Adeus ano novo, feliz ano velho!

dezembro 31, 2021

A
cada ano abandonamos o ano por ser velho em busca de um ano que seja novo. Deixamos para trás o que passou e não se realizou com a esperança de que se realize no futuro que ainda não nasceu, que é absolutamente novo, num ano novo. Não aceitamos o que é velho, queremos algo novo, de novo e cada vez mais novo, original, que não foi repetido sequer um dia, quanto mais por meses, muito menos por anos como a música já bastante velha: Adeus ano velho… Feliz ano novo… Que tudo se realize no ano que vai nascer…

O desejo por algo novo e não velho é moderno. É o resultado de um pensamento que não aceita a velhice, que a considera ultrapassada e não simplesmente passada como o resultado de experiências passadas. É a revolta do presente contra o passado, do novo contra o velho, do filho contra o pai. A questão é menos de que a experiência da velhice não importa do que o fato de que a experiência de quem é velho não se adéqua mais à realidade. Ser velho é ter a experiência de um mundo que não existe mais, que está apenas na lembrança e não importa mais. É uma experiência deslocada do tempo, um rompimento com o tempo presente em direção a um tempo passado. Ser velho é viver num tempo que só existe como lembrança, pois se é incapaz de se adequar ao tempo presente, acompanhar as novidades que aparecem nele todos os dias e cada vez mais.

O pensamento moderno trouxe e ainda traz consigo a ideia de que o novo é mais importante do que o velho, de que se deve abandonar o que é velho, o passado. Trata-se de recalcar o velho, de impedir que o passado venha à tona e interfira no presente. Um problema psicanalítico difícil de resolver, pois o que caracteriza a velhice é o retorno, o eterno retorno do tempo, no caso, do tempo passado no tempo presente. E ninguém está imune a isso ainda, a não ser por uma deficiência, o esquecimento, que tanto pode ser o resultado de uma doença, Alzheimer, como o resultado do próprio tempo que se moderniza na velocidade da luz, ou ainda, do próprio pensamento racional moderno que visa esquecer o passado a cada dia, mês e ano, esquecer o que é velho.

Porém, por mais que a modernidade tenha nos feito e nos faça esquecer o passado com sua ciência e tecnologia, há um retorno do passado no presente, do virtual no atual. O que era antigo se torna novo de novo e até mesmo uma tendência futura, muitas vezes temerosa, pois algumas coisas velhas devem ficar no passado e esquecidas para que coisas novas apareçam. É preciso deixar o passado no passado para que não se repita no futuro dores, sofrimentos, angústias, desesperos e mortes que a velhice por vezes traz com as lembranças.

A velhice traz consigo tudo que é bom e ruim no tempo. Não é fácil conviver com isso. Diferente da infância, juventude e maturidade em que não temos certeza de nada ou certeza de tudo, na velhice já não temos a certeza do que sabemos e não sabemos, do que é o certo e o errado, pois o presente se mistura com o passado, o atual com o virtual, as lembranças com as imagens do aqui e agora. Tudo se turva no pensamento e não sabemos se o que vivemos é real ou imaginário. Por vezes é mais imaginário do que real, pois as lembranças são mais frequentes do que as imagens do presente. Vivemos mais nas imagens da memória do que na imagem da vida presente.

Se o passado é melhor do que o presente, como muitos gostam de dizer, não é porque as coisas do passado fossem melhor, e de fato, algumas são. É porque já se está cansado demais do presente, melhor imaginar um tempo que não existe mais. O novo cansa, o eterno retorno do novo não nos dá vida, ele nos tira, enfraquece nosso corpo e mente. É preciso recarregar as forças da vida e o passado nos faz isso quando lembramos do que passou, pelo que passamos, quando não deixamos o passado simplesmente para trás, contudo, sem fazê-lo retornar e ser o que queremos para o futuro.

Não é apenas o passado que retorna, é também o presente. O presente é o eterno retorno do mesmo enquanto o passado é o eterno retorno do diferente. O mesmo é o novo que retorna enquanto o diferente é o passado, ao contrário do que muitos pensam. O novo não é o que está constantemente mudando. O novo é o que constantemente é, o que é igual, o que é idêntico, o que nunca muda, um dia, um mês, um ano, um tempo que nunca se diferencia, o tempo presente. É o passado que introduz a diferença no tempo, que faz do novo não ser mais novo, do mesmo não ser mais o mesmo, que produz uma ruptura no tempo fazendo que não seja mais o que é aqui e agora. É o antigo que difere o novo, que o fere duplamente, no corpo e na mente, produzindo uma dor angustiante no ser, a de lembrar que o tempo passou, que o que é novo deixou de ser.

