Thor: amor, trovão e a graça divina
Há muitas críticas aos filmes de super-heróis, principalmente aos do Universo Cinematográfico Marvel (MCU), que ganharam destaque com as diversas sagas individuais de super-heróis iniciadas com Homem de Ferro (2008), muitas delas reunidas nos filmes da série Vingadores (2012, 2015, 2018 e 2019). A principal crítica foi a do cineasta Martin Scorsese em uma entrevista de 2019, na qual disse que esses filmes não são cinema, não são o significado de cinema que se deve passar para os jovens, são "outra forma de arte", são a "extensão de um parque de diversões" (grifos meus), pois não passam de "experiências emocionais e psicológicas para outros seres humanos", ou ainda, não são "filmes narrativos" como os que ele e outros cineastas fazem, como disse em outra entrevista. Iniciou-se desde então uma saga de perguntas a renomados cineastas em entrevistas para saber se concordavam ou não com a crítica de Scorsese, em geral concordando, e que ampliaram a discussão sobre o que é ou não cinema (veja algumas delas aqui). Uma discussão na qual o não menos renomado cineasta italiano Frederico Fellini foi também convidado a se manifestar, no caso, pelo cineasta, também italiano, Paolo Sorrentino em seu mais recente filme: A mão de Deus (2021). Obviamente, Fellini não assistiu a nenhum filme de super-heróis do MCU, ou também da DC, pois faleceu em 1993, mas parece discordar de Scorsese e outros, assim como também parece discordar Paolo Sorrentino ao introduzir em seu filme sobre o jovem Fabietto, que quer ser cineasta, o seguinte diálogo dele com o irmão Marchino, que quer ser ator e saíra de um teste de elenco com Fellini:
- A certa altura um jornalista ligou. Fellini disse para ele: 'Cinema não serve para nada. Mas é uma distração.' O jornalista deve ter perguntado: 'Uma distração do quê?' E Fellini disse: 'Da realidade. A realidade é terrível.' - Foi tudo o que ele disse? - Não basta?
Não podemos negar que Scorsese está correto em sua crítica, tão pouco podemos negar seu entendimento do que é o cinema e seu significado, mas não podemos discordar também de Fellini e seu entendimento sobre o significado do cinema, do qual Scorsese também não ousaria discordar, pelo menos não tão enfaticamente. A questão Scorsese-Fellini, podemos assim chamá-la, sobre os filmes de super-heróis não é uma questão menor, pois remete ao que é cinema e à sua essência, além da sua história, uma questão que Bergson se pôs filosoficamente acerca da criação em sua obra A evolução criadora, de 1907, que, segundo Deleuze, está presente já em sua obra Matéria e memória, de 1896, antes mesmo da criação oficial do cinema, quando pensa em "cortes móveis", "cortes instantâneos" relacionados ao movimento não mais no espaço e, sim, num tempo, no caso, um "falso movimento", como uma "ilusão cinematográfica", diz ele, em A evolução criadora. Porém, observa Deleuze, mais do que uma questão sobre o verdadeiro ou falso movimento, o que é e não é movimento em Bergson, o que se coloca em questão é a essência do cinema, pois, chamando estes cortes móveis de "imagens-movimento", considera que:
A evolução do cinema, a conquista de sua própria essência ou novidade se fará pela montagem, pela câmera móvel e pela emancipação da filmagem, que se separa da projeção. O plano deixará então de ser uma categoria espacial, para tornar-se temporal; e o corte será um corte móvel e não mais imóvel. O cinema reencontrará exatamente a imagem-movimento do primeiro capítulo de Matière et Mémoire. (DELEUZE, 1983, p. 10. Negrito meu.)
A questão do movimento em Bergson e sua ampliação para a questão do movimento no cinema é complexa, como se pode perceber no desenvolvimento filosófico que Deleuze faz delas em suas duas grandes obras: Imagem-movimento (1983) e Imagem-tempo (1985). Ao ressaltar o papel da montagem na evolução do cinema, retoma um aspecto já destacado por Benjamin em seu célebre ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1935/1936), também leitor de Bergson, quando analisa que as imagens cinematográficas podem ser gravadas em várias versões e justapostas numa sequência que não coincide com o movimento em sua sequência na realidade, incluindo a interpretação do ator, que grava uma cena final antes da inicial muitas vezes, por exemplo. Segundo Benjamin, não há uma aura, autenticidade ou originalidade de uma obra de arte no cinema, bem como a fotografia com a qual se relaciona diretamente, mesmo que Scorsese e outros almejem isso há muito tempo na história do cinema. Isso não é um demérito do cinema, tão pouco dos filmes de super-heróis da Marvel ou DC, pois faz parte da eficiência da arte na realidade contemporânea capitalista em sua reprodutibilidade técnica.
A arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se orientar em função da reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em seu centro a obra original. (BENJAMIN, 1935/36, 180)
Scorsese questiona os filmes de super-heróis por não possuírem pressupostamente uma aura, uma autenticidade, originalidade, uma narrativa que seus filmes e de outros teriam, mas esta questão já foi posta e deposta quando o cinema pôs em questão a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, como demonstra Benjamin. Não faz o menor sentido na contemporaneidade a questão de se os filmes de super-herói são ou não cinema, são ou não uma obra de arte, pois definitivamente são uma obra de arte, mas não como as obras de arte antigas em seu valor de culto, no sentido de serem originais, possuírem um hic et nunc (aqui e agora), como no teatro, na arquitetura, na pintura, na literatura. As obras de arte cinematográficas são reproduzíveis, cópias, só tem um valor de exposição no mercado dependendo do quanto são expostas, sem qualquer originalidade, autenticidade. É no sentido de um maior valor de exposição no mercado que Scorsese e outros cineastas também reclamam dos filmes da Marvel pensando numa originalidade do cinema, pois seus filmes e de outros são menos expostos no mercado, ou ainda, reclamam aqueles que pensam num cinema nacional. Os filmes de super-heróis são cinema, sem dúvida, e os mais valorizados hoje em dia apesar de tudo, pois são os mais expostos, assim como eram os de Scorsese e outros grandes cineastas em outro momento, não porque os filmes dele e de outros, ou de antigamente, eram filmes melhores do que os da Marvel ou DC atualmente e, sim, porque era o que o capitalismo da época desejava no alvorecer da era da reprodutibilidade técnica produzida consigo.
Não há originalidade no cinema, tudo não passa de uma cópia, de um vamos gravar de novo até que seja perfeito. Dependendo do cineasta pode ser centenas de vezes, levando à exaustão mental e física toda a coletividade que produz os filmes cinematográficos. Raramente há apenas uma tomada da cena, em geral, por situações que obrigam que seja assim, quando não é possível gravar de novo, por exemplo, uma explosão ou quando se grava num momento que a natureza pode se tornar hostil, como diante de uma previsão de mudança no tempo, buscando-se muitas vezes o único momento em que é possível gravar-se. Isso não se modifica nos filmes de super-herói, pelo contrário, se amplia nos estúdios de edição nas montagens das cenas (imagens-movimento), até mesmo buscando-se aquele momento único na gravação de uma parte ou na escolha de uma cena única na edição. Novamente, isto não é um demérito destes filmes, tão pouco do cinema, pois faz parte da sua perfectibilidade, um atributo que expande a compreensão da obra de arte.
Com o cinema, a obra de arte adquiriu um atributo decisivo, que os gregos não aceitariam ou considerariam o menos essencial de todos: a perfectibilidade. (...) O filme é, pois, a mais perfectível das obras de arte. (BENJAMIN, 1935/36, p. 175)
Mas há uma outra questão colocada por Scorsese sobre o cinema que vai além da questão do que é cinema, ou de sua essência. Esta questão se refere ao para que serve o cinema. No caso de Scorsese, os filmes para diversão como os de super-herói não são cinema, são uma extensão de parques de diversão, e tão pouco obra de arte. Para Fellini o cinema server como distração, ou diversão neste sentido. Novamente, Benjamin antecipa esta questão ao dizer que:
O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas - é essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido. (BENJAMIN, 1935/36, p. 174. Grifos meus.)
Sobre este verdadeiro sentido do cinema anunciado por Benjamin, podemos nos perguntar: ao atingir as inervações humanas, o objetivo do cinema com seus aparelhos técnicos de filmagem, montagem e edição é causar uma distração nos nervos ou uma contração deles em relação à realidade? Melhor dizendo, o cinema é uma distração quanto à realidade, uma terrível realidade, no sentido de Fellini segundo Torrentino, ou é uma atenção quanto à realidade, no sentido de Scorsese? Dito ainda de outro modo, o cinema serve para nos distrair ou divertir ou para não nos distrair e nos fazer ficar sérios quanto à realidade? Em contrapartida, levando em conta a passagem de um cinema que é distração ou diversão, o de Fellini-Torrentino, para um que é atenção e seriedade, o de Scorsese: quando passamos de um cinema que distrai ou diverte para um cinema que nos põe em atenção seriamente diante da realidade? Enfim, quando e por que passamos para um cinema crítico da diversão ou distração no cinema, com a distração ou diversão sendo vistas como um demérito seu, uma decadência do cinema e, mesmo, seu fim enquanto morte da obra cinematográfica em sua origem, concebida de modo original, autêntica, verdadeira?
