Isto é nós
This is us não é sobre família, por mais que seja dito que sim e, se é, é sobre a tragédia de uma família, ou ainda, a tragédia que é a família, a tragédia da família como a tragédia da família de Édipo. É um erro de tradução, mas também do pensamento, considerar que nós quer dizer família. Mais ainda que a família é o que nós somos, que nossa vida se resume à família, que a família é a resolução de nossos problemas, quando é o início de todo os problemas como a tragédia de Édipo tornada símbolo de toda a vida familiar moderna a partir da psicanálise freudiana a partir da qual compreendemos quem somos.
This is us é literalmente sobre nós, cada um de nós, isto que é nós. É preciso ir além da psicanálise para compreender isso, parar de analisar quem somos a partir do papai-mamãe que nos criou, parar de fazermos uma análise da nossa vida pela vida dos nossos pais e mães, o que não quer dizer negar a importância deles em nossas vidas, ou ainda, negar a família. É tão somente dizer que a família não define quem somos, a tragédia familiar com todos seus papéis familiares não é o que somos. Muito pelo contrário, é a partir da tragédia dela que nos tornamos o que somos, quando abandonamos toda e qualquer perspectiva familiar e a culpa que advém com ela ao sairmos de casa, ao deixarmos o papai e mamãe de lado, como uma perspectiva entre outras.
Quando Deleuze e Guattari pensam numa esquizoanálise e diz que isto, o id, o inconsciente não é produzido a partir da interpretação teatral, simbólica ou significante de Édipo e da família de modo trágico tal como a psicanálise faz segundo um complexo de Édipo, ainda que ele se oculte na análise, mas que isto, o id, o inconsciente é a produção desejante ou a máquina desejante que produz o socius familiar, social, político e econômico edipiano como antiprodução do inconsciente em seu desejo, estão senão dizendo que isto, id, o inconsciente somos nós, cada um de nós e todos nós independente da família ou de qualquer compreensão familiar sobre nós, em outras palavras que isto é nós, this is us.
Isto que somos nós não pode compreendido por aquilo que não é nós, isto é, nós não podemos ser compreendidos por qualquer perspectiva familiar, por uma perspectiva que nos torne igual aos outros de modo isonômico ou nos torne irmão de outros de modo fraterno, ou ainda, que nos torne comuns aos outros de modo social e político, ou mesmo, normal como os outros por seguir o mesmo padrão de comportamento. Isto que nós somos é diferente, não familiar, incomum, anormal, estranho e estrangeiro a qualquer pensamento familiar, que nos familiarize, que nos faça compreensível, inteligível e entendido por outro socialmente.
Se tem algo que This is us nos mostra muito bem é que o que nós somos não é familiar, não importa o quanto vivamos em família, desejemos viver em família e constituamos, por fim, uma família. A família é a tragédia. É a tragédia de Édipo da qual buscamos escapar nos tornando muitas vezes édipos, colocando a culpa de nossa vida na família, no pai, na mãe, ou ainda, no ódio e amor que dão ou não nos dão, bem como em todos aqueles que representam pais e mães ou buscam ser pais e mães em nossa vida. A tragédia é pensarmos que existe uma família normal na qual gostaríamos de viver para além da família disfuncional e desestruturada que é toda família, pois não há família normal. A família não é a realização de uma vida normalizada, nunca foi, nunca será.
A cada vez que pensamos a família normalizada a partir da estrutura papá-mamã-eu, cada um exercendo o seu papel conforme o socius produzido política e economicamente, deixamos de ver que esta estrutura não se fundamenta senão no desejo e, como tal, é irrealizável enquanto estrutura mesma em sua normalidade. Irrealizável porque está constantemente sendo abalada pelo próprio desejo que a produz, pela máquina desejante que nós somos para além da família, pelos desejos que temos inconscientemente que não são compartilhados em família, que não é normal compartilhar na família, não importa se ela se diz aberta. A estrutura familiar é um desejo, mas um desejo que se opõe ao desejo, que visa estabelecer sobre o desejo uma normalidade que não existe no desejo, tornar o desejo sólido quando ele é fluido, escapando à família e a uma perspectiva familiar constantemente, ainda que se molde à ela conforme o desejo dos outros, mas não nosso.
