Para além da Matrix


Antes da computação se popularizar, Matrix nos fez conhecê-la com seus códigos deslizando na tela fazendo-nos pensar num mundo criado por computadores. Antes da Internet se massificar, Matrix nos fez querer conhecê-la e viver buscando algo na Internet como fazemos hoje. Antes dos filmes de super-heróis da Marvel e DC invadirem a realidade cinematográfica, Matrix já transformava a realidade numa grande tela verde com imagens virtuais e um herói representando o bem versus o mal. Antes da ideia de metaverso se tornar a grande aposta das empresas de tecnologias, Matrix já transformava o mundo que conhecemos numa realidade alternativa. Antes de muitos se preocuparem com o conexão excessiva das pessoas com as máquinas sendo controlados por algoritmos, Matrix mostrou o quanto se pode perder a liberdade e ser dominado pelas máquinas em seus pensamentos e sensações. E antes da realidade se tornar uma grande fake news, Matrix inverteu a realidade tornando o real em virtual e o virtual na realidade. Nenhum outro filme revolucionou tanto a nossa compreensão da realidade com sua ficção científica como Matrix, pois nenhum outro nos fez pensar tanto a realidade em que vivemos na qual as máquinas controlam o mundo e nossas vidas diariamente e já não podemos evitar isso como se pensava no alvorecer da criação delas ao se dizer parem as máquinas! Pelo menos não sem qualquer ficção ou simulacro da realidade para além da Matrix.

Passados 22 anos desde seu lançamento em 1999, e prestes a ser ressuscitadoMatrix, de Lilly e Lana Wachowski, é o filme de ficção científica que mais se aproxima dos problemas reais que temos com o desenvolvimento tecnológico e científico informatizado hoje em dia. Se compararmos o mundo virtual criado por Matrix com o nosso mundo atual, obviamente, ele está bastante desatualizado em seus carros, roupas e, principalmente, telefones e computadores. Contudo, sabemos muito bem hoje que a realidade virtual é atualizada sempre que necessário pelo Arquiteto do sistema das máquinas para nos controlar, seja quem for o Arquiteto dos sistemas virtuais que utilizamos cotidianamente. Em outras, palavras, o que vemos, ou melhor, imaginamos em nosso sono profundo na Matrix quando estamos conectados às máquinas não passa de uma realidade virtual da realidade atual, de fato, para nos controlar, ter-nos sob seu o poder.

Nada do que vemos é real de fato, tudo não passa de uma imagem da realidade tal como a vemos ou imaginamos ver, pois o que vemos e chamamos de realidade não passa de uma imagem criada por nossa imaginação antes mesmo das máquinas existirem e que elas apenas reproduzem ou copiam. É uma imagem da realidade que criamos e que dizemos ser a realidade, isto é, uma imagem daquilo que estamos vendo em nossa frente, ou ainda, que estamos sentindo como nossos sentidos, experienciando em nosso corpo e experimentando através de algum instrumento. Para muitos, assim como para as máquinas, a realidade não passa de uma causalidade em que cada coisa-imagem tem um propósito, tem um efeito do qual ela é a causa, como demonstra Merovingio em Matrix reloaded, segundo filme da trilogia Matrix. Nada é por acaso no mundo das máquinas, nem na natureza e no mundo humano, tudo foi programado para ser de algum modo, cada código criado para exercer uma função, inclusive deus, pois como acredita Einstein, deus não joga dados. No caso, o Deus de Espinosa no qual Einstein acredita, a substância que é Deus e Natureza e a partir da qual tudo não passa de uma causalidade de afetos e de ideias no corpo e na mente, uma substância que é uma univocidade segundo Deleuze.

A causalidade é o sentido da realidade para muitos, pois tudo deve fazer algum sentido, ter alguma lógica, ser expresso por algum logos, isto é, numa fala, discurso ou texto articulado e compreensível a todos. O sentido da realidade é um fato, um acontecimento que se pode compreender de algum modo pela ciência, tecnologia, arte, religião e pela filosofia. É a realidade tal como a conhecemos a partir da experiência sensível e inteligível que é senão a realidade da Matrix, das máquinas, ou de uma caverna na qual nos pomos presos desde o nascimento, a terra em que vivemos como pensava Platão.

