O eu que, logo, não sou
Em 1956, Frantz Fanon fez uma conferência intitulada "Racismo e Cultura" no I Congresso Internacional de escritores e artistas negros, no Anfiteatro Descartes da Sorbonne. Ela é um diagnóstico de imprescindível leitura para o que acontece atualmente nos povos colonizados, e colonizadores, sobre o racismo. A atualidade de sua análise, ao mesmo tempo filosófica, histórica, sociológica, antropológica e psicológica do colonizado e do colonizador, demonstra como a relação do racismo com a cultura é temporal. O fato de ter sido realizada no Anfiteatro Descartes, tem um significado a mais na medida em que pensamos no eu do cogito cartesiano penso, logo existo.
Desde Descartes, filosoficamente, e antes dele no cotidiano, nos acostumamos a falar de nós, seres humanos, a partir de um eu segundo o qual o nós é pensado. Dito de outro modo, nos acostumamos a falar de todos os seres humanos, sejam quantos forem, a partir de um pensamento individual, do que cada indivíduo diz em seu pensamento, de um eu penso, logo existo, e tudo existe em conformidade ao pensamento de um eu, a partir do que o eu pensa, se apropriando do pensamento como seu e tornando seu o pensamento de todos, um pensamento universal. Traduzindo em miúdos, começamos a generalizar o pensamento a partir do que o eu pensa em particular, como se o que pensasse em seu quarto, casa ou caserna, como Descartes, fosse a verdade em relação ao pensamento.
Descartes trouxe para a filosofia o senso comum do qual ela buscou se afastar desde os gregos como um bom senso. No caso trouxe uma compreensão da realidade a partir de um indivíduo que compartilha seu pensamento ou senso de realidade com os outros como sendo um bom senso ou pensamento, porém, sem questionar seu pensamento, sem o pôr em dúvida, um problema que Descartes vai tentar resolver a partir de seu pensamento ao pôr em dúvida tudo que aprendeu com o senso comum visto como bom senso. Se não há problema em cada indivíduo compartilhar com outros o seu pensamento sobre a realidade, isso não quer dizer que o pensamento compartilhado seja bom, que não possa ser questionado e, até mesmo, negado de fato como um pensamento falso sobre a realidade, podendo ser apenas um sonho, uma ilusão, uma imaginação ou obra de um gênio maligno, isto é, que seja um mal senso em vez de um bom senso na realidade diferente do que pensa aquele que compartilha seu pensamento.
O que Descarte põe em dúvida não é o pensamento propriamente dito, inegável em sua existência no ser humano desde os gregos ao dizerem que o ser humano é uma animal racional, isto é, que pensa. O problema é o eu que pensa e, principalmente, que pensa que o que pensa é verdade de um modo comum, como senso comum pressuposto a um bom senso. No caso, um eu que é questionado a começar por ele, ao se pôr em crise existencial quanto ao que pensa, se é verdade o que pensa do mundo, de si e de deus. É este encontro abissal dele com o eu que gera a dúvida que vai se tornar o método de seu pensamento questionando tudo que os outros pensam, mas também o que ele pensa enquanto outro pensado a partir do eu, no caso, de um eu que não é ele, eu que é também um outro para si.
Eis o problema. Ao pensar a partir de um eu penso não é a partir de si que Descartes pensa filosoficamente, nem mesmo nós em nosso cotidiano, mas de um eu que é outro para si e a partir do qual se pensa os outros em relação a si. Ao dizer penso, já não é Descartes que pensa, é um eu/outro que pensa e a partir do qual ele é pensado como objeto ou se pensa enquanto sujeito, que pensa sua existência, sua identidade. Não é Descartes que pensa em si, é um eu que não é ele que o pensa e o faz pensar em si. Não é a uma ideia clara e distinta de sua existência enquanto sujeito que pensa a que ele chega primeiramente quando diz (eu) penso, logo existo, é à ideia clara e distinta de um eu que não é ele e, sim, outro.