Se há um retorno do passado na velhice é para nos lembrar de que o tempo passa, de que nada perdura no tempo, de que o aqui e agora é uma imagem atual que somente permanece na memória, de modo virtual como uma lembrança, de que tudo que é vai deixar de ser, de que o novo somente é novo por um instante, e que seu eterno retorno não é algo diferente, é o mesmo de antes, um novo que não quer deixar de ser novo, quer permanecer como é, aqui e agora. Recalcar o passado é impedir que as coisas sejam diferentes, que o tempo passe, que se perceba que tudo mudou, que não é mais novidade e tudo muda no ano que vai nascer. Não porque o ano novo seja melhor do que o antigo, mas porque é diferente ao nascer, porque o nascimento de um novo ano traz consigo a diferença enquanto o renascimento do ano novo traz consigo o mesmo ano como novo.

O velho não impede que o novo nasça, mas que o novo faça renascer o mesmo. É preciso pensar no velho para que o novo não seja o mesmo, para que seja diferente. A modernidade é o esquecimento do velho para que tudo seja o mesmo, igual, do mesmo modo, aparentemente diferente, mas não diferente em essência. A diferença na modernidade é uma aparência e não uma essência, é o novo que aparece para fazer esquecer o velho e reaparece constantemente para que o que é velho não apareça, para que não se pareça velho, para que sua aparência seja sempre nova. A diferença não envelhece, não é o envelhecimento, quer ser sempre nova e cada vez mais nova, e se infantiliza em busca de uma originalidade para fazer esquecer uma origem arcaica no tempo. A diferença do novo para o velho, do moderno para o antigo, é que o novo quer esquecer uma origem, sua origem a partir do que é velho para ser original, ser a origem de algo. Não quer que o tempo passe, quer fazer o tempo passar.

Não há diferença essencial na modernidade. Tudo é difere aparentemente. O tempo não muda. Ele é o que é e retorna como o mesmo, do mesmo modo, sempre. A diferença essencial está no passado, quando o tempo muda, quando algo não retorna senão na lembrança, no que é virtual, a imagem daquilo que não tem retorno, do tempo que passou, do ano velho…

Diferente do afeto de alegria que a música traz em deixarmos o ano por ser velho e saudarmos o ano novo, sempre de novo, a cada ano, é importante pensar no ano velho, na velhice dos anos, na diferença que os anos nos trazem. É preciso pensar que o velho não é algo ruim ou mal que deve ser abandonado e o que importa é o ano novo, do mesmo modo que se pensava no ano anterior e nos anteriores, num eterno retorno do mesmo recalcando o passado. Não podemos esquecer o passado, principalmente o recente, para que o futuro seja diferente do presente que vivemos no qual nada muda, tudo é igual, idêntico ao presente anterior em que pensávamos que tudo ia mudar e não mudou, não mudamos, permanecemos como o mesmo, vivendo no tempo presente esquecendo o que passou.

Esquecer o que passou é esquecer o que aconteceu, negar o acontecimento, negar a história, nossa história, e tudo que há de fato nela. É o pior negacionismo, quando se vive algo novo que é apenas a imagem de um novo que não condiz com a realidade, um novo inventado, criado para satisfazer aquele que não quer que a realidade mude, que quer que ela permaneça como é em seu pensamento. Não quer aceitar os fatos que aconteceram, quer que eles sejam o resultado de suas convicções de que algo novo aconteceu, está acontecendo. O futuro, para o negacionista, deve ser o futuro de um presente, um presente imemorial, mítico, criado por si para que o tempo não mude, não passe, não fique velho.

Aceitar que o tempo mude é aceitar o passado como ele é, a velhice do tempo, que o presente não seja o temor de um tempo passado, muito menos a repetição de um novo que não quer envelhecer, mas a esperança de um tempo futuro, quando se olha o tempo que passou sem medo e sem receio, pois sabe que as lembranças do passado são águas passadas nas quais já não nos banhamos mais, e que o ano novo não seja o nascimento de algo novo, de novo, sem passado, nem de um passado atualizado como novo, e, sim, de um ano diferente no tempo, quando o tempo se modifica, envelhece e possamos dizer adeus ano novo, feliz ano velho, sem melancolia ou tristeza no ano que vai nascer.

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