A liberdade do outro


A liberdade do outro é um tema recorrente na questão da justiça. Recentemente, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que as mulheres não têm a liberdade de negar a geração de uma vida nos seus corpos. Que também seus corpos não lhes pertence no momento em que há uma fecundação, mesmo quando a relação for indesejada, no Brasil, foi o que uma juíza e promotora decidiram, pois, para elas, nem mesmo uma criança que foi estuprada e engravidou, correndo risco de morte, com sua gravidez, tem o direito a negar a geração de uma vida enquanto mulher, tão pouco outra estuprada têm o direito de dar seu filho para adoção. Para além das questões feministas, o que se coloca em questão aqui é a liberdade do outro que minorias são obrigadas a requererem considerando-se, em princípio, que a liberdade não é um direito delas, mas uma concessão daqueles que estão no poder econômico, político e da justiça 

A questão da liberdade do outro, e a limitação em princípio dela, Ã© muito bem colocada por Lévinas, a partir do qual se pode pensar o quão problemático é para as minorias terem o direito à liberdade, algo que até mesmo um feto tem do ponto de vista de uma maioria cristã, mas mulheres, negros, indígenas, lgbtqia+, estrangeiros, pobres e trabalhadores não têm. Fetos, para cristão são considerados livres antes mesmo de nascerem e sem que seja possível mesmo prever se vão nascer ou não segundo a vontade arbitrária do deus cristão, mas as minorias, mesmo com atos em defesa de si e mortes em defesa de seus direitos, ainda assim não são livres. A questão de quem tem ou não direito à liberdade nestes casos, bem entendido, coloca em questão não apenas a liberdade do outro, mas o que se compreende por liberdade, se ela é um ato de um existente ou se é uma condição da própria existência.

Vista de um ponto de vista econômico, social, político e jurídico, a liberdade é o ato de um eu que decide quem é livre e quem não é livre, em princípio, do outro. É uma decisão judicial, o resultado do julgamento de um indivíduo que decide quanto à liberdade do outro. Não importa se é um juiz ou uma Suprema Corte, ou de alguém no cotidiano, a decisão sobre a liberdade é de um indivíduo que julga e decide quem é e não é livre. A liberdade não é um direito, é a concessão de um privilégio, de um status social àqueles que podem gozar dela até que indivíduos decidam que não são mais livre e resolvam prendê-lo. É uma liberdade condicional que depende do ato de um existente, bem como de sua vontade ser ou não livre.

O direito à liberdade é, na verdade, um dever, o dever de ser livre conforme a vontade de quem julga e decide sobre a liberdade, no caso liberdade. No caso de minorias, uma liberdade que depende da vontade de uma maioria entendida não numericamente, mas pelo privilégio de quem a compõe, e, no caso das maiorias, uma liberdade que é concedida a si deste o princípio, pois é a liberdade de um em em relação ao outro, que nega a existência da liberdade do outro desde o princípio, e faz da justiça a sua vontade.

É o eu que decide, por sua vez, a liberdade do outro, se o outro é ou não livre. A liberdade do outro depende da vontade do eu, de um indivíduo que tem, desde o princípio, a liberdade, inclusive, de julgar outro. O outro é julgado pelo eu e não o eu pelo outro. Este é o princípio da justiça que é uma defesa do indivíduo, isto é, do eu, não do outro, isto é, daquele que é quer a justiça para si e não daquele que requer dividir a justiça consigo, de fazer que a justiça seja dividual e não individual para que seja livre tal como o eu.

A busca de mulheres, negros, indígenas, lgbtqia+, pobres e trabalhadores por justiça é a busca da liberdade que não têm diante da justiça perante os indivíduos que a detêm econômica, social e politicamente. Isto faz da liberdade não um direito de todo cidadão, mas de apenas alguns cidadãos por uma justiça que privilegia o eu individual em sua liberdade e liberalismo em detrimento do outro. A liberdade enquanto resultado de um ato é o ato injusto de um eu diante do outro em relação ao qual se nega o direito de ser livre, se nega o direito de uma liberdade e faz da liberdade, deste modo, uma concessão à existência do outro, que lhe pode ser retirada a qualquer momento, e não um direito deles como, por exemplo, os fetos têm antes mesmos de nascerem e sem nem ao menos se saber se nascerão, e mesmo que matem suas mães com seu nascimento e sejam o resultado de um estupro e a fonte de uma depressão para mulheres que não os desejam.

Se partimos de Lévinas para pensar a questão da liberdade do outro entendido enquanto minoria é por ele nos fazer pensar numa liberdade do outro que independe de um eu, num outro que é livre independente do julgamento de um eu, de sua ação, de qualquer ato seu, inclusive, do seu ato de pensar, e de qualquer julgamento do outro a partir do pensamento do eu. Em outras palavras, pensar um liberdade do outro em relação ao egoísmo do eu que pensa em si mesmo livre e para si mesmo a liberdade negando-a ao outro. O outro não pode ser tematizado e ser objeto para o eu, segundo Lévinas, mesmo que venha a ser tematizado e objetificado pelo eu que visa compreendê-lo e, a partir de uma compreensão dele, detê-lo, limitá-lo, subordiná-lo, dominá-lo, cerceando a sua liberdade a partir de um julgamento dele. O outro é livre independente de qualquer ato do eu porque infinito enquanto o ato do eu, de um indivíduo, é finito.

A relação do eu com o outro pressupõe, desde o princípio, uma liberdade do outro em relação ao eu, bem como uma outra justiça, que não tem como princípio o eu em sua liberdade egoísta, a qual, se o limita em alguns aspectos é porque não pode permitir que eu se mate ou alguém semelhante e idêntico a si, que tenha os mesmos privilégios que ele. A justiça do eu não é a justiça para o outro, pois, naquela, há um privilégio de uma liberdade que é negada ao outro, até mesmo de pensar, uma liberdade do outro que é limitada pelo pensamento do eu que não tolera que se pense outro pensamento, que o pensamento seja dividido, compartilhado, posto que deve ser individual e ter uma liberdade de expressão irrestrita.

A liberdade do outro, pensada aqui a partir de Lévinas, sob este aspecto, é uma liberdade livre de julgamento, não porque o outro seja livre para fazer o que quiser, mas porque a liberdade não é concedida a si por um ato qualquer do eu, é a condição de existência do outro. Sem liberdade, o outro não existe. Condição da sua existência, e não concessão à sua existência, a liberdade do outro não pressupõe nenhum ato do eu, não é a defesa de um direito concedido por ele, não é a busca por uma liberdade, é o princípio de sua existência. A liberdade do outro é aquilo que o eu não tem, posto que a liberdade deste é concedida por eu como ele, e a do outro é simplesmente, dele, advinda com sua existência.

Quando o outro se submete a requerer sua liberdade perante o eu e seu julgamento, como mulheres o direito de abortarem por não desejarem gerar uma vida igual como homens fazem com seus filhos rejeitando-os desde a fecundação em muitos casos e negando a eles qualquer paternidade, há a submissão do outro à justiça do eu que decide se o outro tem o direito à liberdade. Há uma negação do outro quanto à sua liberdade em detrimento do eu, uma submissão ao julgamento do eu. O outro deixa de ser livre quando requer a liberdade em relação ao eu, quando visa ser compreendido pelo eu, quando busca a justiça do eu, que não visa o outro senão o si mesmo, aquele que pensa semelhante ou idêntico ao eu, algo que o outro, em princípio, não é.

A liberdade do outro não está no poder do eu, mas ela se submete ao poder deste eu, eis o que nos faz pensar Lévinas. Ela é a condição de existência do outro, mas passa a ser uma concessão à existência dele, posto que o eu decide se o outro é livre ou não. Sem a liberdade não há o outro, há apenas o eu livre para fazer o que quiser independente do outro. A liberdade do outro é o que limita o eu em sua liberdade e, na medida em que aquela é suprimida, o outro deixa de existir para o eu, o eu não tem mais limite em relação ao outro submetido que é submetido totalmente ao poder do eu, como mulheres são submetidas ao poder dos homens, negros aos dos brancos, indígenas aos que querem colonizá-los, lgbtqia+ aos heterossexuais.

