NUNCA MAIS!
O que diferencia uma ditadura militar de uma democracia? Como podemos saber o limite exato entre ambas? Brasil, BolÃvia, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai sabem amargamente a diferença porque passaram pela experiência da ditadura militar apoiada pelos Estados Unidos entre as décadas de 50 e 80. Ter passado por esta experiência é algo que nunca mais se esquece e nunca mais se quer que se repita na história. Ao assistir ao filme Argentina, 1985, de Santiago Mitre, inspirado na história verÃdica do promotor Julio Strassera, Luis Moreno Ocampos e jovens juristas, sabemos porque nunca mais, mas precisamos saber também como evitar isso para que nunca mais se repita.
A diferença de uma ditadura e uma democracia está no cerne da origem da filosofia historicamente. Não há filosofia sem democracia, pois não há possibilidade de debater e questionamento numa ditadura, mais ainda, qualquer questionamento da ditadura na ditadura. É a ausência de qualquer questionamento na ditadura o que se impõe como primeira diferença entre ela e a democracia, o que não quer dizer que é possÃvel todo e qualquer questionamento na democracia, que não haja limite para algumas questões.
A democracia não é a pura liberdade de expressão que um liberalismo individualista geralmente costuma divulgar. Todavia, é possÃvel questionar quase tudo numa democracia, inclusive a própria democracia, como fizeram Sócrates, Platão e Aristóteles filosoficamente sem negá-la, pensando suas limitações e problemas, porém, outros, negando-a completamente, como Hobbes em defesa de uma monarquia e de um Estado absolutista. Pode-se até mesmo decidir na democracia não se ter mais democracia, quando se vota em alguém que quer o fim de uma de suas instituições fundamentais como a destituição do Judiciário representado primordialmente pelo STF instaurando imediatamente uma ditadura ou quer a nomeação de ministros dele e juÃzes no Judiciário que atendam aos interesses do poder Executivo e também do Legislativo, quando as democracias começam a morrer lentamente e se tornam uma ditadura por meios legais e não golpes de Estado imediatamente como aconteceu no passado.
Muito se questiona, neste sentido, o julgamento de Sócrates na democracia grega antiga, se foi justo ou injusto, mas o que é inquestionável é que ele teve direito a um julgamento em que lhe foi concedido ampla defesa e que, por pouco, não venceu. Sua condenação à morte por ser filósofo, por questionar aqueles que estavam no poder e cujas leis os beneficiavam, pode ser questionada, mas não a democracia grega por tê-lo condenado com base em suas leis após um julgamento. É possÃvel questionar decisões do Judiciário na democracia, pois a lei, se diz, está sujeita a interpretações, mas o que não está sujeito a interpretações é o próprio Judiciário, sua existência numa democracia e o respeito a ele como representante das leis numa democracia, algo que não existe numa ditadura e que a diferencia sobremaneira em relação à democracia. Não há um poder Judiciário na ditadura, e esta diferença é o cerne da questão da diferença entre ditadura e democracia, o limite entre ambas, como podemos perceber no filme Argentina, 1985.
Não é a liberdade de expressão e tão pouco de agressão o que diferencia, respectivamente, democracia e ditadura militar, ainda que estas sejam diferenças clássicas amplamente discutidas e divulgadas, pois, obviamente, não há liberdade de expressão numa ditadura e tão pouco liberdade de agressão numa democracia. O que diferencia é a possibilidade de julgamento de uma e de outra liberdade, isto é, o fato de se poder julgar tanto a liberdade de expressão como de agressão, o limite entre ambas ou de ambas, até onde uma e outro pode ir. É no julgamento da liberdade de expressão e de agressão que podemos perceber a diferença entre ditadura militar e democracia mais radicalmente, pois enquanto na democracia este julgamento é possÃvel, ele não é possÃvel numa ditadura militar.
Ao contrário do que muito se pensa e diz, e mesmo se instituiu e ainda se institui, não há Justiça Militar. Não há nenhuma possibilidade de julgamento numa ditadura militar e entre militares, pois não se julga iguais, somente diferentes, aqueles que pensam e agem diferentes conforme uma lei que tolera até certo ponto a diferença, quando ela não é pequena ou grande demais. Pequena demais para confundir o justo e injusto e grande demais para não ser justa e a diferença é em si mesma o que se diferencia do que é justo, isto é, a injustiça, o mal.
