Marighella e a violência necessária


Em determinado momento do filme Marighella (2019), de Wagner Moura, Jorge Salles, amigo de Marighella no Partido Comunista, diz para ele que o Brasil não "reúne as condições necessárias para o radicalismo" proposto por Marighella. Marighella responde fazendo uma listagem de violências sofridas por trabalhadores, crianças, mulheres, amigos comunistas, por ele próprio e pergunta se está bom de condições. Em outras palavras, Marighella quer saber quando a violência vai se tornar necessária para mudar o país, libertando-o de toda a opressão econômica e política produzida pelos capitalistas que estão no poder há séculos e apoiados pela repressão civil militar após o Golpe de 64 que instaurou a Ditadura Militar no Brasil.

A questão da violência é o tema do filme Marighella, como não podia deixar de ser, afinal, é um filme sobre o Terceiro Reich brasileiro implementado pelos militares depois do período da Colonização (Primeiro Reich) e Escravidão (Segundo Reich). É o momento em que foi instalado um império (reich) fascista no Brasil, com um regime civil militar não muito diferente do nazismo alemão, pois foi fundamentado a partir de uma ideologia de superioridade advinda da mais recôndita tradição colonizadora escravista portuguesa, posteriormente republicana brasileira e promoveu o genocídio de um povo minoritário chamado de "comunista" que reunia todos os oprimidos pelos sistema capitalista ditatorial. A Ditadura Militar no Brasil foi o resgaste de toda a violência imperial portuguesa com seus mais atrozes meios de supliciar o corpo humano, e, principalmente, o corpo negro, e com Marighella não foi diferente. Ao iniciar o filme, a expectativa pela violência é inevitável. Quando serão mostrados os processos de violência realizados pelos militares durante a Ditadura Militar: choques elétricos nos mamilos, lábios vaginais, cadeiras elétricas ("cadeira do dragão"), pau de arara, estupro, além de socos, pontapés e outros tipos de violência não documentados antes de porem fim à vida de quem era "comunista", de "esquerda"?

O diálogo entre Jorge, Marighella e Almir no início do filme demonstra uma discussão de três níveis de compreensão da necessidade de radicalização do movimento contra a Ditadura Militar ou da necessidade de violência para se defender. Jorge, considera que é necessária a violência, mas que não há condições para isso, ou que não é o momento, pois não é possível lutar contra as Forças Armadas apoiada, ademais, pelos Estados Unidos. Marighella considera que é necessária no momento, pelas condições que expôs, principalmente por ter sofrido na pele a violência, mas seu radicalismo é moderado perto do radicalismo proposto por Almir, cujos resultados praticamente todos que fazem parte do grupo Ação Libertadora Nacional liderados por eles sentiram na pele.

A questão da necessidade da violência no debate entre Jorge, Marighella e Almir: quando devemos pegar em armas para nos defender dos empresários e militares? A resposta seria: em legítima defesa da vida quanto à violência sofrida. Todavia, uma legítima defesa não é considerada suficiente em relação a trabalhadores empregados contra os patrões empresários, do meio rural ou urbano, ainda que os trabalhadores empregados sejam explorados em condições de trabalho análogas à escravidão, e mesmo escravizados por dívidas. Não se pode pegar em armas, se diz ainda, em legítima defesa contra o sistema financeiro dos banqueiros que lucram bilhões com as dívidas de trabalhadores os levando à miséria, fome e morte. Não se pode pegar em armas para se defender do racismo promovido por policiais militares com suas abordagens e mesmo quando eles matam negros inocentes, nem mulheres para matarem machistas que as violentam e oprimem, e indígenas contra grileiros, o agronegócios e cristãos evangélicos que querem colonizá-los ainda hoje. Em suma, não há legítima defesa para as minorias que sofrem a opressão, toda e qualquer violência é desnecessária vinda das minorias segundo o pensamento dominante que menoriza a violência das minorias como de "selvagem", "baderna", "balbúrdia", "mimimi", e não defesa de seus direitos e, principalmente, de sua liberdade, princípio básico do liberalismo defendido por aqueles que negam o direito à individualidade de pessoas minoritárias, como aqueles que não toleravam a Ditadura Militar.

