiano à qual se entrega o senso comum e religioso, ou ainda, quanto à vida natural à qual se entrega o cientista em seus experimentos de causas e efeitos com objetivo de se sobrepor à natureza, principalmente humana, para prolongar a vida evitando a morte. A vida perde, enfim, todo seu sentido em sua fuga da morte na imortalidade, se torna uma vida, porém, vazia de sentido, sem saber o que é, de fato, uma vida enquanto única.

O que difere uma vida de várias vidas não é a quantidade de vidas, tão pouco a quantidade de tempo de uma vida solitária e isoladamente sempre a mesma não importa o tempo. Não é o tempo e o espaço de tempo da vida, ou várias vidas em vários tempos religiosamente ou num multiverso espacial Marvel a ampliar histórias de super-heróis sem início, meio e fim. Não é quanto tempo e nem onde se vive o que importa, diria Bergson, mas uma vida em sua duração num tempo e espaço que não é o do senso comum ou da ciência, e, sim, da memória, a vida que se esquece, geralmente, ao fugir da morte ou encará-la constantemente em conflito para não morrer. Para além da vida, natural e social, ou de várias vidas religiosas ou fictícias, há uma vida a qual se lembra diante de tudo que se viveu e cuja lembrança dá um sentido Ã  vida, e é este sentido que importa.

Esta vida que se lembra em seu sentido é uma vida que não se esquece a si mesma ao se lembrar da morte. Pelo contrário, é uma vida que se lembra ao se esquecer da morte. Não é a vida que passa diante dos olhos da morte, ao encará-la de frente e lutar contra ela, constantemente em conflito consigo mesmo, vivo e morto a cada momento como o Gato de Schrödinger, sem nenhuma solução quântica para isso. É a vida que passa e repassa em sua duração única quando se está diante de um eu fundamental, aquele que lembra de si mesmo sem qualquer egoísmo, posto que sua vida enquanto ego que foge à morte em sua consciência já não importa mais. O que importa neste momento diante deste eu fundamental é a vida diante da vida, a vida em si mesma, o abandono da morte e do medo diante de si, sem se entregar, porém, à ela num vazio existencial.

Tal vida não pode ser vivida, apenas vivenciada em sua lembrança. São as lembranças que dão um sentido à vida e fazem dela uma vida, no caso, única. O que não quer dizer que estas lembranças são vividas solitariamente, pelo contrário. Tal vida em lembrança só é possível com os outros. É a experiência de estar com o outro que torna a vida lembrável, que faz da vida uma vida. Não há uma vida sem várias vidas, no caso, sem a vida dos outros. Uma vida perde todo o seu sentido quando se está sozinho. Assistir ao filme Gato de Botas 2: o último pedido nos faz lembrar disso, de que só temos uma vida para estarmos com os outros, e é isso o que importa, mesmo que nem sempre a vida lembrada seja uma grande aventura, pois não somos o Gato de Botas com 7, 9 ou 4 vidas, ou quantas quiserem dele em livros e filmes.

Nenhum comentário:

Tecnologia do Blogger.