A cada momento da história é a diferença que é julgada com base em determinadas leis sobre as diferenças de pensamento e comportamento, nunca a identidade de pensamento e comportamento, com exceção do perÃodo em que há um Estado de exceção, isto é, o de uma Ditadura Militar em "Defesa da Segurança Nacional" fundamentado num regime de guerra. Se não há julgamento numa ditadura militar é porque há uma guerra declarada contra um "inimigo" e contra inimigos numa guerra não há leis, pois é possÃvel prender, estuprar, torturar das mais diferenças formas sádicas e matar sem qualquer possibilidade de julgamento sobre seus atos. Não por acaso os militares impuseram Atos Institucionais quando chegaram ao poder no Brasil, pois numa guerra, como contra o "comunismo" segundo eles, o que importa são os atos, não os julgamentos sobre os atos, porque julgamentos são empecilhos aos atos, limites impostos a eles com suas deliberações muitas vezes sem fim que não levam a ato algum.
Somente posterior à guerra, quando ela acaba e se instaura novamente uma democracia é que os atos são julgados, não numa guerra. Uma guerra é, propriamente, um ato sem julgamento, porque é um ato contra o inimigo em defesa de sua segurança e da nação, um ato de legÃtima defesa, se diz, um direito à agir em defesa à vida sem qualquer possibilidade de julgamento de sua ação, sem reflexão sobre ela, um ato reflexo sem qualquer reflexão, uma reação. O que não quer dizer que quem cometa estes atos seja inocente, pois não há inocentes numa guerra, todos são criminosos no mais alto potencial e agem como tal, defendendo ou não sua segurança e a da nação. Todos são contra a lei numa guerra desde que é declarada e assim é numa ditadura militar que declara guerra a "comunistas", pois todos são criminosos passÃveis de prisão a qualquer momento por qualquer suspeita, mesmo a mais infundada de todas as suspeitas, já que até mesmo crianças recém-nascidas são vistas como inimigas, como aconteceu na Judeia com Herodes que temia o nascimento do "Rei dos Judeus", Jesus Cristo no caso, e mandou matar todas as crianças por causa disso, por serem potencialmente "o" inimigo, e não inocentes como se nomeou posteriormente o ato como Massacre dos inocentes.
A guerra não inocenta ninguém, ela incrimina, faz de todos criminosos, foras da lei, mesmo em silêncio, que também não é inocente. Não há silêncio dos inocentes numa ditadura militar. Todo silêncio é criminoso para os militares ditadores, pois é o acobertamento de um crime e de um criminoso que deve ser denunciado para ser preso, estuprado, torturado e morto para falar algo, não importa o que seja. Em uma das partes mais emblemáticas do filme Argentina, 1985, Adriana Calvo de Laborde, torturada enquanto estava grávida, diz:
Vou falar de alguém que foi torturado por dias. O bando o torturou noite e dia, sem piedade, com todos os métodos que relatei e muito mais. Quando o bando se foi, Excelência, os guardas fizeram um churrasco, começaram a se embebedar. Um deles teve a ideia de torturá-lo, e recomeçaram a tortura. Desta vez não estavam atrás de informação. O único propósito desta tortura que durou horas era que o prisioneiro dissesse: 'Gosto de pau e minha mãe é uma filha da puta.' Eles torturam por horas para que ele dissesse isso. E ele não disse.
A declaração de guerra é a declaração de que todos são inimigos perante à queles que determinam quem é o inimigo e não propriamente que todos são inimigos da lei ou fora da lei, pois todos estão fora da lei, tanto os inimigos como os amigos, os diferentes e os iguais. Todos agem sem qualquer lei, sem qualquer julgamento, sem qualquer possibilidade de julgamento por seus atos que são tão somente executados como atos sem julgamento. Não há lei numa guerra, por mais que se instituam leis para ela e nela, pois atos de guerra não são passÃveis de julgamento numa guerra, somente na ausência dela, no escuro de um quarto, numa prisão ou num tribunal que nunca é o militar, apenas o civil pois não se pode julgar um igual, somente um diferente, como se pode perceber em Argentina, 1985.