Descartes encontra no eu pensado em sua existência a partir do pensamento um meio de se expressar, isto é, expressar a si e encontra o eu como sendo si mesmo, o que ele é, sua subjetividade, sua identidade mesmo que o eu seja um outro para si. O que é em si, a partir de seu pensamento, é um eu, ainda que seja outro. Eu para si e outro para os que não pensam como ele, mas que podem pensar semelhantes a si na medida em que compartilha o seu pensamento (senso) com os outros de modo comum como sendo um bom pensamento, qual seja, pensar-se como eu como ele pensa. No caso, afirmar sua identidade, subjetividade, existência a partir de si mesmo, isto é, de um eu.
É só aparentemente que ao se pensar e se afirmar como eu não se pensa como os outros, como os outros pensam, pois o pensamento do eu é, desde o seu princípio, o pensamento comum a todos, o modo como se pensa no cotidiano e que Descartes trouxe para o modo de pensar filosófico fazendo do eu algo universal, isto é, algo que todos pensam, só não afirmavam antes. Ele traz para o pensamento a ideia clara e distinta de uma universalidade ou generalização do pensamento a partir de um ponto de vista individual como se o que eu penso, todos pensam, ou devem pensar, na medida em que todos são seres humanos como eu que pensam, logo, pensam como eu. Se os gregos fizeram do ser humano um ser que pensa, um ser racional, Descartes faz do ser racional um ser que pensa em si como eu, em contrapartida, que não pensa mais em si, apenas no eu que é, que se esquece de si no pensamento do eu que não é ele, mas com o qual se identifica ao pensar no eu como se fosse ele, como sendo o que é na realidade, de verdade, ainda que seja um outro que não é ele.
Ao pensar e dizer (eu) penso, logo existo, não é à sua existência que Descartes se refere, é à existência de um eu ao qual ele se refere. Ele é um eu, outro que não é ele. Sua existência não se define mais a partir de si, dele, e, sim, a partir do pensamento do eu e do que o eu pensa, de sua consciência. A terceira pessoa que é também um impessoal torna-se a primeira pessoa ao pensar no eu quando seu si é posto em dúvida de modo radical e não simplesmente seu pensamento. É o que pensa de si o problema e não o que pensa propriamente. Para negar o que outros pensam a partir de um senso comum, segundo o método cartesiano, é preciso duvidar do que os outros dizem, mas, principalmente, duvidar de si, de tudo que aprendeu com os outros e que não é mais deles somente, pois é seu na medida em que pensa como eles, que é o seu pensamento de si em princípio como igual a eles em pensamento.
Não se pode começar a pensar sem uma dúvida quanto ao seu pensamento, que não é um pensamento puramente individual, pois advém a si a partir dos outros e que se torna o seu pensamento na medida em que é comum ao que os outros pensam, e é bom pensar como eles, diz o bom senso. Não existe diferença, em princípio, entre o que se pensa e o que os outros pensam, pois é um senso comum o que é pensado por si. Todos os seres humanos são mortais, logo, ele, se é ser humano, é um ser mortal. Este é um pensamento comum, um senso comum, por mais filosófico que tenha sido posto. A questão é: qual a diferença entre ele e outros seres humanos mortais que pensam como ele? É no sentido de uma diferença de pensamento em relação aos outros que Descartes pensa em si, a partir de si, quando pensa no eu como sendo o que é, uma substância, quando pensa no eu a partir de seu pensamento do ser, metafísico e ontológico, mas não é a uma diferença em relação aos outros a que chega na medida em que a diferença entre ele e os outros deixa de existir quando todos pensam em si a partir do eu como ele, em que todos dizem (eu também) penso, logo existo, sou eu como você, isto é, a partir do momento em que nos afirmamos como um eu assim como ele.