Estas perguntas sobre o cinema são filosóficas e talvez cineastas questionem: o que filósofos sabem sobre cinema? E nos perguntemos nós, filósofos: o que temos a dizer sobre o cinema, e mais ainda, sobre os filmes de super-heróis do universo Marvel ou DC? Há algo de interesse para a filosofia nestes filmes de super-heróis que servem apenas para nos fazer divertir segundo Scorsese? Ou servem apenas para distrair da terrível realidade, segundo Fellini, a partir de Sorrentino? Sobretudo, o que Thor: Amor e Trovão (2022), de Taika Waititi, tem a ver com tudo isso? Comecemos pela última questão.
De todos os filmes de sagas de super-herói do Universo Cinematográfico Marvel, e quiçá, dos filmes neste estilo, os filmes do Thor dirigidos por Taika Waititi são os mais divertidos e o que mais distrai da realidade, talvez por ser o diretor um comediante, e Thor: Amor e Trovão é senão o mais divertido de todos. Há definitivamente um ponto de virada para a comédia na sequência de filmes do deus do trovão com a direção de Waititi diante do primeiro filme, Thor (2011), do diretor e ator dramático inglês Kenneth Branagh que dirigiu e atuou não por menos em Hamlet (1996), e diante de Thor: O mundo sombrio (2013), do diretor de cinema e televisão estadunidense Alan Taylor, que dirigiu principalmente episódios da série Game of Thrones (2011-2019). Esta virada não foi bem aceita por críticos do MCU por decepcionar aqueles que acompanham de modo mais "sério" suas sagas, especificamente, a seriedade do filmes anteriores de Thor, mas também a seriedade do projeto do MCU. A inserção de uma diversão nos filmes do deus super-herói foi problemática, muito negativa em alguns aspectos, apesar de amenizada em outros, quando Waititi a introduziu no primeiro filme que dirigiu, Thor: Ragnarok como se pode ver nos títulos de algumas críticas na época: "Thor: Ragnarok (2017): a primeira comédia assumida da Marvel Studios", do Cinema com Rapadura, THOR: RAGNAROK X COMÉDIA: A PIADA ATRAPALHA?, do Cinema(ação), THOR RAGNAROK FORÇA NA COMÉDIA E FICA NO NÍVEL DOS DOIS PRIMEIROS FILMES DO HERÓI. Dentre estas, a crítica de Thiago Siqueira, do Cinema com rapadura, parece resumir a questão da comédia nos filmes de Thor e a problemática que surge quando Waititi a introduz pelo primeira vez em Thor e no MCU:
Ao abraçar de vez a comédia e causar uma verdadeira ruptura em relação ao que vimos antes dentro de uma franquia estabelecida, a Marvel Studios expõe uma fragilidade em seu projeto de universo compartilhado. Como um filme isolado, “Thor – Ragnarok” é sim uma aventura extremamente divertida e eficiente, bem ao estilo de seu talentoso diretor. Mas dentro do chamado Universo Cinematográfico Marvel, considerando os longas solo anteriores dos personagens (especialmente o primeiro, comandado com certa pompa por Kenneth Brannagh em 2011), chega perigosamente perto de ser um tapa na cara dos fãs daqueles filmes. (SIQUEIRA, 2017. Grifos meus.)
Curiosamente, Thor: Ragnarok e o MCU são questionados senão pelo que Scorsece questiona em todos os filmes de super-heróis, a diversão, antecipando uma decadência do projeto de universo cinematográfico Marvel, mas também questiona pelo que Benjamin diz ser a característica do cinema e de todas as artes na era da reprodutibilidade técnica capitalista, a eficiência. Isto demonstra que mesmo nos filmes da Marvel existe uma preocupação com a seriedade no cinema, e nem tudo é diversão nos filmes de super-herói como pensa Scorsese, em contrapartida, concordando com ele de que é preciso pensar seriamente nos filmes da Marvel, ainda que não deixe de lado a distração. O cinema não pode ser apenas diversão ou distração da realidade, ou terrível realidade, como pensa Fellini segundo Sorrentino, e nem apenas eficiência como pensa Benjamin. Os filmes de Thor, de Waitii, são divisores de água, por sua vez, não apenas quanto à saga do deus super-herói ou do projeto cinematográfico da Marvel, ou ainda, dos filmes de super-heróis, mas também quanto ao que é cinema: seriedade ou diversão e distração?
