O despertar de um sonho


Acordo cedo, muito cedo, antes dos pássaros despertarem, antes do acordar, de madrugada, no único momento em que posso me conectar a mim mesmo, com minha vida, com o mundo em que vivo, este mundo agônico que agoniza ao fim de mais um dia de batalha. Um mundo vivo que morre a cada dia mais e mais por suas próprias mãos, o mundo humano, dos seres humanos que se desumanizam. Um mundo dito antropoceno.

Depois de passar o dia conectado com as redes de conexão informáticas, de madrugada é o único tempo que tenho para mim, para meus pensamentos, para minhas ideias, ou para aquilo que posso chamar de meu, o que sou, eu. Por vezes desperto de um sonho direto para mim guiado pelo poder do indizível, de uma imagem que não pode ser descrita, para a qual não há nenhum arquétipo, nenhum tipo ideal a caracterizá-la de modo consciente. O sonho indígena de Krenak, o sonho negro de Luther King. O sonho que se tem e não se pode dizer, a não ser que se tem.

Há muito tempo a filosofia abdicou dos sonhos, não sonha mais, e talvez nunca tenha sonhado desde seu surgimento num recanto da Terra chamado Grécia, depois disseminada em outros lugares por povos que colonizaram os gregos, retiraram de si sua filosofia e a carregaram para outros povos, outros lugares, fazendo a filosofia deles, deixando de sonhar como deixaram os gregos. A diferença entre mito e filosofia não é apenas uma diferença entre discursos como se faz crer, é entre sonho e realidade. No mito, se sonha, na filosofia, não, pois há somente realidade. Querer falar de realidade dos sonhos é um contrassenso, motivo pelo qual toda mitologia Ã© impossível, bem como toda filosofia e psicologia advinda de uma mitologia.

Não há nenhuma realidade no sonho assim como nenhum sonho na realidade. Há uma barreira intransponível que é muito mais do que uma diferença discursiva. Não há discurso possível no sonho. Quanto dizemos eu tive um sonho, o sonho já se desfez em realidade. Toda a experiência onírica se perdeu nas palavras e as palavras se perdem em sua tentativa de tentar dizer a experiência do sonho. Vazios, hiatos, reticências se proliferam entre as palavras entre vãos indizíveis até se dizer que tudo não passou de um sonho.

Não por acaso é de madrugada que sonhamos, quando a noite nos convida a adormecer e entorpece a razão. Sentir o sono chegar é sentir adentrar um mundo no qual o eu já não difere do mim, o sujeito do objeto ou predicado. Nunca sonhamos com um eu, sonhamos conosco, esta relação indizível do eu com o mim, que é também a relação do eu com o outro não visto como um objeto. A diferença de sonhar e pensar, ou raciocinar, é que no sonho não há separação entre o que somos e o que não somos, tão comum na realidade ao ser pensada. Tão pouco existe o medo de não ser o que somos ou de sermos o que somos, nem o desejo de sermos quem somos e sermos quem não somos, e isso demonstra como toda mitologia, filosofia e psicologia fundadas a partir do desejo e medo mítico é infundada. 

O desejo e o medo são constituídos a partir de um eu e só são possíveis quando deixamos de sonhar, quando nos deparamos com a realidade, quando me deparo com o que sou e o que não sou, com algo estranho, inclusive eu. Desejo e medo são esse estranhamento com o outro na realidade que não há no sonho, que não se sonha, que nunca se sonhou, nem em um milhão de anos que aconteceria, e de fato não acontece, não vai acontecer, pois é apenas um sonho, não há nada estranho nisso. Todo sonho é sempre impossível na realidade, o que não quer dizer que se deva decepcionar por tê-lo sonhado ainda que brevemente, no pestanejar de olhos, à tarde, num cochilo. Dizer, ademais, que estava apenas tirando um cochilo Ã© já despertar para a realidade na qual se diz que não se deve sonhar, o que é já um decepcionar.

Toda decepção com os sonhos é uma decepção por não continuar a sonhar, por ter que despertar para a realidade, ou ainda, sobretudo, por ter sido despertado pela realidade. Despertar para a realidade é se decepcionar com a realidade. É com a realidade que nos decepcionamos e não com os sonhos, por a realidade não ser como sonhamos, por ser diferente dos nossos sonhos nos quais, inclusive, a diferença não é um problema, pois todo sonho é diferente do outro. Não há um sonho idêntico a outro. Não há o sonho, tão somente um sonho. A identidade é algo próprio da realidade na qual nos identificamos, isto é, na qual dizemos que somos isso diferente daquilo e que isso se opõe àquilo porque são diferentes, e não podem ser diferentes, devem ser iguais, idênticos na realidade, como o sujeito e o predicado, que apesar de diferentes fazem parte de um só e único ser. O ser só pode ser idêntico, igual a si, nunca diferente. Nenhuma ontologia da diferença ou da alteridade é possível na realidade, é apenas um sonho.

Não sonhamos na realidade. Este é o princípio do conhecimento da realidade. Somente podemos sonhar fora dela. O que não quer dizer noutra realidade que nada mais é do que uma busca da realidade, de sentido para a realidade, isto é, de uma crença, de uma fé noutro acontecimento da realidade. Ter fé não é o mesmo que ter um sonho. Acreditar não é o mesmo que sonhar. Toda crença parte de uma realidade para outra realidade, o que nenhum sonho faz, pois não podemos viver no sonho como podemos viver noutra realidade, tão pouco reviver nele como nela, renascidos. A vida no sonho não é outra vida que se almeja ter, é uma vida que não se tem na realidade, a imanência da vida quando a transcendência se inverte, se reverte e deixa de ser algo para além da vida, ou aquém dela, para ser uma vida em si, uma vida sonhada, não vivida na realidade, em nenhuma realidade possível.

Viver o que não vivemos na realidade é o princípio do sonho. Não se trata de reproduzir a realidade, buscar no sonho uma realidade que se deseja ter, mas não se tem, muitas vezes por medo, o sonho interpretado como o resultado de um desejo e medo a partir de um narrativa mítica vista como imitação da realidade, no qual se busca uma realidade dentro da realidade, uma realidade profunda, mítica. O sonho não é a reprodução de uma realidade por uma narrativa mítica, é a produção do que não é real, do que é tão somente sonho, algo incompreensível na realidade a partir do desejo e medo, no qual desejo e medo já não estão presentes, pois dizem respeito à realidade que produz não por menos desejo e medo naqueles que não sonham. Se há algo de desejo e medo no mito é o desejo e medo do ser humano pelo que há de desconhecido no mito, aquilo que é propriamente o seu sonho e escapa a qualquer compreensão humana, o limite imposto pelo poeta-sonhador à realidade, o seu confronto com ela.

Sonhar é confrontar a realidade. Não lutar contra ela, pois isso é impossível. Não podemos lutar contra o despertar da realidade que, inclusive, a filosofia nos lança há muito tempo transpassando a sua lança, ferindo-nos ao diferir sonho e realidade, privilegiando esta a partir de uma razão em detrimento da desrazão daquele. Confrontar Ã© estar diante da realidade, mas não aceitá-la, inverter a regra gramatical para sonhar a língua, criar uma língua fora da realidade que nem mesmo é uma língua, pois não se pode dizer o seu sonho, o que é na realidade, o sonho de uma língua diferente, uma língua sonhada, sem significado e significante, na qual significado e significante se fundem e se confundem numa imagem a qual não pode ser dita, nem mesmo como símbolo. Uma imagem que não é a reprodução de algo, que não é uma cópia, nem mesmo um simulacro, pois é o produto de uma imaginação, o mais próximo que podemos chegar do sonho na realidade com as palavras da língua.

Imaginar é o mais próximo que podemos chegar do sonhar, do despertar do sonho. Um despertar diferente do filosófico, científico, religioso e mítico, compreendidos todos como discursos sobre a realidade. Imaginar é o despertar do sonho, um estar próximo de si, tão próximo que não há mais diferença entre sonho e realidade, o que é sonho e o que não é sonho, isto é realidade, no qual não se pode mais projetar nenhuma realidade, ainda que vislumbrada, distante, projetivamente, pelas palavras, num discurso fictício. 

Quando sonho não sou real, nem pretendo ser real como uma ficção, não tenho nenhum compromisso com a realidade, nenhuma responsabilidade com ela, com os atos na realidadeo que não quer dizer ser irresponsável. O sonho não é uma irresponsabilidade do ser humano na realidade. O sonhador não é alguém cujo desejo o leva a atos que põem em perigo a si e a outros, que causa medo, e pelos quais se deva responsabilizar. O sonhador é alguém cujos desejos e medos na realidade já deixaram de existir e sua responsabilidade, seu dever Ã© sonhar para que aqueles que desejam e temem não padeçam na realidade.

Todos somos sonhadores na realidade, mas esquecemos disso na realidade, quando despertamos para ela e deixamos o despertar do sonho. É preciso deixar a realidade de lado para sonhar sob pena de não conseguirmos mais vivermos na realidade, sob pena de vivermos uma vida que, na realidade, não queremos e não suportamos mais viver. Se o filósofo se prende a tudo na realidade como aludiu o Sócrates sonhado por Platão em sua República, a realidade finda por aprisionar o filósofo como descobriu o Sócrates real que, não suportando mais a realidade, imaginou outra realidade na qual ele e sua filosofia não fosse um sonho. Mal sabia que a filosofia nada mais é do que um sonho na realidade, ou talvez soubesse ao dizer que nada sabia.

Talvez a advertência socrática de que o filósofo nada sabe fosse senão isso, a advertência de que o filósofo nada sabe quando em tudo se prende à realidade e se aprisiona ou é aprisionado nela, quando faz da filosofia tão somente mais um discurso na realidade e da realidade agonizando com outros discursos, disputando quem está com a verdade, sem buscar a verdade em si. No caso, a verdade imaginada por si em sonho, num êxtase demoníaco, paralisante, com uma voz que não é a sua, mas é a sua, que é dele e ele, voz advertindo a si que nada sabe porque está preso na realidade, sem conseguir escapar dela, a não ser pela morte.

Sócrates, aquele que não escreve, aquele que não fez da sua filosofia um discurso, oral ou escrito, é aquele que sonha filosoficamente, aquele que faz a filosofia sonhar, filosofosonhar. É aquele que, com sua voz, resgata o poder divinatório dos poetas, imaginando o que outros não conseguem ver na realidade. É Krenak, é Luther King dizendo aos antigos gregos, eu tenho um sonho, a filosofia. Uma filosofia que somente pode ser sonhada, que nada a prende na realidade.

É preciso despertarmos para o sonho se quisermos filosofar, despertarmos para essa voz interior que nada diz na realidade, que não é o discurso vivo de uma fala ou o discurso morto de uma escrita, que é a nossa voz quando sonhamos e filosofamos a realidade, quando filosofosonhamos, sonhos filosoficamente a realidade e, na realidade, faz com que tudo seja possível ainda que pareça impossível.

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