Entre eu e o outro não há diferença, apesar de se pensar uma diferença a partir do momento em que se pensa eu, isto é, quando o eu é pensado em relação àquele que pensa em si. Em, princípio, quando se diz (eu) penso, é uma diferença que se coloca em relação ao senso comum, ao que todos pensam, ao todos os seres humanos pensam, pois o que se pressupõe ao dizer (eu) penso é que o que é pensado é diferente do que os outros pensam, não é o que os outros pensam. O eu é um outro em relação aos outros, que não pensa igual aos outros, que pensa diferente. Tudo muda, porém, quando todos pensam no eu, pois o que é pensado a partir do eu não é diferente do que outro eu pensa, apesar do pensamento poder ser diferente. O pensamento é diferente, porém, o eu que pensa não. Não há nenhuma diferença entre o pensamento do eu e de outro eu, mesmo que os pensamentos sejam diferentes. Não há outro no pensamento do eu, apenas eu que pensa o que o outro pensa, pensando o outro como um eu que pensa como eu, e que deve pensar como eu quando compartilho consigo o meu pensamento, que é dele também na medida em que pense como eu e se pense como eu assim como eu penso.
Eu não sou diferente em relação a outro que pensa como eu, no caso, de modo universal, a qualquer um que pensa, não importa qual seja seu pensamento. Não é um pensamento próprio, é um pensamento comum, um senso comum de pensar a partir do eu tal o que Descartes pensou e continuamos pensando como ele. Dizer (eu) penso, logo existo, não é pensar o que sou, minha existência, é pensar o eu que, logo, não sou. É pensar em si como não sendo mais quem é e, sim, um eu como os outros, um indivíduo igual aos outros, que pensam como eu penso e, assim, são iguais a mim no pensamento.
Sou diferente dos outros quando não penso como os outros a partir do pensamento no eu, quando penso no outro que não sou quando digo eu, outro que, se é visto como eu pelo senso comum e por um bom senso que não pensa em si no questionamento do eu que é para os outros, não deixa de ser outro, aquilo que não sou. Se eu é um pensamento em si em relação ao outro, eu não deixa de ser um pensamento do outro em relação a si, do outro que sou em relação ao eu com o qual sou identificado no pensamento e a partir do qual me identifico em relação aos outros e sou identificado pelos outros.
Ao mesmo tempo que o eu origina um pensamento diferente em relação ao senso comum e o bom senso, ele reproduz um senso comum e bom senso no pensamento, pois nada mais comum desde então do que se pensar no eu e não no outro que ele nega ser desde o princípio. A questão que se coloca, e que se pode pensar a partir de Fanon, retomando Descartes, é senão como a um colonizador é fácil se afirmar em seu pensamento, como uma identidade se coloca desde o princípio a si sem questionamento, sem qualquer si que o ponha em dúvida. Como qualquer pensamento de uma alteridade em relação ao si dos outros é apagada por si ao se referir a si como eu, ao dizer eu, penso, logo, existo. Em contrapartida, como no pensamento de si enquanto eu, nesta afirmação de si mesmo, é já um pensamento colonizador que se interpõe no qual o outro, o si, deve deixar de ser quem é para se afirmar a partir de um eu colonizador, que determina quem se é, que objetifica a si enquanto sujeito e em sua identidade.
Ao se pensar no eu em relação a si do cogito de Descartes é já um pensamento colonialista que se descortina, pois, o eu coloniza não por menos o si, o outro, o outrem, que se é e que não é o eu. O eu estabelece um centro de poder no pensamento que submete o si, o que não é, a si, que retira de si qualquer possibilidade de afirmação de si, devendo se negar para se afirmar. O eu é uma afirmação diante do si, do outro, uma negação de si e do outro afirmando-se por si mesmo.
Num pensamento colonialista, o eu é afirmação do colonizador sobre o colonizado, sobre o outro que é também ele enquanto si. Um colonizador que é ele ao se afirmar enquanto eu diferente dos outros primeiramente, porém, que apaga sua diferença em relação aos outros se dizendo igual a eles como ser humano na medida em que é confrontado por estabelecer um apartheid em relação aos outros em seu pensamento da diferença à sua uma identidade, isto é, ao estabelecer um racismo em seu pensamento, que é quando a diferença que estabelece em relação a si, aos outros, se torna uma violência dos outros, quando volta para si para além do que é enquanto sujeito em sua identidade.