As condições sociais no Brasil não seriam, sob este aspecto, motivos necessários para a violência na época da ditadura, nem mesmo hoje podemos dizer, é o que quer dizer Jorge para o Seu Jorge que interpreta Marighela, o qual defende o contrário e Almir mais ainda. A defesa de Jorge está relacionada, de certo modo, ao homem cordial brasileiro definido por Sérgio Buarque de Holanda a partir do qual se fundamenta uma bondade inerente à natureza do brasileiro, criticada primeiramente por Cassiano Ricardo, uma ideia que remonta aos franceses, em particular, a Rousseau e sua ideia do bom selvagem a partir dos indígenas brasileiros. Apesar de Sérgio Buarque de Holanda rebater esta crítica e dizer que o homem cordial também é hostil, a hostilidade do homem cordial é particular, privada, pessoal, individual, em relação àqueles que considera inimigo, como no caso de algumas tribos indígenas que se aliaram aos portugueses contra tribos consideradas inimigas por eles, no caso dos senhores de engenho e sua política cordial aliando-se contra aqueles que estavam contra seus interesses privados ao estilo maquiavélico para adquirirem poder e se manterem no poder como "coronéis", bem como é o caso da concepção de indivíduo na modernidade oposto ao Estado, defendendo um liberalismo contra qualquer intervenção política em sua vida, no caso, uma intervenção política em benefício da sociedade. A ausência de condições para o radicalismo ressaltada por Jorge é a ausência da própria sociedade ou do povo diante dos interesses particulares de cada indivíduo buscando seu benefício próprio, inclusive, o do Partido Comunista, que expulsa Marighella e Almir por estes quererem radicalizar o movimento contra a Ditadura Militar.

A defesa de Marighella de uma violência necessária é social, mas também privada, particular e pessoal. É, podemos dizer, uma defesa iluminista que sabe que somente pela violência há uma mudança social de fato, como aconteceu na modernidade a partir da Independência dos Estados Unidos, Revolução Francesa e Revolução Russa. Negar a necessidade de violência é negar o próprio devir social como percebe Marx ao definir a sociedade a partir de uma luta de classes que é negada no Brasil a partir do discurso cordial que, em contrapartida, nega a necessidade de uma revolução ou a necessidade de violência para se produzir uma mudança social. Neste sentido, a luta de classes é reduzida a uma luta em particular, privada, pessoal, individual e a revolução numa revolta que não adquire apoio popular, que não é comum ao povo, em relação à qual não há uma identidade social, ou mesmo, cultural. Marighella quer romper com a ideia de cordialidade do brasileiro, quer fazer de sua revolta com a opressão e repressão sofrida uma revolução contra todo o sistema opressor e repressor da vida, o capitalismo, principalmente depois do Golpe de 64 e a Ditadura Militar.

Todavia, há um limite que impede o radicalismo de Marighella, o amor que tem por seus companheiros de luta, que é o que o diferencia de Almir para o qual a necessidade de violência já não necessita mais de qualquer condição. Almir é o mais radical dos três mosqueteiros brasileiros em defesa da justiça social, aquele que está disposto para a luta, com armas em punho desde o início, apesar de sua aparência burocrática e cordial, ou talvez mesmo por isso. No diálogo de início enquanto Jorge e Marighella debatem a necessidade ou não da violência radical pegando em armas, Almir intervém apenas uma vez para perguntar: "E com quantos cadáveres uma situação se define, Jorge?" Sua pergunta é direta e, implicitamente a ela, há um apelo à necessidade de uma violência em legítima defesa da vida diante da morte iminente, uma violência que pode, não por menos, levar à morte com atitudes inconsequentes como acontece de fato depois que ele decide fazer seu ato revolucionário de sequestrar o embaixador dos Estados Unidos.

A partir deste diálogo, podemos dizer que há três tons de cores que demarcam os graus da necessidade da violência. A cor branca, de Almir, chamado de Branco pelos companheiros, a preta, de Marighella, chamado de Preto, e a de Jorge, o único dos três chamado pelo nome, que encarnaria a cor Cinza, pois, apesar dele ser tão "branco" quanto Almir, ele entende e reconhece a necessidade da violência defendida por Marighella, mas antevê o fim iminente do enfrentamento com as Forças Armadas brasileiras e estadunidense com o radicalismo defendido por Almir. É, portanto, um meio-termo entre o Branco e o Preto, entre a Paz Armada do "Branco" e a legítima defesa do "Preto" através de uma violência contra aqueles que querem violentá-lo.

Alcançar este meio-termo entre o excesso de violência e a falta de violência numa justa indignação que torna legítima a defesa, como diria Aristóteles, não é fácil. Jorge, o Cinza, sabe bem disso. Ressentido com a acusação de Marighella de não ter se defendido contra o golpe de 64, não reconhece num primeiro momento que houve falta de violência contra o golpe e teme o excesso de violência mas, por fim, age para se defender legitimamente contra a Ditadura Militar ajudando Marighella a divulgar suas ideias numa transmissão de rádio e, depois, publicando no seu jornal o que ele disse. Marighella, o Preto, por sua vez, reconhece a falta de violência desde o princípio, por tê-la sofrido desde criança e ser torturado pelos militares, portanto, reconhece a necessidade da violência antes mesmo de defender o radicalismo da violência por meio das armas, mas, como Jorge, teme as consequências do excesso de violência nas ações do assalto ao trem com armas e ao banco, nas ações no meio rural e urbano contra a Ditadura Militar ao pensar na consequência para os trabalhadores que estão nestes lugares e, principalmente, para seus companheiros de luta. Almir, em contrapartida, no polo oposto, reconhece a falta de violência e tão pouco teme o excesso dela, suas ações vão da legítima defesa para um ilegítima defesa, quando já não são necessárias condições para a violência, pois já estão dadas, não importam as circunstâncias e as consequências.