Thor, não é um super-herói como outros nos filmes de super-heróis. Ele não é um ser extraterrestre advindo de outro planeta como o Super-homem, apesar de sua aparência humana ou um ser humano rico com acesso a tecnologias avançadas como Tony Stark, milionário da indústria de armas que se torna o Homem de Ferro (2008) e como T'Challa, principe de Wakanda que se torna o Pantera Negra (2018), ou ainda, como o cientista Hank Pym e seu sucessor, o ex-presidiário Scott Lang, ao terem acesso à tecnologia militar de encolhimento formiga se tornando o Homem-formiga (2015). Tão pouco, é um ser humano que adquire superpoderes por meio de alguma mutação biológica, como o Homem-Aranha e tantos outros X-men.
O que diferencia Thor de todos os outros super-heróis é que não advém de histórias em quadrinhos originalmente, mas dos mitos nórdicos que as inspiram nos quais é um deus associado ao trovão, bem como ser um herói como grande guerreiro antes de se tornar um super-herói tal como aparece nas histórias em quadrinho e no cinema ao se unir a outros super-heróis, principalmente, na série de filmes Vingadores. Como deus, as questões colocadas a ele são diferentes em relação a outros super-heróis, pois suas responsabilidades estão dadas desde o nascimento e os problemas que enfrenta são existenciais em princípio, como desde o primeiro filme em sua relação com o pai, o amor, seu povo, o conflito e reconciliação presente nesta relação. Isso dá uma dimensão profunda ao herói e uma seriedade que se existe em outros super-heróis, são colocadas a si de fora, como uma obrigação, enquanto a ele, enquanto deus, fazem parte de si. Há uma seriedade, portanto, em Thor para além da seriedade com que os críticos de quadrinhos e cinema tem em relação a ele como personagem de ficção e para além dos conflitos e existentes em outros personagens. Antes de todos os outros super-heróis, enquanto deus, ele carrega a responsabilidade pelo destino de seu povo que se confunde com seu próprio destino desde o nascimento em vez desta responsabilidade se colocar a ele por alguma circunstância.
Existe, ademais, uma questão que não se relaciona com outros super-heróis e que está dada desde o princípio a Thor e é o leimotiv de Thor: Amor e Trovão, qual seja, a fé. (Alerta de spoilers a partir daqui!) Este aspecto religioso torna o filme profundamente trágico, apesar de suas piadas. Uma fé que pressupõe uma relação desmedida com um deus, que não pode ser questionada mesmo nas piores situações, como na relação de Gorr com o deus do seu povo no início do filme. Mesmo quando passa fome com sua filha no seu planeta desértico, indo ao encontro de seu deus para pedir ajuda para si e para ela, bem como para seu povo, e vê sua filha morrer de fome em seus braços, ele não perde a fé no seu deus. Pelo menos até ficar frente a frente com seu deus num oásis para onde vai após sua filha morrer de fome, quando apela para que ele salve seu povo e é desprezado por seu deus que lhe diz que não importa a morte do povo que acredita nele, outros nasceram para adorá-lo. Ao ser desprezado deste modo e ver o desprezo por seu povo, além de sua filha morta, Gorr sucumbe à descrença, perde sua fé e afronta seu deus que resolve matá-lo por isso. Diante da morte, uma espada criada para matar deuses, a Necroespada, com a qual outro tentou matar seu deus, aparece diante de Gorr e seu espírito maligno apela para que se vingue e mate seu deus, o que ele faz entregando-se assim ao seu destino a partir de então, matar todos os deuses em sua descrença como o Carniceiro dos deuses.
A perda da fé nos deuses e a morte dos deuses são motivos suficiente para dizermos que Thor: Amor e Trovão apenas parece uma comédia, pois o que acontece do início ao fim dele é o questionamento da fé nos deuses que põe em risco não apenas Thor e seu povo da Nova Asgard, mas todos os deuses, como ele diz no encontro com estes na Cidade da Onipotência para onde vai pedir ajuda dos deuses para impedir Gorr. Há uma descrença e perda da fé de Thor nos deuses que o faz intimamente relacionado com Gorr, principalmente quando Zeus, o maior de todos os deuses gregos, nega-lhe ajuda no conselho realizado pelos deuses, diz que isso é um problema de Thor e seu povo e, tal como o deus de Gorr, demonstra desprezo pela morte dos humanos dizendo que os deuses estão a salvos no Cidade da Onipotência, além de humilhar Thor publicamente como um deus menor, por ser o deus do trovão, apenas o som do raio que Zeus simboliza. Ao negar ajuda e humilhá-lo, Thor afronta Zeus e busca roubar seu raio como arma para matar Gorr iniciando uma batalha que acaba com a aparente morte de Zeus com seu próprio raio que é pego pela Valkiria, a qual ajuda Thor na batalha contra Zeus juntamente com Jane Foster, que se tornara a Poderosa Thor.
Gorr e Thor passam pela mesma perda da fé e descrença nos deuses, a de Thor, muito antes do seu encontro com Zeus, que admira imensamente, e ser zombado e humilhado por ele, assim como Gorr também é por seu deus. Porém, não estão do mesmo lado de uma descrença, pois Gorr é um ser crente em deus e Thor é já um deus. A descrença de Gorr é em relação a um ser que não é ele, um ser superior, responsável por sua existência, a de Thor, a descrença em si mesmo como deus e, com seu encontro com Zeus, noutros deuses. Esta crise existencial de Thor consigo mesmo como deus atravessa todos seus filmes e encontra em Amor e Trovão seu clímax, atingindo uma profundidade mais sombria do que a de Thor: O mundo sombrio. A diferença é que Thor, já passou pelo mundo sombrio uma vez e sua relação com ele não é a mesma, como a de Gorr ao olhar para o abismo sombrio e o abismo olhar para pela primeira, lançando-o dentro de si profundamente.
Há pelo menos duas fés em deus no filme Thor as quais o filósofo Kierkegaard nos faz perceber em seu livro Tremor e Temor, de 1843, segundo Deleuze, ao analisá-las em sua obra a Diferença e repetição (1968). Uma fé trágica demonstrada a partir de Abraão que oferece seu próprio filho à morte em sacrifício a deus para demonstrar sua fé, o mesmo filho que sua mulher não podia ter e foi oferecido a ele como graça ou milagre de seu deus. Uma fé que o atormenta profundamente ao pensar em sacrificar o filho e ao pensar no que ia fazer, depois de que seu filho é substituído pelo sacrifício de um carneiro. Porém, por outro lado, há um fé cômica que pode ser pensada a partir do próprio deus abraâmico, quando engana Abraão fazendo-o pensar que ia sacrificar o filho e, na verdade, isso não ia acontecer, isto é, quando há uma graça divina no ato de enganar Abraão, ao brincar com sua fé, por assim dizer, ao fazer graça, inclusive, de si mesmo enquanto deus, fazendo-se ver como gracejador e não amedrontador. Algo que Abraão, de certo não compreende, mas talvez Kierkegaard, sim, pois:
Bem dizia Kierkegaard ser ele mais poeta da fé do que cavaleiro, em suma, um 'humorista'. (DELEUZE, 2006, p. 143)
Mas pode um deus fazer graça com a fé dos humanos? Pode ser deus um enganador? Perguntaria Descartes em suas Meditações (1641). Pode. Pelo menos nos mitos gregos, quando Zeus é, além do mais amedrontador dos deuses, também o mais zombeteiro, não muito diferente do Zeus em Thor: Amor e Trovão. Loki também encarna isso na mitologia nórdica e Thor gosta senão dele por causa disso. Pode-se dizer que é sua relação com Loki que modifica sua concepção sobre si enquanto deus, que o faz olhar para si e seu destino de um modo mais cômico e encontra uma alegria superficial que o faz sair da tristeza profunda na qual se lança em busca de si depois de sua queda da alta sabedoria divina quando abandona o pai, seu povo e seu amor, uma tristeza que se aprofunda principalmente após a morte de Loki e destruição de Asgard e quase totalidade de seu povo. É esta alegria superficial em sua comicidade, uma alegria que somente pode ser superficial, nunca profunda, que nos tira de uma profunda tristeza, porém, sem a destruir, apenas a esconde no fundo de si, é esta alegria superficial o que vemos senão desde o início em Thor: Amor e Trovão na qual o deus não é mais o que parece ou que se espera dele em batalha e não há nenhum problema nisso, pois o fazer graça ou fazer rir também faz parte da fé em deus, no crente, seja ele humano ou divino, na medida em que:
...há uma aventura da fé segundo a qual sempre se é o bufão de sua própria fé, o cômico de seu próprio ideal. É que a fé tem um Cogito [pensamento] que lhe é próprio e que, por sua vez, a condiciona: o sentimento da graça como luz interior. (...) Então, o crente vive não somente como pecador trágico, enquanto privado da condição, mas como cômico e bufão, simulacro de si mesmo, enquanto desdobrado e refletido na condição. Dois crentes nãos e olham sem rir. (DELEUZE, 2006, p. 143. Grifos meus.)