É quando acaba a ditadura na Argentina, em 1983, que há a possibilidade de julgar os atos dos militares que estavam no poder na ditadura militar, uma possibilidade remota naquele momento, tendo em vista a recente passagem para a democracia, mas que acabou por se realizar. Um julgamento não por um "Tribunal Militar", que recusou esta tarefa histórica, e, sim, por um Tribunal Civil, pois um "Tribunal Militar" nada mais é do que uma falsa ideia de "Justiça Militar", de que militares possam ser julgados por militares. Assim como é falsa a ideia de que todos são julgados como "iguais" perante as leis numa democracia, pois quem é igual perante a lei nunca pode ser visto como criminoso, somente o diferente. É contra os diferentes que as leis se impõem e se fazem presentes para que sejam iguais ou, no mÃnimo, semelhantes em pensamentos e ações.
A realização do julgamento dos militares que comandaram e realizaram prisões, estupros, torturas e mortes é o leimotiv de Argentina, 1985, mas também da democracia. Se os militares não podem julgar, não há um julgamento militar, uma justiça militar, e não querem julgar, é porque toda ação militar é justa por estarem em guerra contra o "comunismo", não há o que julgar, todos os militares são inocentes. É necessário, portanto, que se instaure um julgamento civil, que, como tal, é injusto para eles, como dizem repetidamente em suas defesas - "Não reconheço a legitimidade deste tribunal." -, pois não é um ato deles.
Todo e qualquer julgamento de militares é injusto para militares numa democracia e mais ainda numa ditadura, pois eles não reconhecem a legitimidade de qualquer julgamento. Nenhum julgamento é legÃtimo para os militares, pois é sempre um julgamento da ação militar, um questionamento de sua ordem, de seu poder, de sua hierarquia, da autoridade da ação dos militares, isto é, de uma ação propriamente dita que não pode ser questionada, discutida, deliberada em julgamento, uma ação que é inquestionável. Por mais que se questione que ação militar tomar em determinado momento por poder ser um erro, não necessariamente quer dizer que seja um crime, um ato injusto, um mal que deve ser julgado, pois é ação é justa em si mesma enquanto ação militar, é o que deveria ou se podia ser feito em determinado momento, sem possibilidade de julgamento a priori e a posteriori.
Que os argentinos tenham feito o julgamento histórico de militares de alta patente que comandavam sistematicamente os crimes na ditadura militar, e que deu inÃcio a tantos outros julgamentos de militares que cometeram crimes a mando dos militares de mais alta patente, demonstra a necessidade de que um julgamento seja feito para que a própria democracia se institua naquilo que a diferencia em sobremaneira à ditadura militar, isto é, em seu Poder Judiciário independente tanto das Forças Armadas quanto do Poder Executivo e Legislativo. É a possibilidade de julgar os militares o que se coloca em questão em Argentina, 1985, e na democracia, o que diferencia a democracia de uma ditadura militar, o que parece fácil haja vista os crimes dos militares e as inúmeras vÃtimas sobreviventes, mas não necessariamente perante a lei, pois não é fácil provar seus crimes, e, ademais, um julgamento favorável aos militares poderia legitimar todas as ações criminosas que cometeram sendo vistas como justas tal como eles mesmos defendem. Apesar disso, numa democracia, é necessário julgar, é necessário um Poder Judiciário, não se pode evitar isso, e militares não podem ser imunes, imunizados como seres que não podem ser julgados em suas ações, serem vistos como inocentes quanto a elas numa democracia.
A necessidade de um Poder Judiciário na democracia é a necessidade de uma ação passar pela experiência de um julgamento propriamente dito, que uma ação não possa ser justa e justificada por si mesma em si mesma como almejam militares numa ditadura militar ou como almejam o Poder Executivo e o Legislativo querendo que o Poder Judiciário considere justo e justifique todas suas ações sem qualquer julgamento ou julgando somente de modo favorável a si. Não se pode conceber na democracia uma ação que seja justa em si e por si mesma, é preciso julgar se é justa ou injusta a partir de determinadas leis de modo que o julgamento das ações é o que está no cerne da democracia, desde a elaboração das leis pelo Legislativo, sanções delas pelo Executivo até a defesa e execução delas pelo Judiciário.
A experiência de um julgamento das ações é a experiência de um limite para elas e da ultrapassagem do limite delas que pode levar ao fim ou à morte da ação propriamente dita. O limite nunca é um limite à ação propriamente dita, mas ao seu excesso, à ultrapassagem do limite mesmo da ação, quando já não se pode mais agir, não há mais nada o que fazer, quando a liberdade de expressão da vida se torna uma liberdade de agressão contra a vida. É no limite de uma ação que a experiência de um julgamento se coloca quando a ação deixa de ser uma expressão para ser uma agressão, isto é, passa a ser uma ação sem qualquer julgamento e justificativa e que possa ser expressada.
Não há qualquer justificativa para a agressão numa democracia, por mais que se possa justificar algumas ações agressivas como justas e injustas na democracia, pois julgar os atos agressivos como justo e injusto é senão o dever da democracia. Todavia, a agressão propriamente dita não é democrática, é já o que demanda o julgamento da democracia, aquilo que faz que se tenha o dever democrático de julgar toda e qualquer ação agressiva como um crime, um ato criminoso, um ato fora da lei democrática, um ato diferente do que se espera numa democracia, ainda mais se é um ato que se repete milhares de vezes não podendo ser determinado nem em qualidade e nem em quantidade num determinado espaço e tempo, e tão pouco num espaço de tempo, segundo as leis. Assim é que, diz o promotor Strassera em sua sentença dos militares ao exigir justiça:
Razões técnicas e factuais, como a ausência de um delito penal especÃfico no Direito Nacional que descreva em definitivo o tipo de crime em julgamento hoje, e a impossibilidade de considerar os milhares de casos um a um, me levaram a expor em 17 dramáticas semanas de audiências, apenas 709 casos que, de certo, não esgotam o número assustador de vÃtimas, causadas pelo que podemos descrever como o maio genocÃdio da jovem história do nosso paÃs.
É a violência da ação em sua agressão que demanda o julgamento democrático, uma violência que não é julgada na ditadura militar, pois toda ação militar é vista como justa, logo, como não violenta. Porém, a justiça é o que abole toda e qualquer violência da ação, toda e qualquer ação violenta, ainda que a ação da justiça seja uma ação violenta, como a ação de uma legÃtima defesa. Uma ação em legÃtima defesa não deixa de ser violenta, mas sua violência é justa, justificada e vista como justiça na medida em que tem por objetivo abolir a violência. A justiça é a limitação da ação violenta, da agressão, o julgamento da ação para que não seja mais agressiva, violenta, isto é, que seja justa em sua ação.
Se não há julgamento nem justiça numa ditadura militar, ou mesmo numa democracia por uma "Justiça Militar", é porque nenhuma ação militar é vista como agressiva, violenta, posto que a agressão e a violência de uma ação é justa em si mesma, justificável e a própria justiça. Agredir e violentar é a ação, por excelência, do militar que se regojiza dizendo que sua "habilidade é matar" considerando toda e qualquer violência como boa em seu sadismo, isto é, para o bem dele e da nação, e de deus, quiçá, acima de tudo. Porém, isto não quer dizer que não haja violência na democracia e vivamos num paraÃso, pois não é ausência de violência que a diferencia da ditadura militar, mas o julgamento da violência, como diz Strassera em sua sentença novamente:
A violência imperava no paÃs, quando três dos réus decidiram, mais uma vez, em nome das Forças Armadas, tomar o governo pela força, desprezando o desejo do povo. E qual foi a resposta do Estado depois deste golpe à guerrilha subversiva? Para descrevê-la, senhores juÃzes, me bastam três palavras: feroz, clandestina e covarde. As guerrilhas sequestraram e mataram. E o que fez o Estado para combatê-las? Sequestrou, torturou e matou em uma escala infinitamente maior. E, o que é pior, à margem de qualquer sistema jurÃdico.
Não é a violência, em menor ou maior qualidade ou quantidade o que diferencia a ditadura de uma democracia. Não necessariamente há mais violência na ditadura militar do que na democracia, por mais que se possa pensar deste modo, e se analisar qualitativa e quantitativamente a violência numa e outra. O que é pior, como diz Strassera, isto é, o que diferencia a ditadura militar é que a violência nela é à margem de qualquer sistema jurÃdico, isto é, à margem de qualquer julgamento por um sistema jurÃdico, até mesmo o sistema jurÃdico popular, isto é, o moral dos costumes. É a ausência de um sistema jurÃdico o que caracteriza a ditadura militar como demonstra o promotor ao dizer, ademais:
Quantas vÃtimas de repressão eram culpadas de atividades ilegais? Quantas eram inocentes? Nunca saberemos, e não por culpa das vÃtimas. A eliminação do processo judicial causou uma verdadeira subversão jurÃdica. Denúncias foram substituÃdas por acusações. Interrogatórios, por tortura. E a sentença foi embasada no gesto neroniano do dedão para baixo.
O julgamento democrático, em outras palavras, foi substituÃdo pela ação agressiva e violenta dos militares sem qualquer julgamento a priori ou a posteriori, substituÃdo pelo gesto de um dedo que decide a vida e a morte de uma pessoa. A vida pressuposta no movimento de uma ação em sua expressão a ser julgada na democracia foi substituÃda pela morte pressuposta na agressão de uma ação que visa pôr fim a qualquer movimento e expressão de um movimento democrático, por fim a qualquer questão vital e dignidade de vida como acontece, ou deve acontecer, na democracia:
A falta de sentença judicial não é a omissão de uma formalidade. É uma questão vital de respeito à dignidade.
A qualidade e quantidade das ações agressivas e violentas dos militares não é propriamente a questão, por mais cruéis que sejam, mas a falta de sentença judicial em relação a elas, posto que somente por um julgamento delas podem ser vistas como agressivas e violentas, logo, como criminosas perante as leis, como ultrapassagem de todos os limites que as leis impõem à violência. É preciso julgar as ações para que elas sejam vistas como agressivas e violentas, isto é, injustas, e abolir qualquer julgamento da ação é o que se propõe uma ditadura tornando justos todos os crimes militares possÃveis em relação aos inimigos como se estivessem numa guerra que, na verdade, não estão, mas foi instituÃda por eles para cometerem crimes, e cujas "leis" são eles que definem em sua própria ação e não como leis exteriores à ação, que coagem a ação, que fazem pensar e julgar a ação. Quando a esta ação de guerra dos militares contra os inimigos, diz ainda Strassera:
Mas adotemos agora a teoria da guerra tão repetida pelos réus. Podemos considerar o sequestro de indefesos, ao amanhecer, por gangues anônimas, um ato de guerra? É um ato de guerra torturá-los e matá-los se não ofereceram resistência? É um ato de guerra ocupar lares e fazer famÃlias de reféns? São alvos militares os recém-nascidos?
Se não há justificativa para todas essas ações militares, posto que é justa em si mesma para os militares em guerra, é necessária uma justificativa para todas elas numa democracia, pois tais ações agressivas, violentas e mortÃferas devem ser julgadas, não podem deixar de ser julgadas num paÃs democrático, sob o risco de que toda e qualquer ação agressiva, violenta e mortÃfera como as dos militares em guerra serem toleradas e aceitas na democracia pelos cidadãos. É a aceitação da agressão e da violência sem qualquer julgamento o que diferencia a ditadura militar da democracia, pois nesta última não se pode aceitar jamais uma agressão e violência sem julgamento e tão pouco se pode aceitar jamais que se repitam tais agressões e violência dos militares. Como diz Strassera:
Por tudo isso, Excelência, este julgamento e esta sentença são importantes e necessários para a nação argentina [e para qualquer nação democrática que passou pela experiência da ditadura militar], que foi ofendida por crimes atrozes. A atrocidade deles torna a hipótese de impunidade algo monstruoso. (...) ninguém pode permitir que sequestro, tortura e assassinato se tornem incidentes polÃticos. Ou 'eventualidade de combate'.
A democracia se fundamenta no julgamento de toda e qualquer ação enquanto agressiva e violenta, posto que sem isso, ela se torna uma ditadura. O julgamento de uma ação agressiva e violenta não é, porém, algo momentâneo, que possa ser esquecido. Sua função é lembrar a quem é julgado em sua ação e a todos que visem repeti-la que tal ação é uma agressão e uma violência que não pode ser aceita na democracia. É a não aceitação da agressão e da violência que fundamenta a democracia e a justiça. E se não esquecemos uma agressão e violência é porque a memória de uma ação agressiva e violenta exige a justiça, reclama à justiça, faz com que se diga NUNCA MAIS! a toda e qualquer agressão e violência militar numa ditadura militar ou numa democracia.
A experiência de uma ditadura militar é a experiência da dor, de uma dor que fica marcada na memória e no corpo, que traumatiza e deixa muitas vezes impossibilitado por toda a vida aquele que a experimenta, seus descendentes e as gerações que têm viva a dor em sua empatia com o outro. A experiência de uma democracia é a experiência da possibilidade de um julgamento e de uma justiça para todas as ações que trazem dores e que marcam a memória, que traumatizam, e que somente um julgamento e a justiça podem fazer parar a dor. A Argentina, em 1985, começou a fazer parar a dor que os militares produziram nela, no Brasil, estas dores ainda permanecem, e retornam ainda hoje, porque não dizemos ainda para elas em julgamento NUNCA MAIS!
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