A América de Gambino a Residente


Em maio de 2018, o rapper estadunidense Childish Gambino, nome artístico musical de Donald Glover, lançou o clipe de sua música This Is America que se tornou um grande sucesso por suas referências da cultura negra, principalmente em suas coreografias, mas também por ser um manifesto político contra o racismo nos Estados Unidos. Passados quatro anos, o rapper porto riquenho Residente, da banda Calle 13, nome artístico de René Perez, juntamente com as gêmeas Lisa-Kaindé e Naomi Díaz, duo franco-cubano Ibeyi, responde a Gambino no clip de sua música This Is Not America, dizendo "Gambino, mi hermano, esto sí es América [Gambino, meu irmão, esta sim é a América]". As ressonâncias dos dois clipes não é por acaso, pois as dores dos negros com o racismo dos Estados Unidos mostrada por Gambino não difere da dor dos latino-americanos, particularmente de origem indígena, mostrada por Residente, mas há uma diferença gritante no modo como cada um as trata em seus clipes e no que é a América para cada um deles, e Residente está não por menos certo ao dizer que a América que canta é, ela sim, a América, e não a de Gambino.

Do antirracismo ao anti-imperialismo dos Estados Unidos, Gambino e Residente mostram duas visões sobre o que é América. Na visão de Gambino, a América é o Estados Unidos. Esta é uma visão excludente de outros povos da América que não são vistos como "americanos" pelos estadunidenses, pois americanos são apenas os estadunidenses como se autodenominam há muito tempo. Uma visão excludente de outros povos que exclui também os negros como não cidadãos "americanos", considerados estrangeiros por terem sido levados para os Estados Unidos como escravos africanos, diferente dos brancos britânicos que foram para lá como colonizadores. Os brancos, neste caso, são "originários" dos Estados Unidos, mesmo tendo vindo da Grã-Bretanha, enquanto os negros são vistos como "estrangeiros" porque vieram da África e não têm, originariamente, os mesmos direitos civis e políticos que os brancos.

A visão dos estadunidenses de si mesmos como "brancos americanos" dá origem à mitologia de uma América Branca, feita por brancos e para brancos, que culminou na divisão do país numa guerra civil, a Guerra de Secessão, de 1861 a 1865, e que originou o racismo que assola os Estados Unidos até hoje. Um racismo muitas vezes mascarado pela cultura do entretenimento quando negros começam a se destacar por suas vozes, musicalidade e danças, e que Gambino ressalta de modo irônico em seu clipe, pois, se, por um lado, negros são valorizados como entretenimento na música, no cinema e nos esportes, por outro, eles são perseguidos, presos e mortos pelo racismo "americano", inclusive por outros negros, como na cena em que Gambino mata um músico negro. Diversos eventos históricos de violência racista são referenciados no clipe de Gambino que demonstra que não importa o quanto negros se destaquem e ganhem visibilidade artística, desportiva, social, econômica e política, eles ainda continuam vistos como bandidos e são perseguidos e mortos como tais independente da inocência. A prisão de Ryan Coogler, diretor do filme Pantera Negra e Pantera Negra 2, em janeiro deste ano, quando sacava 12 mil dólares de sua conta no Bank of America, acusado de ser um ladrão, é sintomática dessa realidade e demonstra como a perseguição, prisão e, não por menos, morte de negros é uma atitude comum do racismo estrutural dos Estados Unidos cujo mais recente caso trágico a provocar comoção nacional e mundial foi a morte do motorista George Floyd, em junho de 2020, sufocado por um policial branco e a qual levou às ruas milhares de pessoas em protesto contra o racismo por vários dias, mesmo em meio à pandemia da Covid-19, e com a adesão de muitas personalidades negras de várias áreas.

O clipe de Gambino mostra a contradição de uma América branca e negra, que se diz democrática, mas trata de modo desigual seus cidadãos enfatizando uma superioridade de brancos sobre negros, que, se pode ser mascarada pela cultura do entretenimento, não pode ser escondida na realidade das ruas. Esta contradição torna o clipe de Gambino uma expressão da cultura "americana" que esconde em seu entretenimento as violências cometidas contra os negros na realidade. Se "Isto é a América", esta América é, portanto, a dos brancos e na qual os negros buscam seus direitos civis e políticos diante do racismo que sofrem todos os dias e do qual tentam fugir desesperadamente como Childish fazendo de seus passos de dança animados no início uma corrida frenética pela liberdade com os policiais em seu encalço no fim do clipe.