Não é fácil alcançar esta graça divina, alcançar esta luz interior, ter um fé alegre que não é uma fé trágica em deus, que não é uma descrença em deus absolutamente de modo trágico a qual pressupõe a morte de deus para si, a raiva, o ressentimento e vingança em relação a deus, como demonstra Nietzsche. Neste ponto, é necessário pensar menos seriamente em sua afirmação de que "Deus está morto." e perceber o que está em questão nela, pois deus não morreu para Nietzsche propriamente, apenas sua face amedrontadora, mortificadora para o ser humano, como a que aparece no judaísmo, e que, no cristianismo, é reforçada de modo profundamente trágico e triste com a morte de Jesus Cristo, um ser humano considerado filho encarnado de um deus-pai que foi deixado morrer pelo próprio pai, no caso, morrer por engano, já que renasce como deus, a partir de uma graça divina já sem graça alguma para os cristãos. Se este deus morreu para Nietzsche é porque ele somente acredita num deus que saiba dançar como diz Zaratustra em Assim falou Zaratustra (1883/85), um deus que não pode ser compreendido pelo ser humano, somente por um super-homem, não o super-herói extraterrestre, mas um homem superior, que vai além do homem em sua existência trágica mortal, que ultrapassa a si mesmo e percebe senão a graça divina, o rir dos deuses.
Nietzsche se opõe a partir de Zaratustra a uma concepção de deus que não esteja relacionada à alegria da dança, à suspensão que possibilita da realidade ao nos fazer tirar os pés do chão, quando estamos alegre e nos colocamos contra a gravidade da vida em sua seriedade. Esta oposição à concepção de um deus trágico não é apenas em relação ao cristianismo, mas também aos deuses concebidos pelos gregos, principalmente os interpretados a partir de Platão, bem como a todos os deuses. Neste sentido, parece se assemelhar a Gorr em seu destino ao escrever o Crepúsculo dos ídolos (1888), sua penúltima obra na qual retoma suas obras anteriores e visa destruir com um martelo todos os deuses-ídolos aos quais os seres humanos se submetem de modo trágico. Porém, sua motivação não é um ressentimento, raiva e desejo de vingança como quer Gorr, pois deseja uma transvaloração dos valores que damos para tudo em nossa vida, inclusive a deus, mudando a forma trágica como o encaramos e encaramos a vida, buscando nos trazer mais alegria que se estenda superficialmente diante de todo sofrimento num desejo de ir além de si mesmo.
Não é fácil para um ser humano encontrar esta alegria superficial em sua vida, tão pouco para um filósofo, também ele preso a uma imagem celeste ou mundana, profundamente terrestre, de si mesmo., como Deleuze demonstra em sua obra Lógica do sentido (1969). Primeiramente, a imagem de um filósofo como "um ser das ascensões que sai da caverna, eleva-se e se purifica na medida em que mais se eleva" (DELEUZE, 1974, p. 131), e encontra deus no céu, de modo trágico. No caso, a imagem tradicional do filósofo como alguém que deseja a sabedoria, mesmo que não a consiga, pressuposta a partir das palavras que compõem a própria palavra filosofia em grego, philo (desejo ou amor) e sophia (sabedoria). Esta é a imagem do filósofo a partir de Sócrates descrita por Platão em suas obras como exemplo para todos aqueles que desejam ser filósofos e que difere da imagem dos primeiros filósofos, chamados de "pré-socráticos" que "instalaram o pensamento nas cavernas, a vida na profundidade" e "fizeram filosofia a golpes de martelo" (DELEUZE, 1974, p. 132), a imagem que o filósofo deve ter para Nietzsche, no caso, o filósofo do futuro cuja imagem é seu Zaratustra, segundo Deleuze. Há, porém, uma terceira imagem do filósofo, a ressaltada principalmente por Deleuze, um filósofo que não aspira e não encontra sua sabedoria nas alturas celestiais em contato com os deuses e tão pouco na profundidade da terra distanciando-se de deus, mas na superfície, a imagem do filósofos Megáricos, Cínicos e Estoicos, que são gregos, mas não mais em sua profundidade terrestre ou celestialidade, pois:
de tanto serem superficiais, como esses gregos eram profundos! (...) A salvação, eles não a esperam mais da profundidade da terra ou da autoctonia, muito menos do céu e da Ideia, eles a esperam lateralmente do acontecimento, do Leste - onde, como diz Carroll, se levantam todas as boas coisas. (DELEUZE, 1974, p. 133)
O que caracteriza o filósofo não é mais a profundidade do seu pensamento distanciando-se dos deuses por uma certa descrença neles, nem tão pouco o desejo de se aproximar dos deuses a partir de um desejo de sabedoria, com a crença de que esta possa levá-los a viver entre os deuses. O que caracteriza a imagem do filósofo da superfície é a zombaria, o humor. "Ao 'bipede sem plumas' como significado do homem segundo PIatao, Diógenes o Cinico responde atirando-nos um galo com plumas." (DELEUZE, 1974, p. 137) O humor, como a superfície, inverte constantemente altura e profundidade, não se detém nem num, nem outro. Joga com a altura e a queda nas profundezas da terra com suas anedotas nos distraindo da seriedade da vida, de sua terrível realidade, em seu peso e profundidade e também altura celestial, ao mesmo tempo que nos faz pensar em tudo isso como na dança, fazendo saltar e cair alegremente na superfície, sem nunca alcançar os deuses no céu e tão pouco nos submetermos em decadência à profundezas da terra.
Esta aventura do humor, esta dupla destituição da altura e da profundidade em proveito da superfície, é primeiro a aventura do sábio estoico. (DELEUZE, 1974, p. 139)
Thor: Amor e Trovão é esta aventura do humor encontrada por Deleuze na sabedoria estoica na qual o filósofo encontra a sabedoria no humor, no riso, e não numa verdade profunda em si mesmo ou divina fora de si, ambas trágicas. Thor é o crente que ri da própria fé, o filósofo que ri de si próprio, um deus que ri e sabe dançar, o filósofo do martelo que já não é mais um filósofo grego. A alegria que sentimos em seu último filme é a alegria de uma fé, graça divina ou luz interior que somente encontramos quando a existência, mortal ou divina, não nos pesa mais, quando o amor ao saber não é um amor trágico, mas um amor comediante, o amor que nos alegra tão somente com a ideia do ser amado em nossa mente, como diz Espinosa, o filósofo da graça para Deleuze. É este amor o que faz Thor se alegrar, em princípio seu amor por si, mas também por seu povo, e em muitas partes do filme, o amor por seu martelo Mjolnir em poder de Jane Foster, do qual sente ciúmes dela com ele, assim como seu machado Rompe-tormentas sente ciúmes de si por desejar Mjolnir. Sobretudo, é o amor por Jane Foster, a Poderosa Thor, e ela por si, que o alegra e, por fim, o Amor, a filha de Gorr ressuscitada quando a Eternidade realiza o seu desejo de trazê-la de volta.
A morte e ressurreição da filha de Gorr como Amor não é apenas o momento de redenção de Gorr, o reencontro de sua fé em deus, no caso, noutro deus, em Thor, é também o único momento de alegria dele no filme ao reencontrar sua filha viva. É também a alegria de Thor depois da morte de sua amada, Jane Foster, que estava com câncer e sobrevivia pela força do martelo Mjolnir, mas abdicou da vida ao devolvê-lo para Thor tentar impedir Gorr. Thor pede que a ressurreição da filha de Gorr seja o desejo dele em vez da morte de todos os deuses por vingança, mas o Carniceiro dos deuses não quer que a filha volte, pois está morrendo sem o poder da Necroespada que o matinha vivo, e ela ficará só no mundo. Neste momento, seu destino se confunde com o de Jane Foster que lhe diz, porém, que ela não ficaria só depois de sua morte, sugerindo que Thor cuidará dela como sua filha, o que faz mudar então o desejo de Gorr, do ódio para o amor, e acreditar novamente num deus, Thor, a quem pede, por fim, que proteja sua filha.