A justiça é um limite do eu em relação ao outro, a não submissão do outro ao poder do eu, a liberdade do outro em relação ao eu, ao seu ato e pensamento. Sem uma liberdade do outro não há possibilidade de justiça. A liberdade do outro é condição da existência do outro, bem como da existência da própria justiça, que não existe sem a pressuposição de uma liberdade do outro. Decidir quem é e quem não é livre não é uma decisão da justiça, pois a liberdade do outro antecede qualquer decisão do eu em relação a si. A presunção de inocência não é do eu, é do outro, pois somente o outro é inocente em relação a um julgamento tendo em vista que o eu julga, em princípio, a partir de si mesmo e, portanto, não é inocente, mas culpado, em princípio, em seu julgamento do ouro.

Nenhum eu pode decidir sobre a liberdade do outro, eis o princípio da justiça do outro que é livre por si mesmo, livre de qualquer julgamento do eu porque não é um eu. A liberdade do outro não é um ato do eu, nem mesmo do pensamento do eu, é a condição de sua existência, do existente para além do eu, que não pode ser compreendido pelo eu em sua ação e pensamento. O pensamento do outro é já a liberdade do outro quanto ao pensamento e ato do eu.

A liberdade enquanto condição da existência do outro, e não concessão a ele, difere da liberdade do eu posto que não é preciso nenhum ato para instaurá-la. A liberdade do eu depende do seu ato, do ato de seus semelhantes ou de quem é pensado como idêntico a si, uma liberdade apenas ilusória, posto que é submetida à vontade de um eu para ser livre, do contrário, será preso. A liberdade do eu é uma concessão que depende dos seus atos que não são livres a menos que se decida que são e, mesmo que o eu julgue que são, pois o julgamento do eu depende do julgamento de seus semelhantes, e não é nada sem o julgamento deles. O eu pode exercer sua vontade livremente desde que não o destrua ou quem se assemelha a ele, o que pressupõe a própria sobrevivência do eu em sua identidade. É uma limitação do poder do eu apenas aparentemente, pois é uma extensão do seu poder até o limite em que pode se destruir e destruir seus semelhantes, destruindo os indivíduos que tem a mesma liberdade que ele, e o julgamento de sua liberdade e cerceamento dela é apenas retroativa ao seu ato, nunca preventiva como é, no caso, do outro cujos atos são julgados pelo eu antes mesmo de acontecerem, pressupondo a si a culpa por um ato que ainda não cometeu, nem se vai cometer.

A liberdade do outro é a liberdade quando ao julgamento do eu. O eu pensa que é julgado pelo outro, mas é julgado por si mesmo, por querer ser semelhante, igual, idêntico, por não querer ser outro, ter a liberdade do outro. O eu recusa a liberdade do outro incapaz dele próprio ser livre. Nega ao outro a liberdade que não consegue ter. O desejo do eu é ser livre como o outro, posto que sua existência é a ausência de liberdade, negada a si por seu próprio julgamento, por ser incapaz de não julgar, de libertar a sua vontade de um julgamento do outro e, em contrapartida, de si mesmo.

A liberdade que o eu nega ao outro é a que nega a si mesmo. Ele tem a liberdade de negar a liberdade que o outro não tem, posto que o outro é livre independente de qualquer julgamento, posto que não julga a si mesmo e nem o eu. O outro não julga, é jugado, em princípio, em sua liberdade, a qual se busca retirar para conceder a ele como se retira do eu e concede a posteriori a liberdade a si. Em princípio, uma liberdade retirada e concedida por um deus, por seguinte, pela representação de deus pelo eu que retira do outro a liberdade para lhe conceder a posteriori.