Em cada um a necessidade da violência se expressa de um modo, mas a de Almir, o Branco, caracteriza a passagem de uma revolta particular para uma revolução propriamente dita, quando o oprimido se cansa de ser oprimido e se torna o opressor do opressor, quando a violência se torna radicalmente necessária. Seu ato revolucionário encarna o momento em que o corpo já não aguenta mais o suplício e a única alternativa que lhe resta é encarar o opressor de frente sem temer a morte de si e dos seus ao oprimir o opressor. A luta de classes se tornou inconsciente, pois é a luta do próprio corpo em violência contra a violência, a sua resistência violenta para suportar e impedir a violência. É o corpo esquizo do "Grande" Jorge, o companheiro de luta de Marighella e Almir, que foi preso e torturado e resiste se debatendo recebendo choques elétricos no chão molhado enquanto os militares gritam dizendo quero ver se você acende e cantam a música do programa Silvio Santos: Roda, roda e avisa! Um minuto de comercial... Ou ainda, é o próprio corpo de Almir que diz a Marighella que não tem mais idade para ser torturado se for preso... É o corpo de Marighella que resiste em fugir e encara a morte de frente, sem qualquer linha de fuga. É o corpo de todos os trabalhadores, homens, mulheres, crianças, explorados pelo capitalismo e por políticos e militares que apoiaram, e ainda apoiam, a Ditadura Militar.

A pergunta de quando a violência se torna necessária pode ser respondida a qualquer momento, de modo individual ou social, pois como diz Marighella, ninguém precisa de permissão para cometer um ato revolucionário. Ela é uma pergunta colocada do ponto de vista do oprimido, não do opressor, pois, para este, a violência é necessária desde o início, por um temor em relação ao oprimido, como na colonização, na escravidão, na Ditadura Militar e para todos que estão no poder. A violência é necessária para se manter no poder, ainda que não seja a única coisa necessária, como disse há tempos Maquiavel a partir da própria história, e ninguém de direita nega isto em sua defesa da violência em legítima defesa individual e do Estado, principalmente, do Estado fascista civil militar instaurado na Ditadura Militar que é lembrado e reproduzido pelo atual Estado fascista bolsonarista fantasiado como democrático. O direito à violência não é, porém do opressor, mesmo que este considere apenas seu, assim como não é das maiorias, mesmo que esta pense que tenha o direito de oprimir as minorias.

A violência necessária é a do oprimido que resiste à violência do opressor em seu corpo e aumenta na mesma intensidade com que sofre nas mãos do opressor, não importa se o corpo oprimido é Branco, Preto ou Cinza, pobre ou classe média, masculino ou feminino, sexualizado ou casto como o dos padres que fazem parte do grupo de Marighella e Almir. Ou seja, é um direito das minorias oprimidas, de todos os corpos supliciados até a morte pelos civis e militares que acreditam que fazer o corpo do outro sofrer é uma forma de expiar o "mal do comunismo", da "esquerda".

Assistir ao filme Marighella é aceitar que a violência é necessária contra a opressão, sempre foi, sempre será. A história é produzida por ela e todos os Estados de direito se fundamentam numa violência necessária contra a violência desnecessária que fundamenta o Estado fascista, ditatorial e bolsonarista, bem como necessária contra a violência desnecessária de cada um de nós, devendo-nos reprimir contra a violência desnecessária que produzimos contra os outros. A luta de Marighella não foi em defesa da violência, foi da violência necessária contra a violência desnecessária de empresários em defesa de seus interesses privados de exploração do trabalhador e da violência desnecessárias das agressões, estupros e mortes de homens e mulheres e LGBTQUIA+ indígenas, negros e brancos promovida por militares Ditadura Militar com apoio dos empresários. Saber o limite da violência é o princípio básico para um Estado de direito e cada indivíduo numa democracia, e foi por este princípio que podemos dizer que Marighella lutou, para que cada um nós possamos lutar contra a desnecessária violência de quem quer nos oprimir.

A violência necessária não é, neste caso, a justificativa para a própria violência, a justificativa do opressor anterior a qualquer violência sofrida, é a justificativa do oprimido pela violência que sofre. A violência necessária não é a instaurada pela lei, natural ou positiva. Não há nenhuma justificativa para a violência necessária, a não ser a do próprio oprimido, nem mesmo a justificativa de um direito de vingança no qual se fundamenta o Estado para além do direito. Não há vingança contra a opressão, há revolta e revolução. A vingança é para os ressentidos que defendem um Estado forte contra aqueles que considera como seus inimigos, incluindo seu próprio povo como na Ditadura Militar e no fascismo bolsonarista atual, a revolta e revolução é para quem já não se ressente pela opressão e luta contra ela com a violência necessária como Marighella lutou.

Nenhum comentário:

Tecnologia do Blogger.