Em This is us vemos como as rachaduras na estrutura familiar aparecem a cada episódio e como se tenta evitar a destruição desta estrutura. Há sempre o papai e mamãe para salvar os filhos enquanto eles, os pais, precisam de salvação enquanto filhos de seus pais. É um ciclo vicioso em que pais e filhos buscam desesperadamente uma reconciliação para evitar a separação entre eles. Algumas coisas, porém, não são tão simples de haver conciliação, como a questão racial latente na família Pearson com um dos filhos negro em substituição a dos trigêmeos mortos no parto. E us é também US, United State, isto é, são os estadunidenses em seu socius profundamente desestruturado pela questão racial vivenciado pela família Pearson.
Tudo em This is us remete a uma grande análise da psicanálise independente da interpretação familiar que se faça dele a partir da família e de como os problemas dos filhos remetem aos problemas dos pais e assim regressivamente até a compreensão disto que somos, cada um de nós, como o resultado de nossos problemas familiares, dos problemas que temos com nossos pais e mães e dos nossos pais como filhos de seus pais, e todos os substitutos de pais e filhos, bem como os problemas que temos com nossos irmãos na medida em que não somos iguais ou fraternos com eles. É na medida em que esta série demonstra que isto que somos não é o resultado da família em que vivemos, mas o que fazemos de nós mesmos a partir da nossa tragédia familiar, de toda a desestruturação da família a partir de vários abalos particulares no decorrer de sua e nossa história, que nos percebemos e é tão difícil não se emocionar com esta série, não ter empatia com cada um dos personagens que são nós em seus dramas particulares, cada um vivenciando a tragédia familiar de um modo, muitas vezes oculto do outro como é senão em cada drama, consciente e inconscientemente. É neste momento em que percebemos a multiplicidade do que somos enquanto máquinas desejantes e cujos desejos são cortados em seus fluxos pelas máquinas desejantes que são os outros e que no corte de nossos desejos surgem todos os traumas familiares, as fraturas dentro da família em sua estrutura e normalidade, quando pais e mães se opõem e se opõem aos filhos e estes a eles e entre si enquanto irmãos.
This is us é tudo menos uma série sobre família. É sobre o drama que cada um de nós vive em família, vivenciando uma família, vivendo uma tragédia familiar igual muitos outros na medida que a família é vista como a possibilidade de vivermos sem problemas, de resolvermos todos os nossos problemas, quando, pelo contrário, nela vivenciamos os maiores problemas de nossa vida, todos os problemas culturais, sociais, econômicos e políticos. This is us é sobre nós e como esquecemos disso em família, como recalcamos o que somos, isto que somos nós para sermos quem somos em família.
Se a família faz parte de quem somos, ela não define o que somos. Entre o quem ou aquilo que somos no socius familiar e o que ou isto que somos em nosso desejo inconsciente para além do socius familiar há uma diferença irredutível que não pode ser compreendida a partir de uma perspectiva familiar, por pais, mães e nossa como filhos. É preciso sair da perspectiva familiar, sair de casa, dar um passeio esquizo para além da família para saber o que é isto que somos até mesmo para que a tragédia familiar não seja a nossa tragédia, como o fim de Édipo.
Nascemos de uma tragédia, de várias tragédias, diz Beth e Randall, mas não é isto que ele é, não é o que somos, não é isto que nós somos, ainda que ela diga para ele como seu pai disse a si que são as tragédias que definem nossa vida pensando ainda de modo edipiano. É preciso deixar o pensamento trágico da vida em família para percebermos que somos mais do que quem somos em família, que isto é melhor do que aquilo e que a vida é muito mais do que o que vivemos de modo trágico em nosso drama familiar.
Nenhum comentário: