O encanto de Encanto
Após 100 anos de solidão, obra-prima de Gabriel GarcÃa Márquez, somos inspirados novamente por uma famÃlia colombiana no filme Encanto (2021). A lembrança da obra de Márquez não é por acaso, pois está presente de modo indireto em todo o realismo mágico ou encanto do filme Encanto que, apesar de mudar o contexto histórico, do século XIX para o século XXI, se mantém fiel à literatura fantástica criada por Márquez a partir da cultura colombiana, e aos seus ensinamentos sobre quem somos em coletividade contra toda a perspectiva da vida atual e a exigência de "competências socioemocionais" individualistas para suportá-la, ainda que tais competências se relacionem com outros.
Se, em 100 anos de solidão, a história é narrada a partir de uma famÃlia patriarcal centrada em José Arcadia BuendÃa e seus filhos José Arcadio e Aureliano e sua filha Amaranta na aldeia fictÃcia de Macondo, onde estranhos acontecimentos se sucedem por gerações, em Encanto, a história é narrada por uma famÃlia matriarcal centrada em Alma Madrigal e suas filhas Julieta e Pepa e seu filho Pedro que vivem num povoado construÃdo a partir do "milagre" concedido à matriarca após a morte de seu marido Pedro quando fugiam de pessoas que destruÃram sua antiga cidade. O que acontece após este "milagre", simbolizado por uma vela que permanece acesa desde então, é puro realismo mágico da literatura fantástica tal como originado por Márquez e que representa tão bem a literatura latina-americana, bem como, por trás deste realismo mágico, uma realidade que não se quer que seja vista, mas que não se pode esconder como que por magia.
Assim como José Arcadio BuendÃa, que fundou a cidade de Macondo, Alma Madrigal fundou o povoado de Encanto, mas não apenas isto. Não bastasse o milagre de ser construÃda uma casa encantada para suas filhas e filho, dos quais cuidou desde recém-nascidos sozinha como mãe solteira numa região de floresta paradisÃaca, e ser criada uma casa para todos os outros que fugiram como ela da antiga cidade, cada uma das filhas e filho foram agraciados com um dom ou encanto que os faz adquirir um lugar na casa, um quarto encantado, e ao mesmo tempo um papel na famÃlia e comunidade. Pepa tem o dom de mudar o tempo variando-o em tempo de sol, chuva ou tempestade e ventania, e Julieta tem o dom de curar a todos com sua arepo con queso e Bruno tem o dom de prever acontecimentos. A cada geração outros dons são repassados aos netos da famÃlia Madrigal na cerimônia em que recebem o quarto na casa e um papel na comunidade e é a partir dos dons dos Madrigal que o povoado é literalmente sustentado e sem o qual é destruÃdo.
O que sustenta o povoado de Encanto é o encanto ou dom especial de cada membro da famÃlia Madrigal logo, é de esperar que qualquer coisa que diminua ou faça perder este encanto seja um problema não apenas para quem o possui, mas também para a famÃlia Madrigal e, por conseguinte, para todos que vivem no povoado. O que era esperado acontece com a pequena Mirabel, filha caçula de Pepa, que não recebe seu dom, seu quarto na casa e seu papel na comunidade, e devido a isto tudo começa ruir na casa encantada sendo vista como o prenúncio da ruÃna individual, familiar e da comunidade de Encanto, ainda mais que seu tio Bruno tem um visão da casa rachada com a imagem dela na frente. Se o dom dotava os Madrigal de algo especial, Mirabel não é especial, pois não o tem, é apenas uma criança e ser humano como outros do povoado, sem qualquer encanto, o que a faz se ressentir disso, ter inveja das irmãs e da atenção que a matriarca dedica a elas e todos os outros membros da famÃlia.
A ausência do dom de Mirabel é o motivo principal da história que faz lembrar não apenas o realismo mágico de Márquez, mas também a mitologia grega a partir da Teogonia de HesÃodo em que cada deus é a representação de um aspecto natural e humano e tem a sua timé, sua honra ou poder próprio, bem como o seu lugar no panteão e espaço natural grego. Mais ainda, faz lembrar na mitologia grega a história de Cassandra, filha do rei PrÃamo de Troia, que tinha o dom da profecia dado pelo deus Apolo que, porém, a amaldiçoou quando ela não quis transar consigo fazendo com que ninguém acreditasse nas previsões dela, a principal, a de que Troia seria destruÃda pelos gregos. Isto porque, assim como Cassandra, o filho Bruno é excluÃdo do convÃvio da famÃlia e do povoado de Encanto por suas previsões ruins sobre o que ia acontecer relacionada a cada familiar e habitante do povoado, por ser, portanto, o portador das más notÃcias, dentre elas, a pior, a destruição da Casita encantada dos Madrigal e de todo o povoado sem o encanto deles.
Visto pela perspectiva da ausência do dom de Mirabel numa famÃlia de pessoas cheias de dons especiais, Encanto seria mais um filme sobre a inclusão daqueles que não se encaixam na normalidade familiar, ainda que esta famÃlia seja de "anormais" por seu dons, e, deste modo, não haveria em Encanto nenhum encanto. Seria mais uma representação dentre outras de como a diferença deve ser incluÃda na identidade individual, familiar e comunitária de uma cidade e fim da história ou, melhor dizendo, fim do encanto de Encanto. Por mais importante que seja a inclusão da diferença numa perspectiva identitária, não se sai da perspectiva individualista que faz da diferença algo comum, nada problemática, que pode simplesmente ser superada pela aceitação do diferente em sua identidade, ainda que não se aceite a diferença em si, no fundo, inaceitável.
É neste ponto que Encanto destoa de vários filmes da Disney que busca manter suas animações retratando uma diversidade cultural além da estadunidense e com Encanto produz seu primeiro filme centrado em personagens totalmente latinos. Mais ainda, destoa de toda a perspectiva individualista em que há um personagem central na história, apesar de Mirabel parecer ser este personagem. E, sobretudo, coloca em questão o quanto o dom pode ser uma maldição quando ele é visto como a única caracterÃstica de um ser, como o que ele é propriamente , isto é, quando é visto sob a perspectiva exclusivamente do indivÃduo e seu poder como se observa nas irmãs de Mirabel: LuÃsa, a mais velha, com seu dom de força natural extraordinária capaz de levantar qualquer peso, e Isabela, a segunda mais velha, com seu dom de produzir beleza com suas flores.
Se o dom torna especial aquele que o porta, a ausência dele torna o oposto disto. Tudo em relação a ele se resume a um jogo de oposições quanto a ser e não ser dotado de dom, de algo especial, segundo o ponto de vista lógico de ser idêntico ou diferente dos outros e, no caso, de Mirabel, ao ser diferente dos irmãos, de ser excluÃda ou incluÃda sua diferença entre as irmãs, os Madrigal, na casa, famÃlia e no povoado. É toda a lógica tradicional que vemos ser retratada no filme Encanto a partir da qual se pensa a diferença excluÃda, em princÃpio, do ser e que, não por menos, se tenta incluir de algum modo no ser, num primeiro momento, a partir da oposição, como uma forma de fazer com que o ser se torne melhor, e o eu se torne altruÃsta em vez de egoÃsta. Em outras palavras, de que haja uma superação racional, mas também emocional das dificuldades, problemas, acontecimentos ruins que podem acontecer na vida do ser representados pela diferença ou pelo portador dela, o diferente.
Se a lógica tradicional não pode excluir totalmente o diferente e a diferença do pensamento, apenas ocultá-la ou recalcá-la de algum modo, o problema para uma lógica tradicional é como incluir o diferente, reduzir a diferença e impedir que ela arruÃne a identidade individual, familiar e comunitária. Bruno e Mirabel representam os dois polos do problema da diferença na lógica tradicional que é a lógica de uma identidade individual, familiar e comunitária tradicional, pois eles não são o que se espera de um indivÃduo representante da famÃlia Madrigal e da comunidade formada a partir do milagre e dos dons concedidos aos Madrigal.
Bruno representa, por um lado, a exclusão da diferença e do diferente por conta de suas previsões ruins, por não ser portador de um dom especial que "dê orgulho" à famÃlia ao ser útil à comunidade. Ele representa a concepção do não-ser do qual não se pode falar como diz a música tema dele "Não falamos do Bruno", um não-ser que não se pode nem mesmo pensar como diria Parmênides. É, neste sentido, também a representação do esquecimento, aquilo e aquele que deve ser esquecido em um canto qualquer da casa, no seu quarto na torre onde ninguém deve entrar, aquele que é posto à margem, marginalizado por familiares e pessoas do povoado, ainda que permaneça escondido na casa, por trás das paredes dela. Sobretudo, ele é a representação da ocultação da verdade nas profundezas do pensamento do ser que se quer que seja esquecida, mas que jamais pode ser ocultada assim como não se pode ocultar a previsão de Bruno sobre a destruição da casa, ainda que escondida em seu quarto como se escondesse nas entranhas da terra, enterrada para que ninguém a veja, a não ser por Mirabel quando começa a investigar, senão racional e filosoficamente, sem qualquer milagre divino ou dom especial, o que está fazendo a casa ser destruÃda, bem como o encanto dela e de todos.