A América de Gambino, porém, não é a de Residente. A imagem inicial do clipe com a bandeira dos Estados Unidos desenhada e o título da música deixam bem claro isso. Para Residente, a América não é um país, é um continente que vai da Terra do Fogo ao Canadá numa crítica direta e impiedosa a Gambino:
América no es solo USA, papá
Esto es desde Tierra del Fuego hasta Canadá
Hay que ser bien bruto, bien hueco
Es como decir que África es solo Marruecos

[A América não é só os EUA, cara
Ela vai da Terra do Fogo ao Canadá
Tem que ser bem estúpido, bem cabeça de bagre
É como dizer que a África é só o Marrocos]¹
A visão de Residente sobre a América é uma visão de fora dos Estados Unidos e não de dentro como a de Gambino, ou seja, ele não se limita a expor a contradição de um país racista, ele se põe literalmente contra os Estados Unidos ao demonstrar como este país é não apenas racista, mas xenofóbico e etnocêntrico em relação a outros povos, em particular os povos latino-americanos, e, principalmente, com os povos indígenas que, antes mesmo da escravidão dos negros, sofreram com os britânicos. É um clipe visceral, que expõe as vísceras de um país que se pretende superior a todos os outros, mesmo representado por negros, e que deve ser combatido de modo não menos visceral com o machete em mãos.

This Is Not America é uma manifesto contra contra estadunidenses que se dizem "americanos", sejam eles brancos ou negros, valorizando sua cultura em detrimento de outras considerando-se a "cultura americana". Implícito no "This [Isto]" desta frase que dá título à musica de Residente está os Estados Unidos, de modo que ela pode ser lida, sem problema de tradução, do seguinte modo: United States Is Not America. Apesar do título em inglês é uma música cantada em espanhol e com ritmos latino-americanos, uma música que declara guerra à política estadunidense de intervenção na América Latina e que busca uma valorização da cultura latino americana empoderada no seu machete, pois, "A machete não é só para cortar cana/ Também é para cortar cabeças". Uma ferramenta-arma que "morde" aqueles que querem dominar e explorar os povos originários como no refrão-grito de guerra que soa com um lembrete:
Aquí estamo', siempre estamo'
No nos fuimo', no nos vamo'
Aquí estamo' pa' que te recuerdes
Si quieres mi machete, te muerde
Aquí estamo', siempre estamo'
No nos fuimo', no nos vamo'
Aquí estamo' pa' que te recuerdes
Si quieres mi machete, te muerde

Si quieres mi machete, te muerde
Si quieres mi machete, te muerde
Si quieres mi machete, te muerde
Te muerde, te muerde

[Aqui estamos, sempre estamos
Não fomos embora, nem iremos
Aqui estamos, para que você lembre
Se você quer a minha machete, ela morde
Aqui estamos, sempre estamos
Não fomos embora, nem iremos
Aqui estamos, para que você lembre
Se você quer a minha machete, ela morde

Se você quer a minha machete, ela morde
Se você quer a minha machete, ela morde
Se você quer a minha machete, ela morde
Ela morde]
Se Gambino contrasta em seu clipe cenas de dança e descontração com uma violência explícita de mortes e há, não por menos, uma suavização de sua mensagem antirracista com cenas de entretenimento, como num clássico filme policial estadunidense no qual as mortes divertem e não importam muito no final das contas, ainda que o fim do clipe seja dramático, no clipe de Residente, não há nenhuma descontração e entretenimento. A violência imperialista dos Estados Unidos impera do início ao fim exposta sem qualquer desvio e o choque para quem assiste é inevitável, no caso, o choque no sentido em que Benjamin pensa, segundo Vattimo, como destruição de uma aura pela reprodutibilidade técnica dos meios de comunicação inaugurando uma "nova forma de percepção", inclusive com uma nova percepção musical que Residente promove com sua música, pois:
“This Is Not America” está relacionado a um projeto residente de três anos com professores da Universidade de Yale e da Universidade de Nova York. Os especialistas estudaram as ondas cerebrais do cantor junto com os padrões cerebrais de vermes, camundongos, macacos e moscas, entre outros, a fim de criar frequências musicais que se tornariam ritmos. Para esta música, Residente usou suas próprias ondas cerebrais e as de vermes para desenvolver ondas eletrônicas enfáticas misturadas com seu rap, voz de Ibeyi e percussão porto-riquenha. (Vide Infobae)
Neste caso, porém, não é a obra de arte que perde sua aura ou autenticidade diante da destruição do valor de culto que tem numa determinada cultura por um valor de exposição por meio das novas ciências e tecnologias da computação, é a visão de uma América e de uma cultura "americana" a partir dos Estados Unidos e sua mitologia branca que é destruída, e deve ser destruída para que surja uma percepção nova da América, ainda que muito antiga, como canta Residente:
Desde hace rato cuando ustedes llegaron
Ya estaban las huellas de nuestros zapatos
Se robaron hasta la comida de gato
Y todavía se están lamiendo el plato
(...)
A estos canallas
Se les olvidó que el calendario que usan se lo inventaron los mayas
Con la valdivia precolombina
Desde hace tiempo, uh, este continente camina

[Desde antes de vocês chegarem
As impressões dos nossos sapatos já estavam aqui
Vocês roubaram até a comida de gato
Mas mesmo assim lambem seus pratos
(...)
Essa gentinha
Esqueceu que o calendário que usa foi inventado pelos maias
Com a Valdivia pré-Colombiana
Este continente caminha já faz muito tempo]
Para deixar claro que a América não é os Estados Unidos e vice-versa, Residente não nega em seu canto a violência, ele a esbraveja produzindo um choque de realidades a cada imagem, desde o princípio, com o mapa dos Estados Unidos emoldurando o título de sua música. Se o assassinato de um negro cantor com um tiro na cabeça no início do clipe de Gambino é chocante, e dá início à sua crítica à morte de negros inocentes pelas costas, é por antes ele entreter os espectadores com seu canto de "festa", fazendo a morte aparecer subitamente. Residente, ao partir do mesmo princípio, porém, faz do tiro um tiro de partida para o conflito de vida e morte em seu canto com o conflito entre policiais brancos representando os Estados Unidos e o povo latino-americano. O choque é de duas realidades da América que vivem em guerra e cuja fronteira é uma prisão e campo de concentração de exilados, de humilhação de pessoas que buscam se salvar nos Estados Unidos da violência e guerra promovida muitas vezes pelos Estados Unidos que, neste sentido, não é um lugar de refúgio para aqueles que fogem da violência e da guerra, é o lugar onde toda a violência e guerra se iniciam.

As cenas iniciais de Residente preso vigiado por policiais, dele e de manifestantes correndo em direção ao conflito com policiais como guerreiros nas ruas e jogadores de futebol entrando em campo para um batalha demonstram o que está em jogo: a luta pela América. Uma América dos Estados Unidos que aponta todas as suas armas contra os latino-americanos vistos como seus inimigos e que Residente desconstrói em seus símbolos culturais com seu clipe valorizando povos indígenas latino americanos, como quando substitui a estátua da Liberdade pela estátua de um líder indígena e ao dizer que "2pac tem esse nome por causa de Túpac Amaru do Peru", ou quando coloca crianças indígenas sobre caixas de sanduíches McDonald, de caixas de Coca-Cola, de copos de café Starbucks e de caixas de entrega da Amazon, e, por fim, quando coloca de modo visionário a imagem de um templo piramidal asteca no meio de prédios de uma cidade tipicamente estadunidense como se fosse seu centro de poder.

Se os Estados Unidos não é a América, Residente não esquece que Estados nações da América Latina querem ser os Estados Unidos com a implantação de golpes de Estado e de ditaduras para agradar os "americanos", assim como políticos lambe-botas de estadunidenses como Bolsonaro que promovem a destruição dos povos indígenas e negros para agradar os Estados Unidos. A polícia com a qual se defrontam os manifestantes durante o clipe são a expressão da violência aos latino-americanos pelos Estados Unidos além das fronteiras deste, uma polícia que age como a polícia estadunidense, atualmente derrubando pessoas no chão e as imobilizando com um joelho no pescoço pronta para matar qualquer latino como fez o policial estadunidense com George Floyd. A história antiga e recente de violência produzida pelos Estados Unidos, a mando deles e para servir a eles, é assim lembrada por Residente com:
Los paramilitares, la guerrilla
Los hijos del conflicto, las pandillas
Las listas negras, los falsos positivos
Los periodistas asesinados, los desaparecidos
 