Porém, o filme Matrix nos mostra uma realidade para além da Matrix, ainda que se confunda com ela num sentido virtual, mas que não é ela, nem uma imagem dela, a realidade do simulacro, ou ainda, de uma simulação da realidade na qual tudo é possível, pois não existe mais a causalidade. É realidade da crença quando fazemos uma escolha, quando acreditamos em algo que não é, pertence, participa ou está presente na realidade, que não é a realidade tal como conhecemos, nem uma coisa dela e nem uma imagem dela, é algo que criamos, que não existe ainda e não há nenhuma causa para sua existência. Esta realidade não é mais a realidade do mundo em que vivemos e que experimentamos em nossos sentidos e dizemos que é a realidade. Não é uma realidade atual e atualizada constantemente através dos afetos e ideias, nem mesmo algo virtual que atualiza a realidade como a realidade virtual produzida pelas máquinas. É uma realidade para a qual não há experiência possível ou previsível a partir de nossos sentidos ou conhecimento através da ciência e tecnologia, arte, religião e filosofia, que não pode ser criada por máquinas nem ser maquinada pelo corpo e mente. É uma realidade por vir que escolhemos sem qualquer experiência dela e sem sabermos o que é, se existe ou vai existir, mas na qual acreditamos como se existisse. É uma realidade humana porque criada pelos seres humanos com suas escolhas, das mais banais no dia a dia às mais importantes como a escolha de quem amar e de lutar por sua vida, mas que não é totalmente humana, que é, portanto, inumana ou sobrehumana.

A realidade do simulacro é diferente de uma imagem da realidade do mundo em que vivemos e que as máquinas reproduzem em imagens para nos satisfazer de modo virtual. No simulacro, diferente do que acontece no mundo atual e virtual, tudo é possível e impossível ao mesmo tempo, pois é independente de qualquer experiência ou experimentação, tudo depende da crença no pode fazer acontecer, da crença em uma potência, e não numa potencialidade para fazer isto ou aquilo na realidade, criar um acontecimento. É a realidade do escolhido quando faz uma escolha seja qual for, quando decide fazer algo e não esperar acontecer como se faz na ciência, na tecnologia, arte, religião e nas filosofias do passado, as filosofias da identidade de uma ideia ou conceito, a não ser nas filosofias do futuro, as da diferença dos simulacros de ideias e conceito da realidade.

A diferença entre o mundo das máquinas e o mundo humano em Matrix não está nas imagens dialéticas em que se opõem o claro e o escuro, a superfície e a profundidade, o sobremundo e o submundo, os seres emaranhados em fios e plugues e os seres desplugados, o arrumado e o desarrumado, o rico e o pobre, o bem e o mal. A diferença está na escolha não-binária que humanos podem fazer e no que podem fazer a partir dela para além da Matrix, isto é, para além do mundo conhecido como tal através dos sentidos e das ideias, num mundo inimaginável até então. Enquanto as pessoas dominadas pelas máquinas vivem no mundo da Matrix em que já não escolhem mais o que fazer, não fazem acontecer nada e vivem passivamente num consumo de imagens da realidade sem ver o mundo ser destruído em sua volta, vivendo desse modo como máquinas na realidade, programadas para nascerem e morrerem apenas sobrevivendo por um período de tempo, o tempo que o Deus ex Machina programou para si, e se escolhem é já uma escolha entre alternativas contrárias, um livre-arbítrioMorpheu, Trinity e Neo escolheram um mundo para além da Matrix e fizeram esse mundo acontecer, não como o melhor dos mundos possível, mas como o mundo escolhido por si, no qual acreditavam que era melhor.

Em Matrix, o que diferencia o humano de uma máquina é a escolha, mesmo quando o humano se parece com uma máquina e escolhe como uma entre o ser (1) e o nada (0), entre uma imagem da realidade em que vive e outra que nega a imagem da realidade em que vive e se opõe a ela como um não-ser real. Diferente de uma imagem da realidade, que afirma ou nega a realidade, de uma imagem que é um efeito afirmativo ou negativo de uma causa na realidade, o simulacro é o efeito de uma escolha do ser humano que já não tem causa, pois o simulacro não deixa um rastro, não se pode rastreá-lo, tão pouco se pode determinar sua origem, isto é, uma causa primeira, nem mesmo uma causa sui como Espinosa define a substância, Deus ou Natureza. O simulacro como efeito de uma escolha humana não é decididamente natural, não obedece uma ordem natural, as leis naturais, é decididamente humano, uma ordem humana, uma lei humana, um fiat humano, ainda que em si mesmo não seja propriamente humano.

Já não há bem e mal, pílula azul ou vermelha quando se decide sair da Matrix, do mundo que se conhece, da realidade tal como é vista, percebida e idealizada, não importa que realidade seja vista, percebida ou idealizada por alguém. A escolha é um ir além de tudo sem olhar para trás, é uma filosofia do futuro, do por vir, do super-humano, não o que voa e tem super-poderes como um super-herói como Neo tem na Matrix ao descobrir o que pode fazer nela com programas de computador. É a escolha que define o ser humano antes dele ser ou não ser ele, quando escolhe entrar na toca do coelho sem saber o que vai acontecer já fazendo acontecer, inclusive a si.

Estamos constantemente saindo da Matrix ao escolher fazer acontecer algo sem perceber ou saber o que é, algo que acreditamos que é o que devemos fazer, como Morpheus, Trinity e Neo decidiram fazer, e que só percebemos ou sabemos o que é na realidade quando voltamos para a Matrix, para a realidade conhecida, escolhida por nós para o bem e para o mal. Não saímos da Matrix quando simplesmente deixamos de estar conectados às máquinas e ao mundo virtual criado por elas e vivemos num mundo atual, ou quando nossa alma deixa o corpo e vivemos num mundo de ideias como acreditava Platão ou de figuras divinas como acreditam os religiosos e mesmo os filósofos, ou quando pensamos em nossa existência para além dos sentidos do nosso corpo-máquina como pensava Descartes com seu cogito ergo sum. Saímos da Matrix quando fazemos uma escolha, seja qual for, e toda nossa vida muda a partir dela, quando já não podemos voltar atrás na escolha, só podemos seguir em frente, acreditando no que fazer a partir da escolha que fizemos na crença de que algo vai acontecer a partir dela.

Não importa a pílula tomada, é a escolha de tomar a pílula que importa, quando decidimos sair da Matrix ainda que voltemos a ela, e devamos voltar à ela, pois não podemos deixar de voltar eternamente à Matrix. Se cada escolha nos faz ir para além da realidade da Matrix, cada escolha produz a realidade da Matrix em que vivemos e não podemos viver fora dela. Não é possível viver fora da realidade, da Matrix, num mundo de simulacros. O simulacro não é real nem pretende ser, é uma ficção da realidade, um desejo de irrealidade na realidade, uma linha de fuga da realidade que cria outra realidade, o vislumbrar de um céu para além da realidade conhecida por um breve momento que seja antes de cair novamente na realidade humana, natural e das máquinas, uma realidade que não existe nem mesmo no pensamento, a qual não se sabe absolutamente que está fazendo. O simulacro é uma vida imanente em si, que não pode ser vivida na realidade, na Matrix, pois não há programa para ela, não é uma vida planejada por um programa de computador, por alguém, nem mesmo por um deus ex machina. Também não pode ser vivida na realidade natural segundo uma ordem e lei natural ou segundo uma natureza divina ou definida por um deus sobrenatural. Nem mesmo vivenciada por uma vida humana, pois não pode ser vivenciada antes de ser escolhida por um humano, somente posterior a ela, ao ser criada na realidade. É uma vida sobrehumana ou inumana que ultrapassa tudo que é humano e conhecido pelo ser humano e a qual somente pode ser conhecida após uma escolha humana, uma vida escolhida pelo ser humano, por aquele que decide escolher, o escolhido.

Todos nós somos o escolhido quando escolhemos algo que acreditamos poder fazer acontecer, quando simulamos a realidade, eis o que Matrix nos faz pensar. Neo, o novo, é a escolha que fazemos ao acreditar que podemos fazer acontecer algo que já não sabemos exatamente o que é, que não foi programado, planejado, pensado, do qual não temos nenhuma ideia na realidade, se é ou vai ser real, não importa. É o futuro que escolhemos para nós para além do bem e do mal, a realidade por vir na qual queremos viver e não simplesmente sobreviver nela, é um simulacro da realidade, para além da Matrix, que somente cada um nós pode e deve escolher antes de voltar à Matrix.

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