É somente quando percebe que seu pensamento de si mesmo como os outros enquanto eu não é o que é em si, quando não há identidade entre si e o eu, que há um pensamento de si diferente, da diferença, do outro em si, si que não é o seu eu, que não é igual a ele em pensamento, posto que não há pensamento do eu em si. Uma identidade de pensamento somente é possível quando se pensa no eu, como o colonizador, e não em si, no outro, no outrem que se é, no colonizado, quando se deixa de pensar em si, no outro, colonizado, para pensar num eu igual ou semelhante ao colonizador.
O esquecimento de si é o esquecimento da colonização do outro que se é em relação ao eu colonizador, que determina quem se é de forma total, quando se passa a se afirmar quem se é a partir de um eu que é outro em relação a si, mas visto como igual a si, mais ainda, quando o outro é divino, isto é, idolatrado como um deus no qual se funda o pensamento de Descartes por fim. Poie é a um eu que é já deus, um espírito divino, mesmo que seja maligno, a uma subjetividade e consciência divinas com a qual se identifica, por fim, e já da qual não se pode escapar muitas vezes quando se pensa no eu dela, isto é, quando deus é encarnado ou personificado numa pessoa e deixa de ser também algo impessoal, um si, para se tornar um eu, no caso, um eu superior. E é não por menos como um eu superior como deus e enviado por deus que o colonizador se afirma diante de si e do outro, não mais humano, um deus, ainda que seja uma besta fera maligna.
Enquanto o colonizador se afirma, portanto, em seu pensamento e sua existência como um eu, consciente e divino, o colonizado, o outro somente pode se afirmar a partir do eu colonizador, e é senão esta afirmação do outro que se é em relação a outros a partir de um eu com o qual cada um passa a se identificar, e todos os outros passam a ser identificados a partir dele, o princípio de um pensamento colonialista, colonizador. Ao se afirmar a partir do pensamento como um eu diante de outros e afirmar os outros como eu no pensamento é um pensamento racista e colonizador a partir de uma identidade o que surge sem questionamento. Pelo menos até que o eu seja posto em dúvida por si, pelo outro, pelo outrem, de modo não por menos violento ao eu, à integridade de sua identidade que se desintegra no pensamento do outro de modo crítico e existencial, quando sua subjetividade é abalada em sua estrutura.
A questão que Fanon coloca sobre a relação do colonizador e do colonizado pode ser pensada assim do ponto de vista do eu ou do sujeito em seu cogito a partir de Descartes na medida em que este eu é a constituição de uma identidade que se estabelece de modo colonizador e racista em relação aos outros colonizados e racializados e que dissimula sua colonização e racismo num discurso de igualdade de todos como seres humanos ao fazer todos pensarem como ele, isto é, como eu, como o colonizador. Enquanto povos colonizados e racializados, ameríndios, africanos, latino-americanos, dentre outros, já não podemos pensar no eu, numa afirmação do eu a partir de um pensamento, em uma identidade, sem pensarmos já no que não somos, naquilo que Descartes não pensou, não quis pensar, este si que se é independente do eu, em relação ao qual toda semelhança e identidade com o outro não é possível. O eu que, logo, não sou, é o eu colonizador, racista, aquele com o qual me identifico e a partir do qual sou identificado, mas com o qual já não posso mais me identificar, o qual é preciso pensar em si, isto é, a partir do outro que sou diferente do eu que me determina em seu senso comum e bom senso partilhado por todos no cotidiano.
Quem sou? O que si é? Eis a questão que retorna quando o eu pensado que somos já não mais nos determina em nossa identidade, e é a partir dela que devemos nos colocar não mais como um eu e, sim, já como um outro, um outrem que não se submete a uma colonização e racismo em seu pensamento.
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