Mirabel representa, por outro, lado, a inclusão da diferença e do diferente não mais como não-ser, pois, diferente de Bruno, não é excluÃda da famÃlia. Há, neste aspecto, uma clara inversão de valores tradicionais familiares do patriarcado para o matriarcado. Enquanto no patriarcado a mulher é o sÃmbolo do não-ser e diferença, excluÃda da famÃlia centrada no homem como representante familiar, no matriarcado é o homem que representa o não-ser e a diferença, excluÃdo da famÃlia como Bruno. E se no patriarcado o homem permanece valorizado em sua diferença e incluÃdo na famÃlia ainda que não seja igual aos outros, um pouco diferente, no matriarcado, é a mulher que é valorizada e incluÃda como no caso de Mirabel ainda que seja diferente das irmãs. O não-ser e diferença de Mirabel não é igual ao não-ser e diferença de Bruno, pois há uma diferença da famÃlia patriarcal para a matriarcal neste caso.
A inclusão de Mirabel na famÃlia mesmo que diferente, representa uma inversão da diferença dentro da lógica tradicional familiar e comunitária centrada no matriarcado, mas que acontece do mesmo modo num patriarcado com a mudança dos valores femininos para masculinos tradicionais. A questão lógica não é de gênero neste caso, é de como a diferença é incluÃda dentro de uma lógica tradicional, seja esta lógica feminina ou masculina, ou ainda, como o indivÃduo diferente passa a ser incluÃdo na famÃlia, apesar da diferença, o que quer dizer, apesar de não se aceitar a diferença dele, a qual é apagada do diferente quando é incluÃdo, não vista mais nele na medida que é normalizado pela identidade individual, familiar e comunitária. Pois este é senão o princÃpio da identidade, a rasura da diferença, o seu apagamento, o a-partamento da diferença do diferente quando o diferente é aceito, o que isto acontece quando o que é diferente passa a ser identificado e ter uma identidade em particular, ser um "indivÃduo" dotado de determinadas propriedades, ter o "seu lugar" na famÃlia e na comunidade, ter o seu "lugar de fala".
Se há uma diferença do diferente, a diferença é atenuada nele na medida em que é aceita de algum modo como "normal". Se a famÃlia de Mirabel é fundada por uma mulher e pelo poder do matriarcado, sua diferença por não ser agraciada com um dom especial não é tanto um problema como o foi para seu tio Bruno, pois é uma mulher e não um homem, portanto, é mais aceita do que ele como parte da famÃlia matriarcal, do mesmo modo que o inverso acontece numa famÃlia patriarcal em que o homem tem o poder. Não ter um dom não é um problema para Mirabel, que permanece incluÃda e querida dentro da famÃlia demonstrando de certo modo como se é possÃvel "conviver com a diferença" e fim da história, agora, não mais moderna, e, sim, contemporânea.
Porém, assim como a verdade, a diferença não pode ser ocultada, rasurada, apagada do diferente por mais que se queira, não pode ser esquecida como se diz a verdade (alethéia, "não-esquecimento") em grego. A diferença vem à tona, mais dia menos dia como a verdade e, com ela, o questionamento da identidade, a rachadura da casa e do ser em sua identidade individual, familiar e comunitária. O não-ser, antes excluÃdo do pensamento por Parmênides, e por toda a lógica tradicional, passa a ser um problema quando é incluÃdo no pensamento por essa mesma lógica tradicional a partir de Heráclito, quando se torna devir pressupondo uma mudança do pensamento dentro do seu limite lógico binário de ser ou não-ser, homem e mulher, e vice-versa, e passa a ser um problema ainda maior quando vai além de todo o binarismo dialético. Não se pode simplesmente ocultar, fazer esquecer e deixar de falar da verdade, da diferença, de Bruno, de Mirabel, da destruição da casa, da famÃlia, da comunidade, pois, mais dia, menos dia, isto vai destruir tudo mesmo que não se queira admitir, que se queira negar que a força e beleza de cada ser vai simplesmente acabar, negar a morte, o fim da história, de tudo.