Pensar a liberdade do outro é pensar a liberdade em relação ao eu, quanto ao julgamento deste, que não se confunde com a liberdade do eu fazer o que quiser, muito menos com a vontade de um deus. O outro não faz o que quer porque sua vontade é já livre e não a vontade de um eu que decide o que quer e não quer fazer. Não há nenhuma decisão do outro quanto à vontade, posto que é a sua vontade, sem qualquer possibilidade de julgamento por um eu. Em contrapartida, a responsabilidade pela sua vontade é sua, e não de um eu que julga a vontade do outro como responsável ou não. Qualquer ato do outro, em suma, é do outro, e o eu não tem nenhum poder sobre ele, não o pode impedir senão retirando-lhe a liberdade, isto é, a sua própria existência, impedindo o outro de ser livre.

Qualquer decisão do eu sobre o outro retira deste a sua liberdade. O outro não é um eu. Pensá-lo a partir do eu, como um "outro eu", é negar a liberdade do outro independente do eu, é ver o outro como um reflexo de si mesmo e que, como tal, deve ser e agir semelhante e idêntico a si. Pensar o outro enquanto reflexo do eu, igual ou semelhante ao eu, é retirar dele sua liberdade de existir.

Quando minorias, como as mulheres, requerem qualquer direito, o que requerem é a liberdade enquanto outros em relação a uma maioria. Não se trata de um eu que almeja ser livre, é um outro que é livre, mas que é submetido ao julgamento do eu em sua liberdade, cuja liberdade foi retirada em princípio, independente de qualquer crime já julgada como culpada. Nenhum homem é julgado por abortar sua paternidade como a mulher é julgada por abortar sua maternidade, pois ao homem é concedido o privilégio da liberdade de não ser pai enquanto à mulher se é determinado que seja mãe, seja por um direito positivo, seja por um direito natural, seja por um direito divino, isto é, por um julgamento dela pelo homem em sua natureza divina, a quem é concedido o privilégio de não gerar uma vida em si mesmo, da vida ser gerada pelo outro, ao qual não é concedido à mulher, que deve sofrer as dores de um parto, mesmo que não gere um filho, quando menstrua.

É a liberdade do outro que está em questão num julgamento de qualquer caso das minorias, em princípio, a perda da liberdade do outro. Se a um eu é concedida a liberdade para que exerça a sua vontade livremente, desde que não violente a si ou seu semelhante, ao outro não é concedida nenhuma liberdade, pois o outro não é semelhante e idêntico ao eu. A liberdade do outro é a liberdade de não ser o eu, algo que o eu não admite em seu pensamento, muito menos em ato, e visa impedir que exista a liberdade do outro, impedindo que o outro exista em si, fazendo com que sua existência se submeta ao poder do eu.

Enquanto o eu determinar a liberdade do outro não há justiça, pois a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos e de outros tribunais que decidem sobre a vida do outro não passa da decisão de um eu que não aceita que o outro tenha liberdade, que seja livre em sua existência. A justiça dos tribunais é tão somente a justiça para os que são semelhantes ao eu que decide neles, semelhantes ao eu que faz parte deles, nunca uma justiça para o outro que tem a sua vida cerceada pelo eu, mesmo que não cometam crime, ou ainda, por considerar-se a existência do outro já um crime desde o princípio, recusando a si a liberdade desde o princípio por um pré-julgamento.

Se o eu Ã© livre antes mesmo de nascer, por se assemelhar ou ser idêntico em pensamento àqueles que defendem a possibilidade de seu nascimento, o outro é destituído de sua liberdade antes mesmo de existir ao pensamento. Sua liberdade é submetida ao julgamento do eu por simplesmente não ser o eu, nem semelhante, muito menos idêntico a ele. Para uma mulher ter a mesma liberdade de um homem perante a justiça da Suprema Corte e de outros tribunais, ela tem que nascer de novo como homem segundo a vontade de deus. É preciso que o outro deixe de ser outro para que a justiça exista para si, pois o eu não admite uma justiça para o outro apenas para aqueles que deixam de ser outro e se tornam semelhantes ao eu.

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