Mais uma vida...

novembro 17, 2022

A cada aniversário comemora-se mais um ano de vida, de uma vida... como diz Deleuze em seu último texto publicado em vida, A imanência: uma vida... No caso, uma e não duas vidas, pois, pensamos, a vida é única, não podemos vivê-la de novo, e, por isso, não por menos, devemos vivê-la intensamente a cada dia, a cada ano, carpe diem, como disse Horácio. Todavia, o que torna a vida única, uma vida.... Ã© a morte pensada em cada momento dela, a cada dia, a cada ano, como lembra Belchior em sua música Sujeito de sorte: Ano passado eu morri/ Mas esse ano eu não morro...

Ao pensarmos em uma vida... não podemos deixar de pensar em uma morte... a nossa e também a dos outros. Um pensar com pesar, com peso, dando à morte um peso muitas vezes difícil de ser carregado pelo pensamento e do qual queremos nos livrar e nos aliviar mais dia menos dia, ainda que a morte não seja um peso e seja até mesmo um alívio para muitos sofrimentos da vida, e fiquemos mesmo mais leves com ela, 21 gramas para ser exato como no filme 21 gramas (2003), de Iñárritu. Ou ainda, fiquemos leve quando escapamos da morte e quando suportando seu peso durante tanto tempo nos tornamos fortes de tanto carregá-lo suportando qualquer pesar, sentindo-nos leve sem temer mais a morte, naquele momento de estranha liberdade Ã  beira da morte de que falam Deleuze e Guattari em O que é a filosofia?

A cada aniversário não é uma vida... apenas que comemoramos, mas também uma morte..., tudo que foi deixado para trás, mesmo que a morte ainda caminhe em nossa frente como uma lembrança e esteja diante e adiante de nós a cada momento, sempre um passo à frente e chegue muitas vezes antes do que pensamos. Pensar uma vida... Ã© pensar uma morte... que se aproxima, que não é presente, mas sentimos sua presença e, nela, a ausência de uma vida... a lembrança de uma vida... não mais presente quando a morte chega. Uma vida... sem retorno apesar do eterno retorno de que fala Nietzsche, que não pode ser vivida novamente, apenas pensada se deveria ser vivida novamente no momento mesmo em que se vive, com ou sem culpa e ressentimento.

Que o eterno retorne, eis um grande problema, assim como um problema que a vida retorne. O eterno Ã© já o que não retorna assim como uma vida... No caso, a vida em uma vida... a vida eterna, aquela que não retorna, pois é a que permanece, a que segue em linha reta no pensamento sem fazer nenhuma curva, sem olhar para trás nem mesmo de soslaio, sem saber, ou mesmo, querer saber da morte, sem qualquer desejo ou instinto de morte, culpa ou ressentimento. A vida filosófica, quiçá, religiosa, mas na qual já não se precisa mais filosofar nem se pensar religiosamente a partir de deus, se está vivo ou morto como o gato de Schorindger.

Ao pensarmos em uma vida... é na vida que pensamos, mas pensar uma vida... não é pensar a vida. O que diferencia uma vida... da outra, no caso, da vida, Ã© o retorno. Ao pensarmos uma vida... Ã© já no retorno dela que pensamos, o que não é possível ao pensarmos a vida. Uma vida... retorna, a vida não. As reticências de uma vida... são menos a indicação de uma continuidade da vida o que da possibilidade do retorno de uma vida... A indicação de que não seja uma despedida para a vida toda, um adeus, mas somente um até mais, isto é, até mais uma vida...

Ao comemorarmos um aniversário não é mais um ano de vida que comemoramos, é mais uma vida... o eterno retorno de uma vida... uma escapada da morte, uma vida que retorna em alegria, sem pesar apesar dos pesares, cantando que esse ano eu não morro, apesar de ano passado ter morrido, e a cada ano podermos morrer novamente. É uma vida... que se espera viver e se tem a esperança de viver sem morrer, enfim.

Se o parto é o nascimento de uma vida... e o partir Ã© o seu morrimento, o partir definitivamente, o infinitivo da vida na vida eterna, sem qualquer possibilidade de retorno, entre o parto e o partir, o nascimento e o morrimento, a vida e a morte, há o a-partamento, o parto sem partir, este momento em uma vida... que não é seu início e nem seu fim, e tão pouco a eternidade da vida. Momento no qual partimos em uma vida... sem dela partir, deixamos para trás todo seu sofrimento aliviados sem que seja por meio da morte e de um instinto de morte senão de vida, de mais uma vida... Ã‰ o momento do retorno de uma vida... em uma vida... Em que uma vida... dá mais uma vida, em que uma vida... dá mais vontade e desejo de viver, o momento do nosso aniversário, daquilo que volta todo ano, uma vida... pouco importa o ano e quantos anos.

Uma vida... se vai e mais uma vida... chega e com ela o riso, o sorriso, a alegria de viver. Não por continuar vivo, como se a vida fosse apenas uma questão de sobrevivência, mas por poder viver, ter a possibilidade de mais uma vida... por reviver, estar de volta à vida por uma vida... que retorna à nós e, consigo, uma esperança, pois, uma vida... Ã© a esperança de uma vida... que nos dê alegria com sua chegada para nos aliviar e fazer sentir são, e salvo, e forte.

O eterno retorno de uma vida... Ã© o eterno retorno da potência de uma vida..., o eterno retorno de uma vida... que vem ao encontro de uma vida... para lhe dar sanidade, salvá-la e fazê-la forte novamente. De uma vida... que chega para lhe dar força quando já faltam forças para viver depois de se ter sangrado demais, chorado pra cachorro, para trazer-lhe de volta à vida. Não é a unicidade da vida que está em questão em uma vida... nem tão pouco sua continuidade, é a sua descontinuidade, seu declínio e a necessidade de mais uma vida... para se viver.

É preciso sempre mais de uma vida... para viver. Uma vida... não é o bastante. A cada aniversário não é uma vida... que se comemora e, sim, mais uma vida... mais de uma vida... No mínimo duas e quantas forem possíveis reunir para celebrar uma vida... a que chega e toda potência esperança que traz consigo, imanente a si. Não é uma vida... singular que se comemora, é uma vida... que já não se singulariza, posto que nunca é vivida sozinha e, sim, com mais de uma vida..., com a potência de uma vida... que chega desejando-nos Feliz aniversário! Bem-vindo de volta à vida! Mais uma vida...

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