O problema não é incluir o diferente, é incluir a diferença, que não é possÃvel senão com a destruição da identidade a qual, por princÃpio, é individual e individualista, mesmo quando se trata de uma famÃlia e de uma comunidade, pois são um conjunto de pessoas que se identificam por alguma propriedade ou dom divino e natural, por um "milagre", que se vê como eleita e protegida por uma força maior, um deus ou vários deuses no caso de algumas culturas. Uma identidade produzida não apenas por uma razão, mas também pelas emoções de cada ser individualmente ainda que tenha relação com os outros, pois ainda são sentidas individualmente por cada um e pela qual cada um é responsabilizado. Neste sentido, as "competências socioemocionais" são sempre individuais, individualistas e individualizantes numa perspectiva liberal ainda que se refiram aos outros, pois o que está em questão é como cada um se sente em relação ao outro, em sua interação com o outro, e, portanto, se torna responsável pelo que é e pelo outro, o que faz a si e ao outro. O indivÃduo, antes centrado a partir da razão em toda a modernidade, agora é centrado em suas emoções submetidas por uma razão que regula seu comportamento perante os outros ao ponto da destruição de sua racionalidade e identidade.
Todo o discurso das "competência socioemocionais" se perde quando o que está em questão é ainda o indivÃduo liberal e o encanto de Encanto é demonstrar justamente isto, como todo o processo racional e emocional de formação do ser em sua identidade individual, familiar e comunitária vai à ruÃna quando se nega a diferença do diferente ainda que seja aceito enquanto diferente. Se há um encanto do diferente ao ser incluÃdo na identidade individual, familiar e comunitária que faz com que esta se mantenha de algum modo em sua lógica tradicional, por outro lado, este encanto é um canto de cisne, o prenúncio da morte do indivÃduo, da famÃlia e da comunidade, a não ser que esta lógica mude. Não basta, neste sentido, incluir a diferente para que a lógica tradicional mude, há apenas uma inversão de valores, como a inversão de valores familiares patriarcais para matriarcais em termos de gênero ou, noutro caso, de valores humanos entre brancos e negros em termos de raça. A diferença, assim como a verdade, ou mesmo, enquanto a verdade deve produzir uma mudança na qual tudo muda e não apenas uma parte em em relação ao todo quando se aceita um azulejo quebrado no meio de vários inteiros.
Mirabel é muito mais do que a inclusão do diferente no filme Encanto. É a força da diferença em toda sua potência de mudança da realidade identitária individual, familiar e comunitária. Se a casa, sÃmbolo desta identidade, está em ruÃna, se quebra e se destrói, não é, obviamente, por culpa de Mirabel ou da previsão de Bruno, mas porque não há espaço para a diferença, poder e potência de mudança que Bruno e Mirabel representam. Não se pode reparar a casa tentando manter seu encanto de fachada como Bruno faz negando a si mesmo e tentando se incluir enquanto diferente à margem para manter a fachada de famÃlia perfeita, como um diferente na identidade. É preciso que a casa seja destruÃda, assim como é preciso que haja a perda do dom de Mirabel, o fim do milagre, para que tudo se modifique a partir disso.
A ausência de dom de Mirabel não é o inÃcio da destruição da identidade individual, familiar e comunitária a partir do dom e do encanto especial que cada membro da famÃlia Madrigal possui. Esta destruição já começou com sua irmã Luisa que já não percebe mais em si a mesma força de antes e de Isabela que questiona sua produção de beleza a partir das flores parecendo perfeita para os outros. É também a perda do poder da famÃlia Madrigal na comunidade o que está em questão, pois não se trata apenas de uma famÃlia que ajuda a comunidade, mas que mantém a comunidade com seu poder se beneficiando com isso de algum modo. Sem os Madrigal, a comunidade não sabe o que fazer e se vê em ruÃna por não conseguir se manter sem a famÃlia mais poderosa do povoado, ainda que não seja oprimida pelos Madrigal.
Se Mirabel representa a ausência de dom, esta ausência não representa a destruição dos dons que tornam especiais os Madrigal como se pode perceber com Antonio, filho mais novo de Pepa, sua tia, pois ele é agraciado com o dom de ouvir os animais anos depois dela não ter recebido o seu. O milagre continua a agraciar a famÃlia ainda que o encanto dele simbolizado pela vela acesa e pela casa encantada perca a potência e a chama da vela comece a se apagar e as telhas, ladrilhos e paredes da caça comecem a rachar. Ainda, ademais que as irmãs dela percam o poder e não se vejam perfeitas como antes.