A comicidade de Thor: Amor e Trovão, iniciada em Thor: Ragnarok, ambos sob a direção de Waititi, não faz dele um filme menor dentre seus outros filmes, nem dentre outros filmes do Universo Cinematográfico Marvel, tão pouco leva a uma decadência do MCU em termos de narrativa como pensam alguns críticos a partir da comicidade de Thor em seus dois últimos filmes. Muito menos a distração e diversão a que nos leva como em outros filmes de super-herói, mesmo sem serem cômicos, não quer dizer que estes filmes não são cinema ou obras de arte, ou ainda, que representam a decadência e morte do cinema como pensam Scorsese e outros cineastas que não veem mais o cinema como uma distração da terrível realidade como pensava Fellini, e também Sorrentino. Isto é, que não veem mais no cinema uma diversão, apenas uma coisa séria, uma drama ou uma tragédia na realidade, raivosos e ressentidos em busca de um espaço na indústria cultural cinematográfica que já não se interessa mais tanto por eles, mesmo que sejam grandes cineastas com filmes grandiosos e expostos em diversas salas de cinema no passado.
Os carneiros em Thor: Amor e Trovão não são definitivamente o carneiro sacrificado ao deus abraâmico. Não são dados a Thor em sacrifício, são dados para fazer troça com ele, para enganar a deus, para rir de Thor e dos deuses, em troca da graça divina deles conosco. São literalmente para fazer rir durante todo o filme com seus gritos-balidos desesperadores a irritar a todos e que se calam somente quando Thor brinca dizendo que se os carneiros não servirem para nada podem ser comidos. Há muito o que pensar na comicidade deste filme, nos filmes da Marvel, nos deuses e na filosofia, nesta graça divina que é o amor e a alegria como luz interior que encontramos na superfície, nos acontecimentos mais banais, com ou sem deus, mas:
O que é que o sábio encontra na superfície? Os puros acontecimentos tornados na sua verdade eterna (...) puras singularidades tomadas no seu elemento aleatório... (DELEUZE, 1974, p. 132-33. Grifos meus.)
Singularidade é uma das super-heroínas das histórias em quadrinhos da Marvel que a super-heroína Amor no filme Thor: Amor e Trovão parece representar e ganhar destaque nos próximos filmes do MCU, segundo alguns críticos. Como se percebe, talvez nós, filósofos tenhamos alguma coisa a dizer e a aprender com os filmes da Marvel, e com os cineastas como aprende Deleuze em seus dois livros, ou ainda, temos a dizer e aprender com as histórias em quadrinhos que os inspiram, mesmo que não saibamos fazer filmes ou criar histórias em quadrinhos, não saibamos criar perceptos e afetos a partir da invenção de blocos de movimento/duração como fazem os cineastas, apenas criar ou inventar conceitos como diz Deleuze em O que é o ato da criação? (1987), depois em O que é filosofia? (1992).
Já não estamos no mesma superfície. Não é o mesmo espaço-tempo que une filósofos e artistas-cineastas numa superfície, são espaços-tempos diferentes criados por si mesmos sobre a realidade, uma terrível realidade, uma realidade trágica. Não é a um mesmo povo e a mesma terra que a arte cinematográfica e a filosofia apelam na realidade distraindo dela, pois "Não há obra de arte não faça apelo a um povo que ainda não existe." (DELEUZE, 2016, p. 343) São a povos e terras por vir, como para os quais apelam os filmes da Marvel e o cinema, bem como devem apelar os filósofos, fazendo de uma não-filosofia a filosofia do futuro, pois "O filósofo deve tornar-se não-filósofo, para que a não-filosofia se torne a terra e o povo da filosofia." (DELEUZE E GUATTARI, 1992, p. 142)
O que há de comum entre o ato de criação na arte e na filosofia é a criação de um povo e uma terra que não existem na realidade, que nos distraem da realidade e que devêm a partir dos livros de filosofia e obras de arte ao conterem "uma soma inimaginável de sofrimento que faz pressentir o advento de um povo" e que "têm em comum resistir, resistir à morte, à servidão, ao intolerável, à vergonha, ao presente." (DELEUZE E GUATTARI, 1992, p. 142. Grifo meu) É na velhice que a questão O que é a filosofia? se coloca, dizem Deleuze e Guattari, não de modo trágico, à beira da morte, mas de modo cômico, livre, quando se "desfruta de um momento de graça entre a vida e a morte", algo que o cinema também oferece segundo eles com seus "dons da terceira idade". O último filme da saga de Thor, no qual sua morte se antecipa, é um destes dons oferecidos pelo cinema, pois há nele o amor e graça divina para além do seu amedrontador trovão.
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