Los narcogobiernos, todo lo que robaron
Los que se manifiestan y los que se olvidaron
Las persecuciones, los golpes de estado
El país en quiebra, los exiliados, el peso devaluado
 
El tráfico de droga, los cárteles
Las invasiones, los emigrantes sin papeles
Cinco presidentes en once días
Disparo a quemarropa por parte de la policía
 
Más de cien años de tortura
La nova trova cantando en plena dictadura

[Os paramilitares, a guerrilha
Os filhos da guerra, as gangues
As listas negras, os falsos positivos
Os jornalistas assassinados, os desaparecidos

Os narcogovernos, tudo que roubaram
Os que protestam e os que se esquecem
As perseguições, os golpes de Estados
O país quebrado, os exilados, o peso desvalorizado

O tráfico de drogas, os cartéis
As invasões, os migrantes sem documento
Cinco presidentes em onze dias
Tiros à queima roupa por parte da polícia

Mais de cem anos de tortura
A nova trova cantando em plena ditadura]
Se a violência imperialista dos Estados Unidos impera durante todo o clipe de Residente, violência produzida exclusivamente pelos Estados Unidos e pelos policiais, paramilitares e milícias que o representam em vários lugares da América Latina, que matam impiedosamente e expõem os corpos mortos de manifestantes de protestos como troféus, Residente não deixa de mostrar a resistência da cultura latino-americana indígena dizendo que "Somos o sangue que estoura a pressão atmosférica" e mostrando que
Estamo' aquí, oye
Que estamo' aquí
Mírame, estamo' aquí
(...)
Aquí estamo', siempre estamo'
No nos fuimo', no nos vamo'
Aquí estamo' pa' que te recuerdes

[Estamos aqui, escutem
Porque estamos aqui
Olhe para mim, estamos aqui
(...)
Aqui estamos, sempre estamos
Não fomos embora, nem iremos
Aqui estamos, para que você lembre]
Lembra, ademais, que apesar dos Estados Unidos tentarem destruir a cultura dos países latino-americanos, há uma resistência a isso com a representação no clipe de "Victor Jara, músico que teve as mãos decepadas pela ditadura chilena (1973-1991), e a resistência feminina do movimento zapatista (MEX)" (vide PapelPop), com as imagens de jovens manifestantes em luta contra os policiais, ou ainda, com a imagem de uma criança indígena sorridente insinuando a degola de Bolsonaro em vingança por seu genocídio aos povos indígenas, bem como com as imagens de crianças indígenas que aparecem em diversas cenas demonstrando que a cultura latino americana sobreviverá ao imperialismo estadunidense no futuro. Sobreviverá, principalmente, porque sua cultura é diversa, feita de "cumbia/ Bossa nova, tango ou vallenato/ Insolente demais com Calabó y Bambú/ Sangue quente como Timbuktu".

E para não cair numa visão distópica da realidade em seu conflito, Residente não esquece a defesa da vida pela arte em meio à violência com o casal de tango bailando em meio à luta de manifestantes contra a polícia fazendo da arte uma expressão de vida no meio da violência, e apesar da violência, inclusive da violência da arte num misto de dança e luta, assim como é uma expressão de amor como a do casal se beijando em meio ao ódio policial contra os manifestantes. Não esquece, deste modo, que a arte é criação de vida e não de morte, que a arte é a resistência da vida contra a morte produzida por aqueles que querem ter poder sobre a América, os Estados Unidos, mas nunca terão enquanto nós, indígenas e negros latino-americanos formos Residente nela, pois

Aqui estamos, sempre estamos
Não fomos embora, nem iremos
Aqui estamos, para que você lembre
Se você quer a minha machete, ela morde
Aqui estamos, sempre estamos
Não fomos embora, nem iremos
Aqui estamos, para que você lembre
Se você quer a minha machete, ela morde
 
Se você quer a minha machete, ela morde
Se você quer a minha machete, ela morde
Se você quer a minha machete, ela morde
Ela morde

¹ Traduções de: https://lyricstranslate.com 






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