Em Mirabel, Isabela e Luisa, se percebe a destruição da identidade individual, familiar e comunitária ainda que na aparência não seja vista como as rachaduras da casa que são somente vistas por Mirabel, e cuja ausência de dom problemática para si faz perceber o quão problemático é o dom para irmãs. Primeiramente, o dom da força de Luisa, uma mulher que não apenas é forte, mas deve se mostrar forte individualmente, para a famÃlia e para a comunidade suprindo a fraqueza de todos com sua força. E que, por conseguinte, por ser mais forte do que todos, sofre mais do que eles por ter que suportar o peso de tudo e de todos, isto é, os problemas individuais, familiares e comunitários até não conseguir suportar mais, se deprimir e perder sua força completamente.
Em segundo lugar, o problema do dom de Isabela de embelezar por meio de flores que faz ser vista como perfeita por conta disso. Tudo nela simboliza a perfeição até que Mirabela perceba o quanto é infeliz por trás de sua beleza floral. A beleza das flores de Isabela representam o seu querer ser e tornar tudo perfeito para todos incapaz de gerar a partir de si qualquer imperfeição até expressar para Mirabel sua insatisfação quanto a si mesma e gerar uma flor de cacto como sÃmbolo da beleza imperfeita que é, ou ainda, da imperfeição dos espinhos que se esconde por trás da beleza das flores e dela, que simbolizam seus desejos reprimidos pelo que a famÃlia e a comunidade espera de si.
Luisa e Isabela são diferentes do que parecem individualmente na famÃlia e comunidade e Mirabel é a diferença explicita e que explicita a diferença das irmãs, traz à superfÃcie os problemas que elas vivem há muito tempo, antes mesmo, quiçá, dela nascer, ou talvez a partir do momento em que ela não recebeu nenhum dom e isto as fez questionar os próprios dons, mas também a lógica tradicional da famÃlia Madrigal. Se na primeira geração de filhos, a lógica tradicional defendida por Alma Madrigal, a matriarca, exclui, oculta e marginaliza a diferença a partir de Bruno, não se permitindo que se fale dele e da diferença por vir a partir da destruição da casa, do encanto, do poder e da identidade da famÃlia Madrigal, na segunda geração, isto não é mais possÃvel. Mirabel, Isabela e Luisa expressam a diferença e seu poder de destruição da famÃlia Madrigal em sua identidade a qual não pode ser impedida, e não se impede, ainda que, no fim, a casa seja reconstruÃda. Pois se há uma reconstrução da casa e do seu encanto, o que a funda não é mais a identidade individual, familiar e comunitária a partir do milagre e do dom especial de alguns, é a diferença dos indivÃduos, da famÃlia e da comunidade sem qualquer dom, milagre ou especialidade.
Se o milagre, o dom, o encanto retorna à casa e a cada um dos membros da famÃlia Madrigal o que produz este retorno não é mais um realismo mágico individual, mas um realismo diferente, produzido pela diferença, que é coletivo. Quando Mirabel incita seus parentes a reconstruir a casa e todos da comunidade aparecem para ajudar, percebe-se o poder da diferença que não é o de destruição da identidade, mas da desconstrução da identidade. Não se trata mais de um indivÃduo, de uma famÃlia e de uma comunidade tentando individualmente superar os problemas de modo racional e emocional, mas de um coletivo resolvendo os problemas de um indivÃduo, de uma famÃlia e da comunidade.
O encanto de Encanto é a desconstrução da casa que não exclui a reconstrução dela. Se é a mesma casa que foi destruÃda que se reconstrói, não é da mesma forma que é reconstruÃda. O milagre deu lugar a uma força coletiva de pessoas que fazem parte da famÃlia e do povoado de Encanto vistas sem qualquer especialidade a partir de Mirabel e estimuladas por esta a reconstruir a casa. Mirabel é o encanto de Encanto, a força da coletividade, que produz coletividade. A força que produz coletividade é a força da diferença e não da identidade, pois esta somente produz individualidade, familiaridade e comunidade. Numa coletividade, não importa a identidade e, sim, a diferença, o que cada um pode fazer independente de sua especialidade racional ou emocional. O que importa é fazer a diferença e fazer a diferença é o encanto de Encanto representado por Mirabel.
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