A difícil arte do recomeço
A vida é uma só. Por mais que se acredite numa vida após a morte, ninguém quer morrer para recomeçar a viver, como num jogo de videogame. Salvo naqueles momentos em que entramos num torvelinho de pensamentos sem perspectiva de vida e pensamos que a morte é a única saída. Mas, ainda assim, não se trata de um recomeço e, sim, de um ponto final.
Frank Herbert, na primeira frase de seu livro Duna, diz que "O começar é o momento mais difícil na correção do equilíbrio." (Tradução de Jorge Luiz Calife) De fato, quando vivenciamos algo complicado, começar a colocar as coisas em ordem é extremamente difícil. Contudo, e quando tudo foi equilibrado e de, repente, se desequilibra? Como um castelo de areia a beira-mar que a onda leva em seu vai-e-vem que não podemos evitar? O que fazer quando a morte nos vem, mas não somos o escolhido e, sim, algum parente ou alguém próximo cuja vida sem ele é impossível? Como recomeçar?
No mito de Sísifo, Sísifo é obrigado a rolar uma pedra até o cume de uma montanha eternamente, pois a cada momento em que chega ao cume, ela rola para baixo e ele tem que recomeçar o seu trabalho. O trabalho não é a pena, é a repetição, o recomeço. O trabalho, esta coisa difícil, extenuante, que temos que fazer não é o problema, o problema é ter que recomeçar a fazer isso todos os dias repetidamente. Pior ainda na segunda-feira ou depois de dias de descanso como nas férias.
Parafraseando Herbert, diria então que recomeçar é o momento mais difícil na correção do desequilíbrio, quando devemos recomeçar a viver a vida que pensávamos já ter chegado ao fim e a qual não queríamos mais viver. Não queremos reviver. Nem mesmo lembranças, por isso elas são involuntárias, e nos adoecem nos quebrando por dentro. Não importa se a lembrança é boa, ela é o momento em que o que foi vivido se repete sem que se possa repetir, deixando na mente o sentimento de perda por algo que não volta mais, não voltará jamais.
Talvez pensemos que a repetição seja o problema neste caso, mas o problema é a ideia de que as coisas são únicas e não podem se repetir e serem diferentes. É a ideia de que não podemos viver duas, três, infinitas vidas. Isto nos faz pensar que o que importa é a primeira e única vez e que, quando chega ao fim, não se pode mais repetir. O temor de perder algo único é o temor de nunca encontrar algo igual, idêntico ao vivenciado. Queremos nos agarrar ao que é único e nos tornamos incapazes de aceitar a repetição e a diferença em relação a algo.
Não aceitamos a repetição e a diferença. Recusamos com todas as nossas forças a ideia de ter que repetir e fazer diferente na repetição. A diferença na repetição é o problema. A ideia de repetição não é problemática na medida em que se faz algo igual ou idêntico. É o que alivia a pena de Sísifo e do trabalho a cada dia, pois é a repetição do mesmo. Tornamo-nos autômatos, acordando a cada dia com o sol como fizemos ontem e fazemos há milhões de anos, e faremos mais ainda.
A repetição do mesmo é a repetição de algo que nunca acaba, nunca tem um ponto final, e por isso o recomeço é mitigado, atenuado, suavizado. Estabelece-se um equilíbrio, uma ordem que faz da repetição um processo infinito do mesmo. Cria-se uma conformidade. No fim, parece que não estamos repetindo, que, pelo contrário, se trata de algo novo e de novo. O recomeço se torna algo desejado porque vamos fazer o mesmo que fizemos antes. O novo não é diferente. E por isso mesmo se deseja, por ser uma repetição do mesmo, a experiência de algo igual, idêntico, que queremos de novo.
O que se busca de novo com o novo é recusar a ideia de repetição e de diferença nela. Impedir que pensemos que estamos recomeçando algo, no caso, de se ter chegado ao fim de algo e ter que recomeçar a fazer. Necessitamos pôr um ponto final em tudo e ter que continuar além dele depois de termos chegado a ele ansiosamente é desesperador. Não importa o quanto pensemos na repetição do mesmo, a diferença se introduz em nosso pensamento mais dia, menos dia, e uma fadiga se instala no pensamento do de novo... A fadiga do recomeço.
Não há como superar o recomeço e tudo de negativo que ele nos traz. Mesmo o amor fati de Nietzsche, isto é, a ideia de que uma vida "feliz" é uma vida que queiramos viver novamente em tudo de bom e ruim que tem nela, é uma recusa do recomeço, de fazer algo diferente, é suportar a vida como ela é em sua unicidade e querer vivê-la de modo único, e se tiver que reviver que seja tudo outra vez. A ideia de recomeço só apraz quando é como se fosse a primeira vez, mesmo que não tenha sido como se esperava. Recomeçar é negar o começo, perceber que não há começo e tão pouco fim, que nada acabou, nada acabará, tudo se repetirá de modo diferente, e nada mais difícil do que aceitar isso. O amor fati de Nietzsche demonstra isso, como não suportamos o recomeço da vida.
A difícil arte do recomeço é aceitar que não há começo e nem fim, que a vida é algo que não começa e termina em algum ponto, para além do qual se repete como a mesma. É aceitar que a vida é um eterno recomeço, que o ponto final é algo que somente nós colocamos nela na esperança ou desesperança de vivermos novamente o que já vivemos ou não vivermos nunca mais. Recomeçar é a arte de pensar na vida como algo que se repete de modo diferente a cada dia e não sabemos o que esperar dela ao pôr-do-sol. Recomeçar é ter a incerteza de viver mesmo quando tudo está em equilíbrio e ter a certeza de viver quando tudo se desequilibra.
Assim como recomeçamos uma frase depois de um ponto final, a vida também recomeça, repetindo-se, diferente. O recomeço é a arte da vida.
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